quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Imperfeito vento



Os livros que escreves
Ordenam o teu caos em palavras
São lembretes amarelos
De compras que não justificam
A ordem inalterada dos deuses
Lineares, eficazes,
Vão enchendo a dispensa
Na firmeza dos próximos passos
E sempre é breve...

Os deuses aparecem em sopros
Com máscaras do que não são
Incaptáveis em livros
E nem em surrealismos vão

É no intervalo do imperfeito vento
Que eles sempre vivem e sempre estão.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Iniciação à Leitura de Fernando Pessoa e Iniciação à Leitura dos Leitores de Fernando Pessoa



Houve um tempo em que havia profetas depois... Depois isto endureceu, então no último século, endureceu ainda mais, e restaram os poetas nos seus acessos de loucura expedita na revelação. O afastamento da dimensão múltipla dos homens, devido à "especialização" temática e gestual concedida "generosamente" pelos efeitos da Revolução Industrial conduziu-os, inevitavelmente (?), à leitura parcial das coisas, (efeitos do trabalho sequencial fabril - febril) causando artrites (atritos) e artroses (atrasos atrozes) - os "erres" parecem empatar a palavra... - crónicas. O primeiro empate é óbvio: a confusão entre profecia e adivinhação que confere o tom "irremediável" àquilo que é apenas "revelação" subsistindo no limbo atemporal até que seja confirmado, ou não, não havendo obrigatoriedade alguma a que os factos revelados se comprovem (quando condutores à desgraça até é bom que nunca se cheguem a comprovar...). O segundo empate é o da confusão entre profecia e poder (tirando os poderes proféticos cujo orgulho tende a ser imediato), há uma leitura igualmente errónea e parcial uma vez que, no concreto e na vida real, tais capacidades se tornam um fardo, uma permanente marginalização de qualquer espaço social. Se estou a inventar? Não, basta ir à História... E, por último, e tendo tais funções passado para as mãos dos poetas (malta de esquerda leiam o Manuel Alegre anos antes do 25 de Abril e a sua conversa com cravos - nem os homens de esquerda laicos se escapam ao dom) são, tantas vezes, alvo de leituras erróneas e parciais, provindas de nós, leitores, produtos de comportamentos intelectuais fabris, recolhidos em tocas ideológicas (as ideologias são uma misturada de Revolução Industrial, Messianismo e platonismo - a única Revelação que foi dada a Platão foi a da sua própria morte..., o resto foram exercícios demonstrativos do mito e entender isto custa ...). Convém então lembrar que a leitura pode ser uma forma de arte. E como? Basta rever os princípios do rito que estão presentes na construção de uma obra de arte (que como já referi começa e acaba na liberdade não deixando de ser um Rito). Outro princípio é aquele que diz que o artista se transforma a si próprio enquanto transforma a matéria prima. Outro princípio está em ir além do mestre, "matando-o". Todos estes princípios (porque necessitamos sempre de pontas por pegar senão cai-se no vazio vazio e não no vazio cheio - é este o erro do budismo acelerado e importado aceleradamente, aliás, esta visão acelerada também é produto da formatação do pensamento por via do decréscimo do trabalho manual... E estou convicta que nas aldeias japonesas muitos sabem disto - a elaboração de uma e uma só espada tradicional de samurais, dentro de uma família que possuí o segredo da sua elaboração, demora mais de um ano, todos estes princípios, dizia, podem estar subjacentes ao acto que é ler. A qualidade não é mensurável por se mover nestas águas. O acto de ler poesia, em voz alta ou não, é em si próprio um acto criativo. Se o autor não está ausente, o leitor também não o está e tratando-se nós de seres holísticos (embora muito esquecidos disso) imaginem a quantidade de possibilidades que vós, leitores, escondem dentro de si. Fernando Pessoa fragmentou-se todinho para que um dia os homens fossem poetas. Fragmentou-se em busca do seus leitores futuros, parte das suas saudades, iam para aí. Pelo caminho, sabia bem, teriam revelações, como ele as teve. Uma delas foi essa dos seus leitores futuros. Mas sabia perfeitamente que a visão parcelar das coisas contrariava a natureza humana que tende para o Absoluto. Então aqui em Portugal, nem se fala. E o que ele sublinhou isso... isso e a matéria-prima que é a língua portuguesa.


(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Um dia...




As crianças têm coisas destas sobretudo quando conseguimos algum silêncio no universo do nosso mundo adulto sempre mal arrumado e bem arrumado para as visitas... o exercício de Português pedia ao aluno que acabasse as frases. Era-lhe dado um sujeito da frase e o resto era com ele,  isto para que ele distinguisse o Grupo Nominal do Grupo Verbal na moderna línguisitica saída de um qualquer programa de computador. “Mostra”, pedi-lhe, para que pudesse ver se havia alguma coisa a corrigir.
Uma das frases tinha por sujeito dado: Os poetas. O rapaz acabou da seguinte maneira: fazem um poema todos os dias.
“Os poetas fazem um poema todos os dias”, melhor que qualquer oração, verdadeira brisa de Elias escrito num lápis tão leve que custava a ler.
Andei uns anos a ler umas coisas sobre Portugal e também andei uns anos por aí a ver o que via e não devia. Das coisas que li ficou-me uma certa tradição poética do país. E ficou também a importância dada à língua por poetas, escritores e até governantes. Ficou-me assim uma espécie de promessa misturada com uma espécie de evocação da língua portuguesa como se ela fosse, na sua essência, uma reunião das duas.
Creio que Pessoa teria gostado de ler esta frase do menino. Muito dele há igual àquele outro do seu poema que anda pelo Outeiro a correr e a jogar com pedrinhas. Tive mesmo pena que o poeta não estivesse ali ao meu lado. Teríamos olhado um para o outro e dito ao mesmo tempo:
“É esta a pedra invisível do novo tempo. Aquele no qual todos os homens farão um poema por dia na absoluta liberdade de poder escolher não o fazer”.
(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 9 de janeiro de 2016

A Louca Pressa e a Grande Aventura da Alma



A louca pressa que existe tanto na imediata adopção das vestes como na imediata adopção das atitudes (e estas ainda mais preocupantes porque provindas do mundo das ideias num imediatismo aflitivo, perto de um teatro descarnado, como se os homens fossem substituídos por marionetas), leva, no primeiro caso, ao discurso e à visão do mundo única e exclusivamente materialista – foi talvez esse o erro marxista, a adopção das vestes - e se este primeiro caso permite a desilusão e o ter de arrasar tudo para tudo iniciar outra vez, já o segundo, permite a ilusão prolongada, que acaba, mais tarde ou mais cedo, igualmente numa desilusão ou naquilo a que comummente se chama de crise existencial e, também ela, à imagem e semelhança do que a provocou, prolongada no tempo.
No mundo do espírito não há, nem adopção de vestes nem adopção de ideias porque ele se comporta como um organismo vivo. O que há, verdadeiramente é uma transmutação. Nada é adoptado, tudo é transformado. É nele que a alma é susceptível de ser conhecida. E conhecida de que forma? Imaginemo-la exactamente com os mesmos sentidos que o corpo tem só que amplificados por força da luz do espírito.
Por aqui se vê que, tanto a adopção das vestes, como a adopção de ideias, ambas recusam a aventura da alma, erro supremo nos nossos dias, provocando diálogos de surdos. A aventura da alma far-se-á sempre nua da adopção de vestes e ideias porque das duas uma, ou há um “choque tremendo” provindo do destino que a faz ver isso, ou já nasce assim espontaneamente e susceptível de ir criando as suas vestes e as suas ideias. É nesse sentido que os criadores, os criativos, se “puxam” a si mesmos. Colocam a alma à frente dos bois que são (numa pressa natural, esta sim, porque é conferida pela sua própria natureza intimamente ligada tanto ao destino sem livre arbítrio como ao destino com livre arbítrio consoante os casos e muitas das vezes convivendo ambos lado a lado....) e colocando-a assim, desbravam o caminho, sem que se dêem conta, evidentemente, ou são se dão conta a determinados momentos desse caminho e, a esses momentos, breves, chamamos de revelação, não sendo isso nada menos do que a revelação de uma determinada condição, também ela situada no tempo e no espaço com a felicidade de se entender o ponto da situação. Quando António Telmo aponta o seguinte facto: “a revelação do culto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma” [António Quadros e António Telmo – coordenação de Mafalda ferro, Pedro Martins e Rui Lopo – edições Labirinto das Letras, 2015, pág. 201], aponta o dedo em várias feridas e  na mesma página acaba magistralmente o texto de evocação a António Quadros com a seguinte frase “Os António Sérgios continuam aí.” aquilo em que se pode ficar a pensar é: Onde? Onde andam eles? Na dispersão das vestes e ideias adoptadas e nunca criadas ou sendo percepcionadas pelo insuflar dos “choques” do próprio destino. Creio que passar ao lado da poesia/filosofia portuguesa é o mesmo que passar ao lado da iniciação, ou antes, de parte da sua possibilidade que é a de ir entendendo e ir sabendo explicar, o que se vai passando. Toda a dinâmica do percurso iniciático dos nossos maiores poetas, Camões e Pessoa, foi feita a par e passo com a língua portuguesa e esta teve para eles a tripla missão de transmissão, de criação e de revelação. A louca pressa procura “fora” o que está dentro, no exterior o que dentro do nosso país vive, e coloca ídolos de vestes e ideias no lugar da alma portuguesa. Evidentemente que não se nasce neste país por acaso, até para alguns, não se vem ter a ele por acaso. Mas é necessário perceber esse “acaso”. Quando estamos no meio de um “acaso”, estamos finalmente nus, livres para criar a partir dele e aí começa a grande aventura da alma.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)