sábado, 12 de março de 2022

Dançar


Há coisas que nada têm a ver com a magia. São simplesmente indicadores de que existe algo que nos transcende e, como são indicadores que indicam, possuem as propriedades daquilo que é susceptível de uma comunicação e se comunicam, essas coisas, então só podem comunicar com algo em nós que, de alguma forma, é capaz de entender essa linguagem. Podemos gritar com um surdo, mas ele não ouve porque não tem ativo o canal que lhe permite ouvir. Assim, quando aquilo que nos transcende comunica, isso quer dizer que nós temos um canal capaz de receber essa mensagem transcendente e, mais do que isso, esse canal tem de ter adaptações susceptíveis de acomodar a mensagem, ou seja, essa canal tem qualquer coisa de transcendente, ele próprio. Desta forma simples se vê que o transcendente de alguma forma nos habita. Quando, por via desse canal me chega a mensagem "tu conheces este ser desde sempre porque ambos, tu e ele, estão para além do tempo e esse, além-tempo é composto de liberdade e composto pela liberdade, como um bosque onde verdadeiramente se respira (como se respirássemos pela primeira vez)", então isso quer dizer que parte de nós vive e respira nesse não-tempo. É por causa desta simplicidade, tão óbvia que me cansei de cientistas e os penso limitados. Nada desta simplicidade é aprendida nos livros (tão somente neles é, muito de vez em quando, reconhecida neles), ela é aprendida na vida e muito longe de qualquer experiência laboratorial ou psicadélica com fios pendurados na cabeça. Saber isto dá-nos alguma tranquilidade e um olhar paternalista sobre os cientistas, esses adolescentes que experimentam todas as drogas para ver se comprovam as suas teorias materialistas ou desmaterialistas (que são apenas materialismo ao contrário). Também de nada nos serve passar a vida a falar sobre "fenómenos". Mais tarde ou mais cedo, quase todos os indivíduos se deparam, nem que seja com um, é normal e é vulgar. Falar obsessivamente nisso é sintoma desconforto para com o sobrenatural. São mentes que bem lá no fundo "nem querem acreditar" no seu próprio relato. O corte ontológico, verdadeiro e profundo, é sempre traduzido no silêncio, também ele verdadeiro e profundo. E há, de facto, um corte ontológico. Também se tende a falar dos cortes ontológicos como se fosse a coisa mais natural do mundo e não é, quanto muito é sobrenatural e por isso não é natural no mundo. É uma espécie de vazio que há entre o possuidor e agente desse corte e o mundo. Uma fronteira que nem chega a ser fronteira porque é um vácuo, um deserto de silêncio e paz onde não se passa literalmente nada. É o fosso que separa o castelo da paisagem. Podemos ficar no fosso, a nadar com os crocodilos por muitos anos até porque os crocodilos, com as suas lágrimas, são incapazes de nos ver. A propriedade das lágrimas falsas é conduzir à cegueira, uma condução inevitável e benigna para quem se situa nas suas águas. A qualquer momento, tal qual os crocodilos (por pura osmose consciente e comportamental) saímos da água e podemos ir tanto para o castelo como para a paisagem, mas ao contrário dos crocodilos, que vivem em águas pestilentas e paradas, o nosso apetite é nulo. O dever nunca é um apetite. Enquanto os crocodilos saltam das águas para atacar, estes seres, que misticamente tratamos por "nós" e que eles não veem, saltam para dançar. Verificamos que é assim constantemente. Os cientistas estão a léguas-luz destes acontecimentos porque permanecem na paisagem, como pedras imóveis e optusas. Nós, ora nadamos, ora dançamos. E mais não fazemos até porque  não é caso disso. O nosso único dever, é de facto, dançar. 

 

sábado, 5 de março de 2022

Ab initio

 


https://www.rtp.pt/play/p10004/terra-historias-da-ceramica 

Porque quando a humanidade se encontra completamente desorientada, como é o caso, convém ir ao início. 

Relativamente às iniciações, sacerdotal, guerreira e artesanal, a hierarquia, quando se diz existir, conta apenas a história do lado externo do tema. Em todas elas, sem excepção, são os três níveis que são envolvidos no processo, que é sempre um processo cosmogonico, até mesmo a sacerdotal que visa a libertação desse mesmo processo. É apenas a sílaba tónica que muda, consoante a via (intrinsecamente  ligada a cada alma que a perpétua e a desenvolve). A magia não é iniciática, é apenas, e apenas por vezes, um aspecto rarefeito (e muito) da iniciação, mas muito apelativo em tempos de decadência ou de final de ciclo sendo este último também, e sempre, um aspecto totalmente rarefeito da humanidade. É caso para dizer que, quando a humanidade perde as suas características exemplares, modelares, o barro (donde provém), ainda que no seu aspecto caótico, como o desta fotografia, transporta o embrião da Obra embora, para isso, tenha de haver um recomeço, abrupto se fôr o caso do fim de ciclo da Idade Negra, na qual vivemos. Os minerais são os alimentos das plantas: neles colocam as suas raízes e desenvolvem a sua outra natureza, desta feita, ascendente e de outra espécie. A patologia humana acontece por amnésia de questões fundamentais, tais como, por exemplo, aquelas que são colocadas por estes oleiros neste documentário. Quem somos? Qual a demanda? O que é, de facto, o caminho? Tudo questões que andam a par com a matéria prima, seja ela o corpo, o coração ou aquilo que nos transcende como simples humanos. O barro, indivisível de nós, é o sustento do reino vegetal que transportamos na nossa memória ancestral, o mesmo reino que nos há-de devolver o Paraíso. Em tempo de queda vertiginosa, há uma preferência pelo Inferno, mas estas questões continuam intactas. Alguns dão com elas, outros, ficam diluídos no caos, incapazes de as colocar e de se pôr a caminho. Ficam estáticos como estátuas de sal pensando andar e sorrindo sarcasticamente de textos assim, sem se darem conta de que estão petrificados, de medo e de imbecilidade. O barro, esse, tem a virtude de se misturar com a água e, por isso, de ficar maleável. Da pedra ao barro, do barro à flor na terra e na jarra. Se não voltarem ao início, não voltam, nem vão a lado nenhum. 


sexta-feira, 4 de março de 2022


Que posso dizer mais senão que geraste o triunfo da poesia no meu coração?