quarta-feira, 25 de março de 2015

Barco com proa alta


 

O mais alto valor de Portugal é a liberdade (quantas vezes tendo como forma de expressão a independência...).  Colocou, a minha amiga Alexandra Pinto Rebelo, a fotografia da serra de Nossa Senhora do Socorro numa rede social. Estou certa que, lá em cima, bem no alto, e quando se olha em volta, usufrui-se desse sentimento de liberdade. Qualquer um pode subir a montanha. A forma mais rápida é em sonhos. Fechamos os olhos e, num rasgo estamos lá. No entanto, e embora o sonho seja veloz, como por exemplo o facto de se colocar a aprendizagem acima de tudo (forma de liberdade também), o sonho está no domínio do frio... (complementar do quente). Quem o faz em sonhos chega lá, mas quando acorda, dá-se uma sensação de frio, como se a justiça predominasse sobre a mesericórdia. A paridade entre o sol e a lua, permite a correcção entre ambos à medida que, tanto por via do sonho, como por via dos pés no caminho, permite um usufruto da liberdade cuja temperatura é semelhante ao paraíso. É como as formas de luz, que tanto Goethe tentou perceber: a luz pode iluminar a paisagem, como um objecto ou pode conter em si uma propriedade, uma espécie de fogo que, ao mesmo tempo que a desvenda a completa com um substrato cognitivo muito mais lento (mas mais duradoiro ao longo do caminho) do que esse salto, aparentemente irracional, que é o sonho, mas cujo resultado pode ser simplesmente acordar numa estepe deserta.

Quando Camões chama a atenção para o “saber de experiência feito”, chama, igualmente a atenção para o “saber de teoria feito”. A teoria, estranhamente, é o sonho. O sonho, em determinadas alturas precede a realidade, como a teoria precede a prática, como os arquétipos precedem o mundo... a experiência é o encontro com um certo “precedimento” ao mesmo tempo que já foi construido ou descoberto em nós... daí que, a verdadeira leitura, seja uma confirmação e que o paraíso, para certos sábios, seja poder ler e, finalmente, ler compreendendo. Indissociável, é portanto a liberdade do conhecimento. Falo do caso português como via. Ora a grande vantagem de um povo marítimo é esse mar que é todo liberdade. A grande lição é a aprendizagem da bússula, das estrelas, do astrolábio, num dialogo incessante entre terra e céu para melhor se saber do mar...

O substracto deste povo é de uma liberdade endémica. Volta e meia, e por via instintiva se sonha com o cume da montanha e daí as sucessivas revoluções sobretudo depois dos Descobrimentos, numa tentativa de re-alcance da liberdade perdida, no entanto, se formos atrás, e até Aljubarrota, a grande batalha foi a de definir as fronteiras face a Espanha (porque face ao mar não há fronteira numa viagem que é, em simultâneo para o futuro e para o passado) e ainda a construção de uma liberdade espiritual absolutamente sui generis... no modo como foi sendo edificada e mantida, com actos de violência máxima e de doçura máxima mas cujo o cerne, lá está, e volta e meia, reside sempre na procura dessa liberdade, num diálogo com o divino, (quantas vezes directo, dai a originalidade portuguesa...)  algumas vezes traduzido em paz,  não a artificial que hoje tanto vigora, mas naquela que dilui as dúvidas e os fragmentos, tão rara... e tão num ápice, mas ainda assim, existente por diversas vezes. O movimento é incessante.  Do que nos esquecemos  nas últimas revoluções, desde D. Sebastião, é desse principio de independência que é a primeiríssima forma de expressão da nossa liberdade, e esse esquecimento deveu-se, em grande parte, ao contágio com os problemas que nos vieram de fora, obrigando-nos a um circulo vicioso de pequenas revoluções necessárias para que nos mantivessesmos de pé, mas não totalizantes no que concerne a essa subida à montanha, confundindo-se esses pequenos rigores com o sonho, quando nem isso é. O que alguns autores nos vêem lembrar, é exactamente essa separação entre as guerras que não são nossas mas que as cumprimos por falta de alternativa e o aviso de que a par destas corre um sonho verdadeiro e útil que por sua vez corre a par com a realidade com os pés na terra. Quando um autor, mesmo que de forma implícita, faz esta separação, é absolutamente imprescindível dar-lhe atenção pois encontra-se num estado de lucidez e de sintonia com o país que pode estar na base de uma saída pelo alto a uma temperatura que permite a entrada nos domínios da liberdade feita de amor, e, por isso mesmo, quente e susceptível de ser partilhado por muitos e muitos anos e povos. É o chamado Banho Maria do nosso país, que, com um nome masculino (único na Europa), guarda em si, todas as Beatrizes, Sophias, Leonores, Margaridas que a Europa intuiu, ou não tivesse sido raptada, mas que, foi perdendo pelo caminho devido a guerras, algumas delas, francamente, desnecessárias. Não somos aqui uma espécie de Suíça, gelada, oportunista e indiferente a tudo. Muito temos sofrido em consequência da Europa, mas penso, sinceramente, que temos uma palavrinha a dizer à Grécia no que toca à ver acção pelo mundo, não feita de sugestões e alusões, mas feita de “experiência”. É que navegar no Atlântico é muito diferente de navegar no Mediterrâneo: poderemos ouvir os gregos, em parte, mas desde sempre soubemos que a terra era redonda e não quadrada como Tales pensava... Poderemos dar-lhe uma palavrinha, conversar um pouco, trocar ideias, mas Ulisses, quando partiu em viagem, chegou às colunas de Hercules e viu que tudo era diferente do que pensava, esse sim, com “saber de experiência feito”, fundou Ulissipo, na terra da Lux (itânia) cuja memória ainda era mais antiga do que a dele, porque mantida viva, não só em história... talvez por essa liberdade endémica que nos percorre as veias, obrigados que fomos a percorrer o mundo e, nessa obrigação, descobrimos, a um nível inconsciente, o que seria a verdadeira liberdade e como afinal, sempre havia estado em nós, na aparência de um castigo e no substrato, uma missão. Uma missão de libertação, evidentemente: entre a raiz e a flor, às tantas, não há diferença, queremo-la inteira para que possa haver mais. A eternidade reside algures aí, mas se nos darmos conta da luz com que é feita, hei-la desvendada aos nossos olhos, no seu verdadeiro esplendor, bem no meio de um jardim, no alto da montanha, toda ela em vida transbordante.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

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