terça-feira, 11 de dezembro de 2018

O Rei


Se o Rei é escolhido por Deus e elevado pelo povo a pergunta que se faz nem sequer é: "Mas onde está o Rei?", é "Onde está o Povo?"
Antigamente o povo era aquele que trabalhava com as mãos, fosse nos campos, fosse pescando no mar, fosse no artesanato. Bandarra, por exemplo, seria um mestre sapateiro. Era um mestre no seu ofício como havia mestres de embarcações e gente que tirava o mestrado na vida dura do campo. Os Mestres andavam pelo povo...e eram o povo, e por isso, porque haviam recebido o mestrado nos seus ofícios saberiam reconhecer os frutos bons. Os frutos do labor, os frutos da terra, os frutos do mar. Era gente que, por aprendizagem, na sua maioria das vezes colectiva (o que quer dizer que também aprendiam sobre a natureza humana e daí o saber ou sabedoria, em suma, o mestrado) acabava por saber reconhecer a qualidade e eram eles que, perante o candidato que lhes era apresentado pelas esferas maiores o elegiam, o erguiam em ombros ou numa salva (salvé!), acima do chão e o escolhiam como Rei, como pessoa com qualidades para essa função. O povo hoje praticamente não existe porque se desligou da natureza e dos trabalhos com as mãos. A sabedoria é teórica e quando não é, é com frequência individual, perdendo-se, em conjunto com a sabedoria do labor, a sabedoria da natureza humana. O Rei pode passar por entre as gentes mas as gentes não são mais gentes e o Rei fica no segredo dos deuses porque o povo perdeu a linguagem divina. As gentes que são quem mais ordena, mudas, cegas e surdas, autoelegem-se numa sucessão de equívocos e só com muita sorte, da do género da Lotaria, acerta num Rei. Mas é sorte, não é sabedoria... A sorte é transitória, a sabedoria, muito menos.

Cynthia Guimarães Taveira

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