terça-feira, 4 de junho de 2019

Aves




Dalila Pereira da Costa viu o Porto invisível, viu as paisagens circundantes doutras épocas. Viajou no tempo. Mística e escritora, devotada a Portugal. E porquê? Isso é aquilo que é mais estranho e inexplicável em Dalila. Só pudemos supor.
Os místicos, que segundo a velha máxima, falam todos a mesma linguagem, penetram nos mundos superiores onde lhes são reveladas verdades superiores, de muito difícil posterior transmissão, quer seja pela escrita, quer seja pelas artes plásticas, quer seja pela música. O que terá levado Dalila Pereira da Costa a debruçar-se tanto sobre Portugal quando as verdades de ordem superior, são de ordem superior e não têm pátria? Não tenho uma resposta exacta para isso. O interesse de Dalila pela nossa literatura não explica tudo pois nem toda a nossa literatura tem como assunto Portugal. Poderia ter-se interessado por outros autores, por outros assuntos, pelos costumes, pela História num campo específico, a sociedade, a economia. Poderia nunca ter mencionado Portugal e ficar-se pelo místicismo como "experiência de Deus", como o definia, e em termos gerais, pelo diálogo da alma com Deus, pela aproximação à salvação. Mas, ao invés disso, decide e dá a isso uma importância estrutural na sua obra, levar consigo Portugal e elevar Portugal para esse diálogo, para essa aproximação. Os nossos maiores escritores, Camões e Pessoa fazem exactamente o mesmo. A escrita maior é indissociável da pátria e do seu destino. Os nossos maiores ensaístas e pensadores fazem o mesmo, mesmo que desconhecidos e menosprezados pelo grande público. Camões só é relativamente conhecido por constar no programa de Ensino com algum destaque (embora a gramática estrague tudo, todo o prazer que há em lê-lo, pelo menos pela forma como é dada...), Pessoa é conhecido porque apanhou uma onda de marketing avassaladora e porque a sua escrita é apelativa e fixam-se bem certas frases, se não fosse assim, permanecia quase desconhecido. No fundo Pessoa é bastante desconhecido do grande público que se senta com ele na Brasileira na cadeira de chumbo. Quando aborda Portugal, Pessoa, então hoje, seria motivo das maiores polémicas e controvérsias e ninguém quer ir por aí: temas como a Monarquia, a República, o papel dos portugueses na História e no Futuro, a política, a Maçonaria, o Catolicismo... Bem, abordar esses temas hoje é atirarmo-nos para a fogueira. Na verdade, os grandes sempre quiseram saber de Portugal na sua vertente filosófica e sobrenatural. Dalila, grande também, optou pela reabertura das portas de Portugal ao céu, como António Quadros, como António Telmo, como Agostinho da Silva. Não haverá uma razão maior para que isso tenha acontecido com todos os nossos grandes? Sobretudo numa época de decadência do papel do transcendente? Serão eles maiores exactamente por terem esse papel? Se retirarmos a estes autores o tema "Portugal", tudo fica um pouco menos.  A sua relação com Portugal e as pontes que estabelecem entre Portugal e o céu são cruciais, são o eixo. O que os torna grandes já sabemos: é um pensamento, uma forma de expressão própria, uma personalidade única, coisa que já não se encontra. A época dos indivíduos acabou. O que temos são escolas, correntes, impressionistas, neo-historiadores (quase sempre dos Templários - parece uma obsessão das novas gerações), estudiosos dos grandes, ensaios sobre ensaios, pequenos apontamentos filosóficos que se diluem no tempo e no espaço, "discípulos" desses grandes, variações criativas nesta naquela área (surrealismo, criacionismo, modernismo, saudosismo - quase nada, revivalismos históricos - o cinema como motor visual desses revivalismos históricos, a velha cassete teosófica com as suas habituais divisões e subdivisões...) e pouco mais. Portugal estará condenado a ser um eco por falta de indivíduos de corpo inteiro e de meras refrações dos que partiram ou de correntes que se arrastam no tempo. A chamada "Arte contemporânea" não é arte e a dar atenção a esses assuntos cai também nas redundantes imagens-reflexos desses nomes que escreveram sobre o que fomos e o que somos. Escrever directamente sobre Portugal e sobre o seu papel no mundo, mesmo que seja pouco, se não for para ser dito nos encontros de "Reflexão" com auditórios maiores, quase sempre ligados à política e à sociologia e, por isso, longe da transcendência, parece ser uma árdua tarefa sem que cheire a mofo ou que remeta invariavelmente para "visões" já tidas pelos grandes. Este mundo é um "mundo cão" pelas injustiças óbvias mas também porque parece estarmos todos condenados a ser cães de algo que já se passou, obedientes, abanando a cauda, sem pinga de originalidade, ou seja, sem alguém que seja "um indivíduo" por estar ligado à sua própria raíz que se confunde com a de Portugal. O que temos são "observações" políticas ou sociológicas. Isto no dia em que faleceu Agustina. Lembrei-me de Dalila, a eterna esquecida no meio disto tudo que viu o Porto doutras épocas, viu "claramente visto". E que vemos nós "claramente visto" sobre este país hoje? Será necessário sentir esta dor da ausência no próprio corpo para poder ver, claramente visto, e depois transmitir? A mim só me ocorrem portugueses genuínos que conheci nos últimos tempos. Parece que só eles, como um resto esquecido, parecem guardar a raíz. São pessoas simples. Tão simples que nem se dá por elas. Mas guardam tanto. Os intelectuais estão demasiado envolvidos em escolas, vias, correntes e discipulados. Só se pode escutar o céu dentro de nós e ele diz-nos que, neste momento, só esses poucos portugueses simples ainda trazem a ligação de Portugal ao Céu dentro de si. Dalila sabia desse lado bom. Agustina estava demasiadamente envolvida no lodo da "vida a sério", uma perspicácia que atingia o povo directamente naquilo que era esse lodo, essa dureza, esse granito. Mas há um outro lado. Um lado celeste capaz das maiores proezas. Como cantaram Zeca Afonso ou os Madredeus. Não seria o momento de voltar a escutar essa gente antes que desapareça? O ensino em Portugal está a gerar uma geração que é uma geringonça de culturas (multiculturalismo). Precisamos de uma águia real que sabe quem é e para onde olha a voar lado a lado com a pomba que desce onde quer e quando quer. Na expo 98 fizeram uma "peregrinação" de geringonças, cada uma mais grotesca e feia do que a outra. É só isso que temos para oferecer a nós próprios? Esta dor que sinto, mais alguém a sente? Uma dor permanente.  Esta saudade absurda que me abala o corpo todo. O que é que se passa comigo? O que é que se passa com Portugal? Será isto estar junto à raíz? Será esta a raíz? O optimismo e o pessimismo são invenções modernas de quem vai para a guerra ou de quem vai ser operado. Sinceramente não quero saber do optimismo nem do pessimismo, isso nada tem a ver com a raíz. A raíz é outra coisa. É um nascer permanente, doloroso e luminoso. O péssimismo e optimismo é uma resignação camuflada. Nascer é uma indignação alegre, um choque permanente, um estado alterado de consciência porque se passou da inconsciência do útero para a consciência do ar. Nascer é ser ave. O elemento é o ar. O ar de inteligência, de mercúrio, de vôo, de proximidade com o Sol, do centro, da raíz. E essa raíz reside nos mais simples e nos grandes que foram. O resto é diplomacia e confusão. Precisamos de uma lufada de ar fresco que agite as flores das coroas dos mortos e as flores nos beirais dessa gente simples. Quase invisível como a brisa de Elias, mas que esteja lá. Não é de péssimo nem de optimismo, para isso vai-se à bruxa. Precisamos de gente genuína. É como a beleza. Onde quer que ela esteja. E de saber reconhecê-la, à beleza e a essa gente. Só assim saberemos que "alma temos".

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