domingo, 11 de agosto de 2019

Jóia de luz (título retirado de uma canção de Paulo Gonzo)



Conheci uma pessoa espantosa. Para ela o mundo era concreto e definido. Depois, quando lhe apetecia, brincava e dizia que não era. E tudo passava a ser como um sonho, cheio de símbolos e sentidos. Depois, ria-se, dizia que era a brincar e voltava logo para o mundo concreto e definido. E depois, depois, a seguir, nem o mundo concreto e definido, nem o sonho, nem os sentidos vários das coisas. Dava de repente um salto no ar. Erguia as asas e voava tão alto e tão concretamente que era impossível dizer que o mundo era concreto e definido e que os sonhos, os símbolos e os sentidos vários, fossem a única verdade. Ia lá acima e trazia a jóia. Descia, mostrava-ma e dizia: "Fui lá acima buscá-la para ti". E revelava-me assim toda a minha vida concreta e definida e todos os sonhos desse momento, numa jóia única e precisa, todas as suas faces estavam em harmonia e não havia dúvidas sombrias que toldassem a luminosidade dessa jóia. Era absolutamente incrível esse vôo e ainda mais incrível eram essas jóias com que fui erguendo um palácio, um castelo, uma casa, uma cabana... Ao longo dos anos. Pedra a pedra. Jóia a jóia. E, em volta delas cresceu de livre vontade o mais espantoso jardim, com trepadeiras cheias de personalidade e flores que saltavam para os pés das pessoas só para chamarem a atenção. Conheci uma pessoa espantosa capaz de me levar pelo caminho construído por mim, passo a passo, quase por instinto. Quem disse que os sonhos não têm também eles véus? Não é só o mundo concreto e definido que os tem. Essa pessoa rompia os véus todos, os de baixo e os de cima. Quando voltava, com o presente, eu, por dias, ficava suspensa a reparar na jóia. A observá-la, a confirmar a sua pureza, o seu calibre, o seu peso, o seu corte. Mas era sempre mais do que qualquer jóia que tivesse visto no mundo concreto e definido ou nos sonhos. Ficava entalhada em mim para sempre depois de muito a contemplar. E não havia nada, nem a força do mar, nem o vento, nem os maus instintos que a pudesse deslocar nem sequer um milímetro. À minha volta o jardim cresceu para todas as direcções como se quisesse explorar o espaço numa dança. Danço nele como uma criança, penso nele como uma adulta e vou para além dele como uma fada. Depois, vôo até lá acima e retiro as gotas-jóias que já estão polidas e brilhantes e dou-as a quem as vê.

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