segunda-feira, 4 de novembro de 2019
Alow I Win
Primeiro vieram com a história de que me tinham visto aparecer num lugar impossível.
Depois que tinham visto um fantasma qualquer em cima de um palco.
Depois, quando lhes acendi a fogueira com as mãos sem fósforos nem nada começaram aos gritos enraivecidas.
Se tivessem estado atentas teriam visto que já tinha pegado fogo a um ritual exterior anteriormente e que só o tinha feito por ser exterior, se fosse, de facto interior, nem tinha lhe pegado fogo, nem elas quando acendi a fogueira, tinham gritado tanto e chipalhado tanto pelos tempos sucedâneos.
Não se pode abordar as coisas de uma maneira séria porque assim lhes estragamos a brincadeira em que se "embruxam". Pintam muito os olhos de maneira a parecerem mais magnéticas e por dentro pensam que são Isís porque têm de ser antigas. Já lhes disse que o Catolicismo não me atrai, que quanto muito serve para ajudar os sem abrigo ou almas desabrigadas mas elas não querem saber. Não acreditam que sou bruxa. Preferem os feitiços delas aos meus. Só porque não me penso Ísis nem outra deusa qualquer... Ainda lhes tentei explicar que não é preciso sermos deusas para sermos bruxas, mas elas baralham tudo. Se são uma coisa, têm de ser a outra também. Não se ficam pela metade. Para elas sou só metade. Mas a realidade é que chispalharam quando lhes estraguei a brincadeira e levei as coisas a sério. Ainda ardem. E tudo isto só porque não sou deusa nem faço danças à volta da figueira. Se a imaginação é lata nelas, em mim não existe. Nunca imagino nada. Sou demasiado séria e elas não gostam. A imaginação é toda delas. A mim não me foi dado o dom de criar nada. Sou uma espécie de funcionária pública ao serviço do Estado Geral do que Há-de Ser. Se me pedem para acender uma figueira, acendo-a. Não imagino que a acendo. Bem, na verdade, às vezes imagino que me aceitam como sou, na minha pequenez. Na minha visível ausência de divindade a trespassar-me o corpo e os gestos. Isso é para elas. As deusas. São muitas. E videntes. E brincalhonas. Calhou-me este eterno carimbar de formulários à entrada do Olimpo. Nunca entrei nele. Nunca fui convidada e sou educada. Não vou agora entrar assim por ali, sem mais nem menos, e incomodar deuses tão ocupados. Saio às cinco e depois vou ver a telenovela da noite. Será que a Rita vai casar com o Armando? É isso que me mantém presa à história que começa sempre já muito depois do jantar. Janto cedo. A novela está bem feita. Com bons actores e bons planos das paisagens que habitam. Mas a minha opinião não conta para nada. Na verdade, em matéria nenhuma. Só me incomoda que não vejam isso. Não saibam isso. Se a minha opinião mudasse, a telenovela continuava na mesma o seu caminho. Com altos e baixos, encontros e desencontros. E amanhã iria na mesma carimbar formulários à porta do Olimpo e talvez até, de vez em quando, sonhar como será lá dentro. Como se vestem, que decoração fizeram... Mas sou uma bruxa pela metade. É essa a minha condição. Levo tudo a sério demais. Talvez até pense demaisado nas coisas mas sem chegar a conseguir ser uma deusa. Elas não me perdoam isso. Queriam que eu fosse como elas, que não levasse tudo tão a sério e não pegasse fogo às coisas. Mesmo sem querer. Ou por querer, não sei.
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