terça-feira, 20 de outubro de 2020

Nevoeiro


 

O tempo está parado e quadrado. Parece que não se mexe. Nevoeiro denso que envolve e aniquila o horizonte. Penso no que vi e vivi e para quem servirá a não ser a Deus como testemunha. Deus consola-nos por ser testemunha. Ouve alturas em que o olhar estava alterado, mas outras em que estava límpido como cristal. De que somos feitos? De que memórias, mais do que de histórias? Porque as histórias escritas encerram um final, as vividas nunca estão acabadas. Pulsam como no primeiro dia em que vieram à luz. Parece que queremos escutar sempre qualquer coisa no intervalo em que alguém nos escuta e vice-versa. As proporções variam como uma mistura de tintas ainda não totalmente acabada, com veios de cores claras que se envolvem com as mais escuras. A minha filosofia é demasiado prática e a minha prática demasiado filosófica e nunca encontro bem a verdade. Ela aparece-me sempre pouco precisa num lusco fusco. Daí que nunca consiga afirmar coisas como a última e derradeira verdade. Quando o faço, a isso chama-se crença e a crença é sempre um salto no escuro. Verdadeiro, mas é um salto. O tempo hoje está parado e quadrado. Ouço carros ao longe a deslizarem sobre o asfalto molhado. São mais audíveis em dias de chuva. Sobrevaloriza-se tanto a prática como a filosofia. Deviam ambas ter um meio termo. É por isso que só me encontro com artistas. Aquilo a que se chama encontro. Com filósofos ou gente que só faz e pouco pensa, parece que fico no silêncio interior, sempre à espera que alguma coisa aconteça. E, normalmente, nada acontece. Seguem o seu caminho alegremente. Quer no caminho das ideias, quer no caminho das coisas práticas. Imagino-os num caminho alegre, debruado de flores, tão diferente do meu, cheio de abismos e de estrelas incríveis visíveis na abóbada celeste. Cansei-me de fazer ensaios. Podia pegar num qualquer texto de um qualquer autor e fazer um ensaio. Uma interpretação. Dizer, por outras palavras o que ele quis dizer, e reuni-lo a outros autores em pontes várias, chamando a atenção para as diferenças e semelhanças. No fim dizer. “muito interessante”, mas é só isso. Os ensaios são muito interessantes, mas, com o tempo, esquecem-se, perdem-se nesse mundo das ideias enquanto procuram um porto onde possam ancorar e tornar-se coisas. Todas as preocupações de todos os condutores dos carros que ouço ao longe são diferentes das minhas. Nenhum se preocupa por estar um dia quadrado e com demasiado nevoeiro para se ver o horizonte. Ninguém deu o nome ao dia de “quadrado”. Nenhum ficou preocupado com isso. Só a mim essa palavra me faz cócegas. Me chega a amedrontar até. Tudo produto da imaginação. Deste silêncio onde ela ecoa. Agora são os cães que ladram a alguém que passa na sua rua. Querem dizer qualquer coisa, mas ninguém entende o que dizem. O que dizem na sua imaginação que ecoa no silêncio da rua, quando alguém passa. Tenho uma tonelada de livros para ler. Já não os vejo bem como livros. Os livros são sempre romances. Aquilo que tenho é uma pilha de ensaios para ler. Uma série de autores que resolveram ensaiar. Os ensaios não são livros. São fardos de palha onde procuro sempre uma agulha, qualquer coisa que acrescente um conhecimento a uma outra pilha de conhecimento que não está escrita, reunida. O meu conhecimento nunca é muito sólido nem solidificado. Parece que se instala no olhar que deito às coisas. Refugia-se aí para não ser apanhado pelas letras e pelas leituras. É a forma como olhamos para as coisas que nos diz o que realmente conhecemos. E os meus olhos, neste dia quadrado e cinzento parece que esperam qualquer coisa. Um raio de sol qualquer que atrevesse todas estas nuvens, como a alma quando se eleva e consegue atravessar as nuvens em direcção à luz. Como se esperasse assim a alma do sol, numa viagem feita ao contrário, de cima para baixo, em vez de ser eu a ir ter com ele.

 

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