sábado, 13 de março de 2021

O salto


 

 

Raros foram os povos que, como o nosso, tiveram acesso a tamanha reflexão sobre si próprios. A História foi passada a pente fino e entrecruzada com a análise do temperamento português. Antes de Freud, já nos evidenciávamos por não sabermos quem somos. Essa pequena questão é, de facto, o grande passo para a Humanidade e não aquele na lua que foi só ir mais longe numa extensão de espaço: também o Sol faz o mesmo e não se gaba.

Em doses letais, nós, por outro lado, sempre oscilámos entre a admiração por nós próprios e a autoflagelação. Isso torna-nos um povo permanentemente espantado connosco próprios. Se o espanto é bom por um lado, pois essa capacidade de nos espantarmos releva uma abertura interior e fresca, por outro aldo, viver em constante espanto, pode conduzir-nos à inércia dos corpos em queda. Um espantado só está espantado e o espanto é tão grande que não cede uma parcela da sua soberania a qualquer outro estado de espírito. Com tão grande espanto não é possível que nos aconteça um projecto nacional. Evidentemente que ele existe na virtualidade e não é pequeno. É um espanto de projecto que passa pela redenção do mundo inteiro. O grão de mostarda que somos, não se contenta com menos. Redimir o que seja não está na moda e, por isso, é muito difícil passar desse estado de sonho uma vez sonhado para a realidade que pensamos ser aquela que nos chega pelos sentidos a toda a hora. A ciência e a sua autodenominada “qualidade de vida” veio a substituir palavras como redenção, salvação, sublimação, absolvição, purgação, recuperação, expiação… a qualidade de vida “científica” parece ficar-se por uma espécie de saneamento básico do corpo, das mentalidades e do “equilíbrio psicológico” cujos pratos da balança só estão equilibrados se a pessoa for “estável”, ”de bem consigo”, “de bem com os outros”, sem grandes sobressaltos ou solavancos: a paixão, como delírio, é olhada com paternalismo, uma “fase”, uma breve passagem pela loucura para que o matrimónio com o mundo, aborrecido e aberrante, se instale, numa perpetuação da obediência a um contrato não pedido para com os males do mundo. Em suma, o “estável” é aquele que aceita as coisas como são porque já se aceitou como ser humano, coberto de fraquezas, defeitos e fragilidades, tal qual o mundo e que aceita tudo, inclusivamente o seu papel no que toca a perpetuar o mundo e as suas debilidades, num jogo espelhado. É assim que se torna “príncipe deste mundo” e o espanto nunca o atravessa como uma lança como atravessa este povo sempre que se supera a si próprio, tanto para o melhor como para o pior. O sentimento de “incompletude da obra” é mais forte do que qualquer estabilidade. Se é certo que estamos a descer vertiginosamente, em queda livre, na verdade, não deixamos de estar espantados e espantados chegaremos ao termo da descida, ou seja, no embate estaremos conscientes e com todos os sentidos alerta. Despertos. Quem embate desperto não cai no chão, cai numa rede e o pulo é imenso. É até capaz de voar. E voa. A redenção é uma obtenção de uma parcela de liberdade. Se por um lado, como escreveu Gedeão, “pelo sonho é que vamos”, por outro, pelo espanto é que voamos. Os dois juntos formam a salvação que está a anos-luz das trevas da chamada “qualidade de vida” a qual não foi ainda muito bem definida parecendo-se bastante com aquele lençol mais curto do que o corpo. A qualidade de vida portuguesa nada tem a ver com a qualidade de vida do saneamento básico nas suas múltiplas vertentes. É uma qualidade que se projecta num outro mundo, sonhado e não neste onde nunca chegaremos a príncipes. No outro, somos imperadores porque já nascemos nele e para ele espantados, ainda que apenas sonhados. Por enquanto.


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