Raros foram os povos que, como o
nosso, tiveram acesso a tamanha reflexão sobre si próprios. A História foi
passada a pente fino e entrecruzada com a análise do temperamento português. Antes
de Freud, já nos evidenciávamos por não sabermos quem somos. Essa pequena questão
é, de facto, o grande passo para a Humanidade e não aquele na lua que foi só ir
mais longe numa extensão de espaço: também o Sol faz o mesmo e não se gaba.
Em doses letais, nós, por outro
lado, sempre oscilámos entre a admiração por nós próprios e a autoflagelação. Isso
torna-nos um povo permanentemente espantado connosco próprios. Se o espanto é
bom por um lado, pois essa capacidade de nos espantarmos releva uma abertura
interior e fresca, por outro aldo, viver em constante espanto, pode conduzir-nos
à inércia dos corpos em queda. Um espantado só está espantado e o espanto é tão
grande que não cede uma parcela da sua soberania a qualquer outro estado de
espírito. Com tão grande espanto não é possível que nos aconteça um projecto
nacional. Evidentemente que ele existe na virtualidade e não é pequeno. É um
espanto de projecto que passa pela redenção do mundo inteiro. O grão de
mostarda que somos, não se contenta com menos. Redimir o que seja não está na
moda e, por isso, é muito difícil passar desse estado de sonho uma vez sonhado
para a realidade que pensamos ser aquela que nos chega pelos sentidos a toda a
hora. A ciência e a sua autodenominada “qualidade de vida” veio a substituir
palavras como redenção, salvação, sublimação, absolvição, purgação,
recuperação, expiação… a qualidade de vida “científica” parece ficar-se por uma
espécie de saneamento básico do corpo, das mentalidades e do “equilíbrio
psicológico” cujos pratos da balança só estão equilibrados se a pessoa for “estável”,
”de bem consigo”, “de bem com os outros”, sem grandes sobressaltos ou
solavancos: a paixão, como delírio, é olhada com paternalismo, uma “fase”, uma
breve passagem pela loucura para que o matrimónio com o mundo, aborrecido e
aberrante, se instale, numa perpetuação da obediência a um contrato não pedido
para com os males do mundo. Em suma, o “estável” é aquele que aceita as coisas
como são porque já se aceitou como ser humano, coberto de fraquezas, defeitos e
fragilidades, tal qual o mundo e que aceita tudo, inclusivamente o seu papel no
que toca a perpetuar o mundo e as suas debilidades, num jogo espelhado. É assim
que se torna “príncipe deste mundo” e o espanto nunca o atravessa como uma lança
como atravessa este povo sempre que se supera a si próprio, tanto para o melhor
como para o pior. O sentimento de “incompletude da obra” é mais forte do que
qualquer estabilidade. Se é certo que estamos a descer vertiginosamente, em
queda livre, na verdade, não deixamos de estar espantados e espantados
chegaremos ao termo da descida, ou seja, no embate estaremos conscientes e com
todos os sentidos alerta. Despertos. Quem embate desperto não cai no chão, cai
numa rede e o pulo é imenso. É até capaz de voar. E voa. A redenção é uma
obtenção de uma parcela de liberdade. Se por um lado, como escreveu Gedeão, “pelo
sonho é que vamos”, por outro, pelo espanto é que voamos. Os dois juntos formam
a salvação que está a anos-luz das trevas da chamada “qualidade de vida” a qual
não foi ainda muito bem definida parecendo-se bastante com aquele lençol mais
curto do que o corpo. A qualidade de vida portuguesa nada tem a ver com a
qualidade de vida do saneamento básico nas suas múltiplas vertentes. É uma qualidade
que se projecta num outro mundo, sonhado e não neste onde nunca chegaremos a
príncipes. No outro, somos imperadores porque já nascemos nele e para ele
espantados, ainda que apenas sonhados. Por enquanto.
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