terça-feira, 19 de outubro de 2021
O jardim
Andava a fazer um jardim sem que o soubesse. E um dia reparo que todos os objectos juntos, adquiridos ao longo dos anos, na sua grande, grande, enorme maioria, tinham elementos vegetais, folhas, flores, caules. Aprendi agora como o jardim se torna vivo ou ligeiramente amargurado conforme o seu jardineiro se vai sentido ou vai dando um sentido à sua própria vida. À frente, tenho um jardim para guardar e ele vai adquirindo um verde espesso, uma espécie de potência que só o verde escuro consegue ter. Guardar um jardim é um acto bíblico. A ecologia é uma queda de algo muito mais profundo. É a queda da metamorfose da alma no mais rasteiro sentido prático da existência. A ecologia é um simples eco de uma palavra maior: guardiões. Os que guardam. E, os que guardam, acompanham e fazem-se acompanhar. É esse o significado de guardar, mais tarde caído em mãos bélicas, tornou-se defesa de um potencial ataque. É nessa companhia que se transmuta alguma coisa porque não há obra sem criador nem criador sem obra. É todo um mundo diferente dos factos. Num jardim não há factos porque nada está fixo. Tudo cresce, muda. Questionava-me o porquê de não querer guardar muitos factos na memória, alguns apenas, como portais. Num jardim, não existem muitos, talvez a fonte, mas até essa jorra. E a ideia de evolução parecia-me ridícula quando me perguntavam se tinha "evoluído". O jardim não evolui, limitam-se a ir sendo. Era a primeira flor mais imperfeita do que esta última? Parece estranho, mas todas estas evidência tornam impossível um diálogo com os coleccionadores de factos e com os "vaidosos" do seu caminho. Um jardim assim murcha logo, ao primeiro passo de orgulho na colecção de factos que pensam ostentar. O meu mundo interior é tão estranho como um jardim, tão intrigante como a sua espontaneidade enquadrada na perfeição do gesto do jardineiro. Ao regar sinto a terra a absorver a água, os nutrientes a deslocarem-se e a ficarem mais acessíveis às raízes, as plantas a ficarem mais viçosas. Se não imaginar isto tudo, nada se passa, e a rega é uma chuva anónima sem o fogo da paixão pela vida que faz deslocar os nutrientes para a posição exacta, e não ao acaso, num jogo de sorte ou azar. Se não imaginar isto tudo o jardim não toma a forma do meu coração nem o meu coração se torna num jardim intrigante. Só assim, as nossas raízes tocam o mistério do mundo, o nosso e o da criação inteira. E é um acto íntimo e invisível cuja repercussão não sabemos. Os guardiães são seres intrigantes. Parecem parados. São o motor imóvel. Os que estão próximos do centro. Tão próximos que nem sabemos se são ele mesmo. Guardar o jardim é um acto bíblico. Não é um acto ecológico. Até porque não tem nada de lógico. É intrigante por isso mesmo. Porque nunca se sabem quais as repercussões. A ecologia está plasmada na linguagem académica, erudita, factual. A ecologia está longe do jardim e não conhece o perfume das rosas. Conhece compêndios. Acções e reacções. Causas e consequências. No jardim tudo é causa e consequência em si. Desta maneira, não sou ecologista. Abomino a palavra tal como abomino os eruditos. São seres fragmentados em factos. E não têm nada de intrigante, nem de misterioso porque se limitam a expor factos, como se estes fossem roupa estendida à janela para todos verem. E a ecologia é a sua filha bem comportada. Irritantemente bem comportada. Bem vestida. Debutante. Deputante. O jardim é livre disso tudo. É fresco e muda de humor. Tem bom humor, mesmo quando não tem. É tão parecido com um coração verdadeiro.
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