Já alguns me disseram não entenderem o que escrevo. É natural, acabamos com um pensamento paralelo porque temos também uma vida paralela. Mas tudo parte sempre do mesmo: a tentativa de explicação das coisas, não apenas teoricamente, mas efectivamente, na vida como acção. Embora não entendam, sei que podem entender se perceberem que se tratam de tentativas de explicação. Não são verdades absolutas, embora possam dar essa impressão. Cada vez me preocupo menos com o público na exacta proporção em que ele cada vez menos procura explicações para as coisas. Aliás, o público não me diz nada porque a sua função é estar calado e, na maioria das vezes não está, o que dificulta, e muito, a minha aproximação ou proximidade para com o público. Não está calado por uma de duas razões: no momento da leitura está ocupado a dizer que não entende ou então está ocupado a dizer que discorda sem perceber porque é que discorda. Os primeiros instalam-se confortáveis na humildade de não saberem, o que os impede de serem ousados, os segundos, instalam-se na ousadia de saber mais do que o texto, o que os impede de serem humildes. É assim que os textos não são feitos nem para gregos nem para troianos. São feitos para Egípcios. Evidentemente que poucos entendem o que quero dizer com isto, mas posso explicar: a Grécia mergulhou na Era da Filosofia e da Política, os Egípcios deixaram-se submergir, primeiro com o dilúvio, depois com a decadência natural que esse mesmo dilúvio trouxe: a inauguração desta Era do Fim. Com eles, a Sabedoria que ainda existia foi-se tornado ténue até que se dissolveu em águas turvas, característica do afastamento da Tradição. Tal como os seus antecessores pré-diluvianos, deixaram-se encantar pela magia e acabaram por alimentar monstros invisíveis que não se coibiram de crescerem e de aumentarem em número à medida que provocavam o desgaste do povo egípcio, cada vez mais decaído e confuso e mergulhado nas vicissitudes da política. Escrevo única e exclusivamente para os resquícios da memória e para os já avisados de que há monstros invisíveis que não devem ser alimentados, sob pena do desaparecimento daqueles que os alimentam. Nada, ou quase nada me agarra ao mundo ou à escrita (que para mim é quase a mesma coisa, infelizmente), excepto está sensação de dever. O prazer é quase nulo. Prazer sinto em enfeitar o mundo. As palavras só me provocam desconforto e tornam os outros desconfortáveis, exactamente o oposto do que acontece quando enfeito o mundo. As palavras são duras porque o mundo se tornou num lugar duro. Há quem pense que se escrever sobre borboletas ou flores e teimar em descrever a paisagem intacta dentro de uma moldura fotográfica que faça a separação entre o belo e o horror da construção humana actual, o mundo se torna subitamente belo. Más notícias: não são as palavras que tornam o mundo belo, é o facto de o enfeitarmos que o torna belo. As palavras só servem para despertar e ninguém acorda neste mundo como se acordasse no paraíso com um sorriso nos lábios. Acorda-se mal. Para um mundo que está mal e que é urgente enfeitar, tornar belo. E a beleza está no antigamente e está lá porque era total. O equilíbrio, a harmonia, a sabedoria conjugavam-se como hoje não se conjugam: se está presente um destes elementos, falta um outro e vice-versa. É essa totalidade que nos faz sentir a Saudade. Uma completude que hoje não temos. Se me armar em santinha e dizer que a paisagem é linda vista apenas de um pequeno ângulo, e apenas desse ângulo, não faço outra coisa senão enganar as pessoas. E pior, enganar-me a mim. Os outros já vimos que não querem explicações para as coisas ou porque segundo eles "não têm capacidade para tentar tê-las" ou porque "são super-capacitados" e já as têm". Escrever nunca me fez bem, nem o que escrevo é um acto de cura para quem quer que seja. Os que estão doentes devem dirigir-se ao médico, os que estão cegos e surdos (e nunca mudos) devem destapar os olhos e os ouvidos, acto que não é a cura de coisa nenhuma excepto da inacção de não os destaparem. A inacção nunca foi uma doença, é apenas uma opção. Esta é a questão. A da caveira é outra coisa, Shakespeariana, até porque a caveira já nem vê, nem fala, nem come, não faz nada a não ser esperar ressurgir vivificada em carne ou em luz, conforme os casos. Aqui a questão é muito mais simples, muito menos complexa (normalmente preferem Shakespeare porque é mais difícil ainda...), aqui a questão é a de ver e ouvir com ossos envolvidos em carne, em sangue e vida, algo que constitui o público. E, no momento em que começam a ver e a ouvir começam também a lembra-se e, aí, entendemo-nos porque escrevo apenas para os antigos egípcios, ou antes, para os resquícios de memórias, estejam elas onde estiverem. Até podem estar aqui, em Portugal, mas se não forem memórias, não são nada. Só quando nos lembramos é que podemos avançar e começar a ler então a questão Shakespeariana. Que nem sequer é dele. É de todos.
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