domingo, 12 de dezembro de 2021
Portugal
No meu caso, foram os genes e a memória ancestral, que não se sabe bem donde vem, que me trouxeram à consciência Portugal. Isso e o avião que, aos oito meses me fez regressar a este país. Livrei-me de educações tendenciosas exactamente na idade em que era suposto tê-las tido e, por isso, não sou católica, nem andei vestida de anjinho nas procissões. Portugal chegou até mim a partir de dentro, que é aliás donde deve vir sempre para não fazermos figuras ridículas. Assim, não caímos na piroseira do menino Jesus vestido com rendinhas, nem na armadilha do bicho-papão do "pecado", nem na pata do Portugal cinzento e salazarista, amorfo e atrasado, triste, imensamente triste, se posto lado a lado com a sua grandeza histórica. E, pior do que isso, criador de gerações que não se livraram não só do cristianismo sentimentalista como de pedir penitências a toda a hora e de lavar sistematicamente os "pecados" com água benta só porque a água lava tudo... o meu primeiro Portugal foi marinho, como aliás deve ser qualquer Portugal decente. Nascido no mar, imbuído de maresia e com memórias mais antigas do que qualquer lembrança palpável. O meu segundo Portugal, foi da terra. E lembro-me de instantaneamente, com cinco anos, ter decorado a letra de um cante alentejano, "Ao romper da bela aurora", a primeira vez que o ouvi, tal a impressão que me causaram aqueles sons graves e lentos. Depois foi o Norte que reconheci imediatamente como berço. Tudo era um reconhecimento e, daí, vir de dentro este Amor. E certo e verdadeiro e muito longe de estereótipos. A quem são dadas as injecções culturais e conceptuais em vigor no momento é-lhe vedada a porta ancestral. Confunde-se Portugal com a Miséria propagada pelos lares, com a ausência de Espírito Crítico, propagada, muito mais do que se pensa, pelo Tribunal do Santo Ofício, com capelinhas-refúgio e templos de má-língua, com procissões incensadas a cânticos de igreja profundamente enjoativos e mal cantados e herda-se esse desespero cego infligido durante séculos a tal ponto que a vida se torna uma tentativa frustrada de santidade disfarçada com laivos de Descobertas e medievalismos importados da Europa sem se colocar os olhos nas escarpas, nos abismos, nas enseadas, e no pulsar da terra e dos tambores. Até Cristo se enjoa do tanto de errado que se fez em nome Dele. Quando apareceu em Ourique, preocupou-se com as gerações vindouras e com o território português em si: um país a meio caminho de se tornar completo e com um perfil único e não com o facto de sermos ou não santos. A missão de Portugal é a de ter gente igual a si própria e única e é nisso que, no meio de tantas tormentas, ainda conseguimos ter, embora cada vez mais, aqui e ali, sendo que o "aqui e ali" tenha vindo a sofrer um espaçamento cada vez maior. O reconhecimento de Portugal obriga a um certo silêncio, a uma certa pré-disposição interna porque consiste num chamamento. Sem esse silêncio aquilo que existe são pre-conceitos, primeiro infligidos e, com o passar dos anos, auto-infligidos e repetitivos. São as manhãs que são sempre frescas, quando a terra desperta e o mar aquece. E nelas há uma limpidez primeva que não se alcança se pensarmos que somos cavaleiros disto ou daquilo e que temos como missão "puxar" outros para serem como nós. Deus só nos pede que sejamos iguais a nós próprios e essa é das missões mais difíceis do mundo, porque o sonho do que somos como pessoas e como país é Absolutamente Abstracto. Mal começa a ser definido cai no dogma, na facção, no Partido. Essa unidade de alma entre nós e o país é o segredo mais bem guardado, na caverna mais secreta, entre o mar e a terra. É um diálogo íntimo no qual nenhum, nem o país, nem a pessoa se perde, e os dois se perdem um no outro, em fusão. Como se vê, isto nada tem de estereótipos enquadrados em qualquer tempo ou evento meramente cultural porque se trata de um diálogo entre almas genuínas ao longo do tempo e em movimento. É a seiva do país. E nos sabemos qual o papel da seiva, mar terrestre, na árvore da Vida...
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