Quanto mais a ciência persegue a exatidão, mais imprevisível se torna a história do mundo e talvez seja por isso que a inexatidão das coisas antigas me encanta, paradoxalmente tornam tudo mais exato, menos viscoso, menos inseguro. Provavelmente é por se encontrarem longe no tempo, quase inacessíveis no seu exacto contexto, mas são confortáveis. Quadros, livros, ideias no crepúsculo do nosso tempo interior, de sombras e luz. Bem-aventuramo-nos, por isso, a afirmar que as coisas de hoje, guerras, pandemias, e historietas de ideologias fáceis não nos suscitam comentários vigorosos, fogosos e sobretudo duradouros. Em conversas com os outros vamos concordando com tudo, não por não existir paciência para discussões, mas sim e ainda mais interessante do que isso, nada do que seja actual nos leva a gritar em plenos pulmões. Se nos perguntarem se uma rosa está mal colocada num arranjo de flores, aí sim, o nosso coração balança e ou se a inestética for em demasia, franzimos o sobrolho, de resto, o vazio é tanto que o deserto parece cheio.
As nossas crónicas parecem fluir numa conversa íntima com Deus e da qual os outros se encontram apartados. Elas acontecem diariamente, no carro, na cozinha, na paisagem. Mas são apenas dúvidas. Não há nada menos pitoresco do que crónicas feitas de dúvidas, sobretudo se não cessarem nunca e se multiplicarem à medida que os anos passam. Deve ser por isso que o silêncio é d’ouro, para não serem reveladas as dúvidas mais profundas, os mais insistentes desconcertos entre nós e a suposta realidade, os mais flagrantes desacertos sempre que avançamos com qualquer opinião sobre qualquer coisa seguida de uma avalanche de argumentos, factos ou delírios que a contradiz. Apraz-nos, sobretudo observar. Aí sim, o nosso silêncio é proveitoso nem que seja pelo simples facto de não fazermos barulho e podermos observar. É proveitoso para nós, não por egoísmo voluntário mas sim, involuntário. Quando nos respondem com silêncio é natural que façamos o mesmo, ainda que não seja um acto absolutamente voluntário, mas sim produto do contexto silencioso. Quanto mais barulho há no mundo, mais silencioso ele se torna, porque qualquer ruído morre morto por outro ruído qualquer. Vivemos num mundo altamente silencioso.
Mas também vivemos num mundo com uma determinada forma de pensar. Podemos chamar a esse modo de pensamento o modo de comer ocidental. Como bem observou Octavio Paz nos seus escritos sobre a Índia, os ocidentais comem linearmente: primeiro a entrada, depois o primeiro prato, depois o segundo prato, depois a sobremesa, depois o digestivo, se for caso disso. Os pratos sucedem-se. A nossa mesa sempre foi indiana. Houve sempre a vontade de colocar tudo de uma vez em cima da mesa e de comer pequenas porções seguindo sempre a ordem do capricho e que é inexata. O pensamento produz-se da mesma forma que comemos. O pensamento sequencial do tipo de Era do Progresso de Comte, impera. A seguir a um acontecimento, vem outro, fruto do primeiro. É a chamada prisão gastronómica do pensamento e, consequentemente, da forma como olhamos e estamos no mundo, paradoxalmente cada vez mais caótico, imprevisível, paradoxal e angustiante. Ao invés, os indianos tem uma mesa em que os vários pratos, ou pequenos mundos gustativos, vivem e são saboreados em simultâneo, numa unidade circular, numa perfeição alimentícia que segue o capricho, o impulso, a impulsividade, o paradoxo voluntário, a refeição-caos onde se mergulha de cabeça, o deleite, em vez da angústia de não possuirmos espaço no estômago para o próximo prato, chato, aborrecido e sequencial.
Nos códigos internos de Fernando Pessoa, “ir à Índia”, segundo me explicou uma pessoana, quer dizer “satisfazer os apetites do corpo”, sem dúvida que o poeta intuía as Índias interiores que percorremos nos Descobrimentos. A satisfação glutona dos desejos imediatos arrisca-se a ser o próprio processo artístico. Colocar aquele determinado azul na pintura, só porque nos apetece quer dizer duas coisas em simultâneo: que nos apetece e que não nos apetece porque é o nosso ser superior, em contacto com algo maior do que nós que nos conduz ao apetecimento e daí que o capricho seja um caos aparente. Numa época tecnocrata isto equivale a falar do fim do mundo. O improviso é o seu filme de terror. Mas é ele que nos concerta o mundo e que nos retira do caos, num “de repente”, absolutamente contrário ao pensamento sequencial.
O problema da tecnocracia tem sido o seguinte: sempre que esta falha (e falha vertiginosamente quase em tudo), responde-se, emenda-se ou tenta resolver-se o problema com mais tecnocracia. A espiral auto-destrutiva do que, em si, já o é, expande-se exponencialmente. Um caçador-recolector pode esperar o mínimo de previsibilidade quando caça e o máximo de improviso quando atinge o alvo. Só assim caça. O mesmo se passando com o que recolhe: vai andando e recolhendo, aproveitando o mínimo de uma lógica sequencial e seguindo o faro invisível do seu ser animal, instintivo, imprevisível, mas suficientemente ordenado para ter permitido a sobrevivência da espécie. Não há como demonstrar (nesta época de cabeças de ananás) tal facto, até porque a demonstração requer uma sequência com a qual o improviso não se coaduna e de maneira que são mundos que embora pudessem estar unidos no início numa fusão imperceptível, hoje, estão apartados e os físicos já deitam as mãos à cabeça à procura de novos instrumentos para perceberem como é que tudo isto funciona porque aqueles que têm à disposição parecem não chegar para uma realidade que é maior do que eles, até porque esta incluí a metafísica, essa chatice que estraga tudo à ciência. Numa mesa indiana, servimo-nos de vários pratos ao mesmo tempo, tal como um florista vai colhendo as fores de improviso e um caçador-recoletor, ensaia os passos da dança da natureza durante o serão, à volta da fogueira. Não tememos afirmar que tal qual o mundo anda, pouco ou nada nos interessa. Nem sequer comunicar com gente doida, ou seja, a maioria da população mundial. Afirmamos isto, não paulatinamente, mas sim abruptamente: a maior parte das pessoas está doida varrida. E o que achamos piada à expressão “doida varrida” pois parece coisa de casa de bruxa nos intervalos dos seus voos. Os doidos varridos são os que foram varridos das casas das bruxas loucas, dessas que improvisam no caldeirão as misturas mais improváveis: as poções, os supra-sumos alimentares que rivalizam com o “elixir”, ou o lado luminoso dos preparados para beber...
Ainda há quem pense que isto só se endireita com lições moralizantes, mais uma demonstração da resposta à tecnocracia com mais tecnocracia. Diremos que não: isto não se endireita porque está muito direito, tão direito como uma barra de ferro inflexível. Isto está completamente nos eixos. A moralização, as fórmulas, a exatidão fazem parte do nosso dia a dia... e é por isso que não muda nem de direção, nem de rumo, nem de propósitos. Quando se responde assim, moralizando, formalizando, formulando é porque o medo é mais do que muito e, aceitar o erro seria a queda do edifício e ninguém quer isso, pois não? Não. É por isso que observamos, apenas e assim continuaremos, por mais que surjam as respostas-remédio exatas, que nada mais são do que justificações esfarrapadas para continuar a amargura dos dias.