terça-feira, 10 de dezembro de 2019
O sorriso do Anjo de Reims
Francamente nunca te vi com um perfeccionismo absurdo. Parece que fazes as coisas já com uma imagem fixa na cabeça, com uma ideia que tentas alcançar e, em simultâneo, parece que a ideia se vai fazendo à medida que fazes as coisas. Se calhar é uma mistura. Uma ideia flutuante que procuras agarrar e que pode mudar de forma se a segurares.
Não convertes ninguém, nem procuras salvar ninguém. Tentas antes compreender, isso sim. Só isso ocupa-te mais tempo do que pensas. Cheguei mesmo a pensar que essa era a tua forma de filosofia: compreender os outros. Mas o que verdadeiramente te anima não é isso, é a arte. Só a forma como te moves diz tudo. Um guerreiro elegante. Se soubessem com que olhos nos olhamos uns aos outros... Os nossos olhos são diferentes, mais profundos porque situamos o coração em qualquer parte do corpo como se este tivesse a capacidade de ser ubíquo e transmitisse informações de todas as formas possíveis. O meu sorriso não tem fim. Permanece inalterado pelos séculos como aquele sorriso dos anjos de Reims. O que vai segurando o mundo é esta vida interior. Sem ela o mundo é uma casca que se quebra com um sopro. Ecos e ecos na terra oca da verdade preenchendo o espaço, tornando-o seguro e inquebrável. Andam todos preocupados ora com a missão (os mais ambiciosos, ora com a função, os mais ambiciosos tecnocratas da vida) quando têm algo mesmo debaixo dos olhos e não vêem. É um ponto pequenino, quase invisível mas que clama por nascer. Sob determinadas condições acaba mesmo por nascer, até para as pessoas que não vão conscientemente à procura dele. À mínima possibilidade, como as plantas, irrompe. É a vida interior. Querem acabar com isso, os desalmados. Alguns até conseguem ser eruditos desalmados, são só memória e factos como aquela História Moderna que inventaram, asséptica, a caminhar para a ausência de hermenêutica. Factos e datas sucessivos, secos, abruptos e sem movimento. Mas não conseguiram. A política tomou o lugar na interpretação dos factos, não deixa de ser também ela asséptica à sua maneira porque a política substitui a ideia pela ideologia. Torna-a comprida e arrastada no tempo e no espaço, como uma serpente sabida que acaba em 'logia", um "logos" perpétuo sem fim à vista, enfim, uma "serpentologia", por assim dizer, com tudo o que tem de indefinido e de tentação e tudo o que tem de definido na imagem e na certeza com que sibila aqui e ali as verdades que vai encontrando pelo caminho. A política é uma cascavel. E morde. A História torna-se sua filha rapidamente. Por isso é que até a memória se torna asséptica também, sem vida interior. Chegam até a confundir a vida interior com a política e, nesse caso, os desalmados esfregam as mãos com contentamento. Iludidos pensam que caçaram mais um nas suas malhas. É mais um que vai perder tempo ali, julgando-se herói ou sabendo-se um patife sem escrúpulos mascarado de herói, preso a essa imagem grega e sem a cobrança da juventude porque querem manter-se no poleiro o mais tempo possível ou usufruir do facto de ter estado nele o mais tempo possível também. Depois têm um olhar vazio, um coração negro, a inteligência mortiça com que debitam os comentários que fazem na comunicação social. Uns horrores de ver para quem sabe ver por dentro. Nem é necessária a visão de fantasmas. Eles são fantasmas errantes nos ecrãs. A alma é outra coisa. Viva, agitada, futura. Interessa-lhe sempre o futuro. A memória tem vantagens mas é muito melhor acompanhada desse futuro que vês na ideia que tentas apanhar quando fazes as coisas. A arte é outra coisa. E não é cópia do real. Para isso existem os espelhos e as câmaras. É captar o invisível. A ideia. A anima. O instante precioso e eterno. A salvação, se existir, é uma consequência, não um fim. Isso é para os ambiciosos, não para os artistas. Os ambiciosos querem dar um salto e ficar suspensos no paraíso de cabeça para baixo a deitar a língua de fora ao resto da humanidade e a dizer-lhe que conseguiram e os outros não. Os artistas querem lá saber disso para alguma coisa. Querem é as coisas feitas, o resto não é com eles nem para eles e, se for, é porque alguém lá em cima se lembrou deles e lhes resolveu oferecer uma flor. Os artistas não querem salvar a alma de ninguém, nem a sua. Querem salvar aquela matéria prima da fealdade, da falta de sonho, da falta de alma, da falta de espírito. Os outros são sempre novelos desmanchados e cheios de nós que se tentam compreender e que se conseguem compreender ou não. A matéria prima é que não pode esperar. Isso é outra coisa. Põe-se aos berros a pedir para ser transformada. Só quem tem vida interior a ouve. Só quem não está minimamente preocupado com os "pecados" que o hão-de salvar ou arremessá-lo para o inferno é que consegue ouvir a matéria-prima. Os pecados são para os santos, não são para os artistas. Só o tempo que se perde nisso enquanto a matéria chora e grita e estrabucha porque ninguém lhe liga nenhuma. O tempo que se perde nisso, perde-se em vida interior. Perde-se em vida. E perde-se vida. Por isso aprecio a forma como fazes as coisas. Parece que danças. As tuas pernas flectem-se, rodopiam, os teus braços ficam leves, o teu olhar fica fixo num ponto. E sorris. Sei que nunca te deste conta de que sorris. Mas sorris com à vontade de quem está numa festa. E estás numa festa. Num banquete. No centro dele. Em cima da mesa. E jorras como uma fonte de vinho e de fruta. E inebrias-me o olhar. E mantenho este sorriso parecido com aquele dos anjos de Reims. O eterno sorriso. O que compreende. O que ama. O que sabe. Como o teu quando fazes coisas bonitas, porque não queres saber das trevas para nada, apenas dessa luz que te assiste para que possas ver melhor o que fazes.
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