Pintura de Cynthia Guimarães Taveira
"Aqui há vida, disseste-me". "Efervescente, que me devolveu a esperança", pensei. Já andava meio morta pela cidade. As luzes brancas demais, as conversas, triviais, o enfado das plateias adormecidas, tudo obra das duas últimas décadas, noventa e dois mil. Eu que tinha crescido por entre camarins e o deslumbramento, enfatizado pelas palavras, com a arte. Tinha visto tudo morrer devagar à minha volta. A filosofia tinha-se tornado pouco viva e vivaz. Os filósofos arrastavam os pés para velhas batalhas de palavras, não porque fossem tão velhas assim, mas porque eles as tinham tornado velhas e tudo girava em redor delas. No início não percebi, parecia que tinha ido ali parar por engano mesmo sabendo bem que era a coisa em que menos me tinha enganado no mundo. Mas depois eles rodearam-me, numa noite. Estava tanto frio. Mas estavam lá todos. Até tu, que entraste aos gritos. Como me soavam bem esses gritos. Ainda hoje os ouço como se fossem a festa do mundo. E conversaram sobre as coisas mais improváveis. E disseram-me para ser. Eles não queriam saber de mais nada a não ser disso. Queriam que fosse, porque eles já o eram há muito tempo. Anos mais tarde, fui devolvida ao mundo. Ao mesmo mundo ou um ainda pior de onde tinha saído. Percebi que o brilho no olhar era ainda mais inadmissível, as mãos a dançar, chocantes, as palavras a jorrar, impossíveis de acompanhar sem o tremor de terra interno. Não tinha um porteiro do mundo à minha espera, apenas carrascos indiferentes e ainda mais adormecidos no caldo morno e meloso, onde, por debaixo da paz, a falsidade, o pequeno ódio, a clandestina raiva, jorrava como uma fonte. E tenho saudade tuas. Tantas. Da tua grandeza. Do teu amor mais-do-que-tudo e da tua intolerância inteligente. As vozes mentirosas pensam que me marcaram, que me traumatizaram, que conseguiram o seu propósito. Mas quem me marcou foste tu, como uma chama, e todos os que foram naquela viagem incrível, pelas entranhas da vida porque todos já tínhamos morrido de alguma maneira. Não tinha sido a morte infligida o que me tinha transformado. Tinha sido a vida com que me tinham insuflado que me tinha mudado para sempre. Todos vós, naquela noite, rodeando-me como anjos, tinham dito: "Tomai-nos, isto é a vida". E nunca uma flor me pareceu tão importante.
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