quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Hoje

 


"Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. [...] /

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente."

«Passagem das Horas». Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 26b.

E assim acontecendo, em fragmentos somos compreendidos pelos fragmentos que outros são. Se deixas acontecer a voz da verdade,  a falsa aparência trémula, luz de vela ténue e insegura, ilumina, indiferente toda a sorte da unidade que és, como um comboio lento atravessando a paisagem, fotografias sucedendo-se, diálogos suspensos a meio. "Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis" é o momento que não ousam nem ver, quanto mais acontecer! Se existisses hoje, neste lugar, Fernando, serias crucificado de todas as maneiras: ladrão e filho directo de Deus, ao alto e na diagonal e não haveria religião que te sustentasse! Eis o caminho!

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Tocha

 




Isto de andar com uma tocha antiga na mão para iluminar o caminho, por vezes, torna-se desconfortável pois sem querer acabamos por incendiar os corações e as consciências das pessoas à nossa volta. Somos uma espécie de espalha brasas que tentando a todo o custo não dar muito nas vistas, logo sai tudo ao contrário porque ao caminhar nas trevas com uma tocha na mão, nada mais dá nas vistas. E perguntamos que outra forma há senão a de iluminar o caminho com a nossa luz. É que não há mais nenhuma. E isso irrita as pessoas ao nosso redor. As inseguranças, as invejas e os medos profundos emergem imediatamente do caos absoluto em que se encontram. O nosso silêncio tumular é uma impressão digital que deixamos na história sobre nós que não sabem contar e como que pressentindo essa ignorância logo se apressam a contar histórias, todas elas fantasistas, numa espécie de superstição improvisada, mas suficientemente anafada para lhes preencher o ego que assim se acha sábio. Por vezes tenho que lidar com pessoas assim, mais mulheres do que homens, porque nada incomoda mais uma mulher do que uma mulher calada. Alguns homens também caem na superstição imediata, mas são mais raros. E, essas mulheres, que outra coisa não são senão mulherzinhas, são tagarelas, opinativas, chatas como tudo e simplesmente ignorantes. O caos rodeando estes seres é total, pois embrenhadas que estão nas coisas práticas da vida, a dimensão do sonho, da poesia e até, em último grau do Amor, escapa-lhes. São verdadeiros soldados romanos, adensando um exército sem fim e tendo nós um nome grego, dificilmente achamos graça a tanto belicismo, vivendo mais no mundo das ideias e dando-lhes o devido valor. Sempre que somos lancetados por lanças atiradas em forma de histeria disfarçada de disciplina, estas não chegam a doer, mas causam incómodo como moscas rodeando a cabeça, daquelas de Outono que parecem loucas por se reproduzirem.  Adensa-se ainda mais o silêncio como forma de recuperação do incómodo e, por isso, a irritação externa aumenta ainda mais, tomando a dimensão de um monstro gigantesco com várias cabeças. Às tantas torna-se desproporcional a medida de ambas as partes. A irritação é em demasia e o silêncio também. É nessas alturas que aterramos e iniciamos as palestras sobre as coisas práticas da vida com uma ironia fina interior e imperceptível pelos semelhantes. Normalmente resolve-se assim. Acalmam-se os bichos, a vida sem Mistério é muito mais confortável para eles e a sua condição de inaptidão para a demanda é reinstalada e legitimada por conversas triviais e repetitivas. Parece a tortura da gota de água do chinês. Peço imensa desculpa, mas demandar é uma forma de criar. Quando não estamos a fazê-lo, estamos a tapar buracos e a deitar água sobre a tocha que nos ilumina o caminho. Não há nada mais anti-higienico do que falar sistematicamente da higiene da casa. Não há nada mais anti-higienico do que não  criar. Fica tudo um caos, uma porcaria.