sábado, 29 de março de 2014
Equilibrío?
Há pessoas tão equilibradas, tão equilibradas, tão equilibradas, que quando fazem um gesto, desequilibram tudo...
Cynthia Guimarães Taveira
quinta-feira, 27 de março de 2014
Quando...
Quando vos vi aos dois,
desdobrados,
no alto do castelo de mim,
tão pontífices do tempo,
tão companheiros,
tão juntos na expressão,
tão dúplices do sonho,
tão repetidos e exactos,
tão livres,
tão contemplativos a meus olhos,
em sorriso par.
Quando vos vi
Tão suspensa estava eu no tempo,
balançando ao vento,
no apogeu da certeza
do eterno amor.
(Cynthia Guimarães Taveira)
quarta-feira, 26 de março de 2014
Imaginário
Se te der uma flor
Imaginas uma florDentro de um campo de flores
Ou uma flor
Dentro de uma flor maior
Ou uma flor do passado, ou do futuro
Se te der um sonho
Imaginas a história real donde nasceu
Se te der uma parcela de céu
Imagina-lo todo e mais algum
Por imaginar
Se te der um espaço vazio
Só tu nele podes serCom tuas flores
Teus sonhos
Tuas histórias
E todo o céu que és
E ainda algum
Que não o sendo ainda
Já o és
Dentro do meu sonho... Busca...
O mais alto erotismo é filosófico. Dois espíritos que não
procurem, nunca se encontram.
Cynthia Guimarães Taveira
domingo, 23 de março de 2014
Vigília
Foi numa igual manhã
viste o ajoelhado cavaleiro
em vigília, de neve vestido
em rubro coração e esplendoroso
De joelhos, o viste
dentro da escura noite
bem dentro do teu dia
Antigas velas ardiam ainda
Elas e ele,
Gravados na pedra
Feita de tempo
Viventes em chama
Em desmedidos ocidentes
Em bandeiras soltas
Em ausência de ruínas
Em memórias esperando-te
Elas e ele e esse templo
Em horizonte-rosa
No fundo do teu futuro
No quase mudo grito do devir
Escutado foi teu eco
Em cavaleiros multiplicados
Dentro de ti um deles
Trazia uma rosa ao peito
Quase mudo teu desejo
Ouvido em alto divino
Em sono definido
Em força-amor bem-vindo
Novos olhos te foram dados
Os teus e os de cavaleiro sonhado
Novas mãos, novos gestos
Teu corpo tornado escuta
Nem outra música erguida foi
Senão a do vivo segredo:
O que de dia adormece
É o sonho que enaltece
Deixas-te ir cavalgando
Aonde te levam rumos
e se desdobrados
olhas o alto e assim decides
Cavaleiro da altos instintos
Animal em homem feito
De intuições em vara d´água
tocando as esperas de secretas pedras
Deixas-te ir assim cavalgando
Já transformado em caminho
E se o mudo grito te desperta
já não és de parte incerta
Cavalgas a trote dançado
Sem pressa ou rotina
Escutas a viva e repetida
Alegria na espada embutida
Correm os rios e assim os vês
Como tu, esperando pelo marE pela caravela de olhos teus
Trazendo-te de novo ao altar
És viva memória e precisa
De um futuro de um outro tanto...
Todos se contemplam e se escutam
E trocam de lugar
No pano de fundo
do fundo que todos são
mais do que memória viva
são o mundo a espherar
(Cynthia Guimarães Taveira)
Horizonte
Ponham-se a caminho
Na estrada branca
Que é de tela
Que é de folha
Que é de palco
Que é de vós
Ponham-se a caminho
Alvo caminho
Iluminado pelo sol
De silêncio claro
De antes do sino tocar
De antes de vós que ainda não são
Ponham-se no caminho
Das árvores desbastadas de inverno
Fazendo acontecer novos verdes
Reclinem-se nesse caminho
De joelhos
Frente a essas pedras brancas
Que são elas e são vós
Reclinem-se na oração
Espaço de unos brancos
De todas as não cores
Que ainda são
Espaço de todas as cores
Que poderão ser
Observem a praça da batalha
Agora vazia
Acumulada de silêncios de escuta
De novo branca
De novo em espera
De todas as flores
Que vos atendem
Que vos presentem
Que vos aceitam
Mas apenas e só
Se se puserem a caminho
na ideia do que estão
na verdade
do que poderão ser
Do que sempre foram e não lembram
E cada passo
Que derem nesse seguir
É o vosso retorno
Presentes dados
jóias de céu
Antes do horizonte
Escondido sempre
Em cada vento
Alumiado e assente
No fundo altoDo grande anteceder.
sábado, 22 de março de 2014
Soa
Entre
o sim e o não
Soa a
serpente timbrada
Em
que timbre é afinal desvelada
Se o
que soa é trovoada?
Entre
o sim e o não
Soa a
serpente alada
Em
que alas pára ela
Se
não é encontrada?
Entre
o sim e o não
Soa
sibilante e intelectualizada
Em
que livro soa ela
Se
deles está apartada?
Entre
o sim e o não
Soa a
centro e periferia
Em
que gira afinal
Se
não rasteja à luz do dia?
Entre
o sim e não
Soa a
serpente clandestina
Paira
ela em que altar
se a
todos os elevou a voar?
Entre
e o sim e o não
Soa a
serpente por descobrir
Em
que sombra fica ela
Frente
ao mocho a sorrir?
Entre
o sim e o não
Soa a
serpente, soa a serpente
Mas
sob que pedra ela dorme
Se
apenas soa e não se sente?
Soa a
serpente
só
porque ecoa
nas
grutas internas
das
almas expostas.
Nunca
lá esteve.
Nunca
lá dormiu.
Soando o som que não é.
Lida
em anéis de corpo
Cifrada
e tomada por cifra
Tornada
dança porque dançada
Em
dias e noites
sucedidos
alturas
várias
de
abismos
de
soares e sentidos
e no
silêncio clandestino
ovo
novo em azevinho
pássaro de sopro nascido
soando
a ninguém
e em azul do alto dirigido
no
segredo infinito
que
não soando
o
mundo tem.
(Cynthia
Guimarães Taveira)
quinta-feira, 20 de março de 2014
Pétala
A cada pétala da Primavera
a cada voo da andorinha
a cada onda tornada morna
a cada flor que desperta
a cada canto de pássaro
a cada sol elevado
a cada perfume degustado
a cada noite nas estrelas
a cada brisa quente
a cada dança das borboletas
a cada amor reaceso
a cada vestido livre
a cada gota de gelo derretido
a cada manhã mais firme
a cada beijo da abelha
a cada pólen filosofal
a cada fluir no caminho
a cada dor esquecida
a cada torpor adormecido
a cada coração que se agita
a cada verbo em delicia
a cada água sem reverso
a cada música que se aproxima
a cada loucura remetida
a cada riso que não fica por dar
a cada ave que nasce
a cada lírio que incita
a cada tremor frente ao belo
a cada segredo revelado no céu
a cada força de vida
a cada bênção calada
a cada olhar que não subestima
a cada pétala da Primavera
a cada uma delas
nascente em cada espaço
nascente em cada vazio
nascente, somente,
tudo lhe pertence.
(Cynthia Guimarães Taveira)
segunda-feira, 17 de março de 2014
O espaço dele
O espaço do silêncio
é onde vos escuto.
Onde nos ouvimos
com o coração.
O espaço do silêncio
difere em verdade
para cada um.
Intimidade da intimidade.
Pode ser que seja
uma caixa de pandora
toda de esperança,
e, no seu fundo,
a mágoa de sermos humanos.
Pode ser que seja uma visão.
Pode ser que seja uma sensação.
difere de ti para ti,
esse espaço de silêncio
berço das palavras
abertas
como estrelas
aguardando a nossa escuta.
(Cynthia Guimarães Taveira)
Pressões
(Cynthia Guimarães Taveira)
domingo, 16 de março de 2014
Figura
Afiguram-se-me figuras apenas figurantes figurativas do
teatro do mundo. Mas sem elas, que triste figura seria a de um mundo sem teatro. E quando se me afiguram figuras altas e de cujo figurar consta a figura que ousamos ser, oh que mundo misturado, em figura inspirado, no teatro sem mundo em figuras a tecer... de verdade, nem figura, nem teatro, nem mundo se me afiguram como figuras, antes, e em abono da figura, a figura das suas figuras é apenas a figura da alma que nos leva à figura a fazer.
(Cynthia Guimarães Taveira)
sábado, 15 de março de 2014
Regresso
O regresso aos dons
foi o que disseste?
Sim, olha para as tuas mãos. Que fazem?
Dançam? Curam? Ensinam? Criam?
Regressas aos dons com o coração nas mãos.
E elas tornam-se pombas. Sim, aquelas por cumprir.
(Cynthia Guimarães Taveira)
sexta-feira, 14 de março de 2014
terça-feira, 11 de março de 2014
Casas
Não são saudades, mas a consciência de um regresso. Vozes e
gestos, reconhecidos. O serpentear do caminho,
por entre plantas que galgam planícies interiores. A consciência demasiado
nítida de um regresso, nas palavras, nas atitudes, e no queixo súbito que se
ergue, ou nos passos demasiado rápidos para não estarem despertos. Melodia longínqua
de novo ouvida. Arquétipos como planetas aproximando-se. E o gesto simples de nos
sentarmos. Mas de nos sentarmos por dentro da conversa. E por dentro de uma
conversa que está sentada e é descontraída. Porque o verdadeiro regresso é a
essa casa interior, de onde nunca saímos, ou que nos acompanhou sem que o soubéssemos.
Há casas que nos são sem que sejam os objectos que nos lembram ou que estes
sejam, sequer, recordações nossas. Porque estão na nossa alma em prateleiras de
histórias. Há casas que somos. E não há
diferença entre nós e elas. Não há fronteira. E todos os limites são
ilimitados, afinal. Mesmo que não se compreenda e que nos apareça como amor
camuflado de nós. Camuflado nos objectos, e nos assentos, nas paredes, e nos sons, e nos brincos de
princesa, ou no espelho camuflado dele mesmo. Há casas que nos diluem e se
coagulam em nós. E tornam ficção a memória do que fomos porque tudo o que não
foi essa casa estava nos arredores da alma, na periferia do coração, na
ausência da intenção, no vazio de
sentido.
domingo, 9 de março de 2014
Poema-Jardim (dedicado a Paula Maia)
Pediram-me um poema
que ainda não sei,
ou talvez já o saiba de cor,
e talvez nele viva um jardim
onde cisnes que não ouso ser
desfilam como memórias de um futuro...
Pediram-me um poema, apenas um.
E pergunto-me: como apenas um?
Se todos os dias, uns a seguir aos outros,
me acontecem mil poemas desfolhados
pela vida fora e pelo lado de fora da vida...
Se encontro poesia numa voz?
Ou num olhar, ou na própria flor que sou
quando de mim me distancio
e me ouço escrever a poesia que os outros são...
Ou quando te encontro,
poema vivo, de olhar triste,
poema vivo tão aprisionado como eu,
tão pronto para ser salvo do silêncio.
Ou quando desfilam na paisagem,
entre mar e terra, montes suaves,
de casas breves no tempo,
de Portugais que não houve
E se os há, oh se os há...
Ou quando percebo
que amar-te foi amar Portugal.
E que Portugal está num anjo,
e que o anjo está em Portugal,
e que não há diferença
entre nós e este jardim
crescente na ponta dos dedos,
e cujo perfume é levado por caravelas
para tão longe...
para lá das todas as
índias
que existem no universo.
Ou quando as luas se aproximam,
em várias idades todas por cumprir,
cantadas por mil sóis que as esperam,
e nelas vêem tudo o que são,
ou desejam ser, ou poderiam ser.
E que as núpcias só fazem sentido assim,
desencontradas no tempo,
como sonhos antigos,
perfeitos e por cumprir.
E tão cumpridas, afinal, nesses sonhos,
que tanto conhecemos,
que tanto somos,
no puro acto do futuro,
maestros antes da música,
ocorrendo, afinal,
no espaço prometido,
em concha maternal.
Oh... pediram-me um poema,
e as palavras jorram,
infinitas como luz, como cristal,
na cascata múltipla da História,
no tão sem fim verbo,
nada escondendo, afinal...
nem segredos,
nem mistérios,
nem magias,
nem argumentos em forma de véu...
Porque tu, poema vivo,
não te escondes,
nem nos buxos dos jardins,
nem por debaixo das pétalas,
nem na neblina do frio Inverno,
nem na tristeza que ousas,
nem nas graças suspendidas,
nem na beleza que repões,
nem no desnível das pedras,
nem no riacho desviado,
nem na tonta ave que canta.
Não te escondes, nem debaixo da miséria
de não haver poesia alguma
nos olhos cansados de um velho,
ou de uma criança doente
nem debaixo da acção nítida,
de querê-los resgatar do cansaço,
da dor ou do desamor
que tanto insistem
em que queiramos resgatá-los.
Pediram-me para escrever um poema,
mas ele já estava escrito.
(Cynthia Guimarães Taveira)
quarta-feira, 5 de março de 2014
Hoje somos silêncio
Somos o silêncio
caladoprolongado
como muro
alheio
a palavras
alheias.
O silencio
caiado
de branco
vestido
onde
Portugal
se move
por dentro
e por fora
alheio
às ondas.
O silêncio
camuflado
acesso
no fundo
da gruta
alheio
à violência
do verbo
que disfarça
os ecos ocos
e loucos
lá fora.
Isto é ser
Português
E amante
de Portugal
hojeA única
Hora
possível
de permanecer
serpente
na morte
e dragão
que não mente
nem desmente
sem sono
ou vão sonho
de inteiras garras
agarradas
ao silêncio Real.
terça-feira, 4 de março de 2014
Chagall em Lisboa...
Por entre as lâmpadas fracas,
erguendo-se, amarelas, dos passeios,ias pela noite até ao gradeado de um jardim
cujos portões se abriam de par em par
sobre uma fonte onde uma egípcia-escultura
sobressaía do centro da água.
Lisboa era visitável de noite e pelo alto
no miradouro onde revias as longínquas ruas,
agora tão próximas.
Fazia sempre frio nesse jardim
e todo o amor que sentias
Substituía esse ardor gelado.
Não eram lâmpadas fracas
eram pequenos seres de asas de luzerguendo-se pelos passeios
E cujos portões eram boas-vindas
e bem-aventuranças
iniciando-te nos verbos amorososnos tempos delicados
em que o lóbulo da tua orelha
era seda deslizada
atravessando desertos de rotas incertas
E o teu negro cabelo
eram as marés vivas de cetim
noites cobrindo o deserto
Não era uma egípcia-escultura
erguendo-se do centro das águasmas deusa de viva luz
e em cuja água emergia e submergia
num mesmo tempo
E o olhar dela era mais do que tentação
era a tua pausa que reflectia sobreaquele olhar que era mais do que tentação
e te deixava indefinido
num silêncio que era mais do que silêncio
mas vibração inaudível
nos passos que davas, na tua pausa
que a perseguia
a ela e a esse olhar que era mais do que tentação
mas sentido pleno de presença
sem tempo
nem para ser tempo
nem para ter tempo
nem para esses passos que davas
perseguindo-a
como se te perseguisses a ti
E não, não era Lisboa que vias pelo alto
desse miradouro de miragensera o universo inteiro
que só poderias ver do alto de ti
quando de ti voavas
pelo frio da noite
seguido pelo amor,
seguindo o amor,e do alto que eras
e voavas
mesmo por dentro do amor.
(Cynthia Guimarães
Taveira)
Variações no Jardim de Dalila Pereira da Costa
Dalila Pereira da
Costa viveu na cidade do Porto, em plena Av. 5 de Outubro. Viveu num palacete
rodeado por um jardim. Esse jardim possuía várias espécies botânicas, uma pedra
de um túmulo romano aí encontrada e ainda um pequeno tanque com peixes.
O jardim, construído
a partir de elementos vegetais, tecido e podado por um jardineiro, opõe-se, de
algum modo, à construção em pedra. O elemento é orgânico, crescendo,
multiplicando-se e renovando-se por ciclos e desdobramentos dinâmicos de
imaginação. A iniciação que lá ocorre obedece, naturalmente, não somente a um
movimento espontâneo do Ser, como a uma ordem estipulada e impressa pelo próprio
jardineiro. O jardineiro é o princípio e o fim de si mesmo, pois ao se erguer e
movimentar em gesto espontâneo como uma planta, ele ordena, selecciona, colhe e
recolhe a partir de um acontecimento selvagem porque imprevisível. Todo o êxtase,
tal como as coincidências, possui o seu elemento de imprevisibilidade inscrito
num fluir temporal mas, em simultâneo, aniquilando esse mesmo tempo.
O jardim só existe
e só pode existir na cidade. No campo não há jardins. Ele nasce da cidade, a
partir dela. É um espaço reservado no sentido em que tem limites. Um espaço
interior, longe das instituições, longe do rebuliço. É um espaço de arte na
medida em que ele é produto da mão e do gosto dos homens. É um espaço de
contemplação, de meditação, de repouso, de soledade. É no jardim que pode haver
a suspensão do tempo. Foi no jardim que Dalila Pereira da Costa teve a sua
primeira experiência extática:
“Conhecimento duma
realidade suprema e única, em si livre e acima de qualquer realidade outra
terrena; concedida em alguns poucos minutos (quinze, vinte?), mas perdurando
para toda a vida incólume. Vivida em Coimbra, num dia de Primavera de 1938, por
volta do meio-dia, à sombra duma grande pittosporum dum jardinzinho
fechado, silencioso e solitário da Casa dos Coutinhos junto à Sé Velha, então
Lar do Sagrado Coração de Maria, para raparigas universitárias. (…) Então de súbito,
uma intensa luz, tão doce, e que não era a luz deste nosso sol, me envolveria e
tomaria: estava dentro ou fora de mim? O fora e dentro eram indiscerníveis, idênticos,
num único inseparável todo; a luz também inseparável e indiscernível de paz,
silêncio, liberdade e amor; em total despojamento, esquecimento do mundo (…)”1
A experiência mística
não é vista como uma experiência gratuita inserida na contemporaneidade do
quotidiano. Ela é sentida e vivida como fractura do próprio tempo, um intervalo
qualitativo que permite a apreensão da “essência” platónica. O jardim em que
respira é também um jardim interior como se, neste caso, tivesse sido possível
interiorizar o jardim e o seu sentido. O espaço como fonte semântica à qual se
pode aceder num primeiro momento de interiorização e num segundo momento de
anulação desse mesmo espaço, como prossegue a autora o seu relato:
“Que nesse
instante, por ele anulou, como conhecimento-vivência, toda a realidade
rodeante. Seu fim, como lento abandonar, sendo sentido como queda nessa
realidade terrena. Instante concedendo um conhecimento em certeza absoluta,
irrefutável, da existência de outro mundo e vida possível, em separação total
deste; sem tempo, de antes e depois, sem
espaço de aqui e além: como centro do mundo e da vida: eixo imóvel, dum mundo e
vida que à volta rodam incessantes.”2
Esta primeira
experiência, tida pela autora aos vinte anos de idade, é, a experiência
fundadora de toda um vida e uma obra: “ A sua obra é, na verdade, o reflexo da
sua vida.”3
Aqui o centro do mundo surgindo como múltiplo: o jardim como espaço exterior,
como espaço de quietude interior, como condição intrínseca para o “acontecimento”,
acontecimento que é também ele fundador da consciência religiosa, anunciador de
um caminho ou via e ainda percursor de uma obra a realizar anos mais tarde. A
partir da fenomenologia da luz e de toda a vivência em conhecimento da sua
mensagem se estabeleceram as bases de um “olhar” sobre diversos vectores: a
poesia, a antropologia, a literatura, a mística e a história de Portugal.
Esta experiência extática descrita
traduz um estado do próprio ser, mais do que um estado transitivo do estado de
espírito ou alma da escritora. Ela aparece carregada de sentidos:
“Não mais
olvidando, como certeza primeira, de que existe neste mundo, em fé, esperança e
caridade, esse outro mundo e vida, livre de problemas, anseios, incertezas,,
livre de todo o mal. Como força central e criadora do mundo da vida e da
verdade.”4
Aqui se
estabeleceram as bases ou certezas da fronteira delimitadora entre sagrado e
profano: “O homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do
Mundo.”5,
bases só possíveis de acontecerem com uma pré-disposição para a “transfiguração
do mundo”, mas de um mundo natural, não artificial, uma vez que tais experiências
místicas se situam num mundo do sensível e do extra-sensível: “gosto desde os tempos de infância (…) de
contemplação da natureza, e fácil união com os animais e plantas; fácil e
sentida como necessária.”6
Inscreve-se assim,
a autora, numa linhagem mística
portuguesa cujas principais referências estão exactamente na contemplação da
natureza, esta presente desde as cantigas de amigo até a um Frei Agostinho da
Cruz, e cuja vertente panteísta é, segundo a perspectiva da autora, o
fundamento e simultaneamente a diferenciação do “viver” religioso português. “Talvez
em nenhum outro povo da Europa, se tenha criado uma tão alta mística da
natureza.”7
ou “Na mística portuguesa, a união com Deus será experimentada (…)
preferentemente não no conhecimento do Ser absoluto, na sua essência, tal na mística
renana, mas nesta mística da natureza, onde Deus é atingido através dos seres
criados, numa experiência do Todo-Uno”8.
No Ocidente, o arquétipo
do jardim está presente no jardim do Éden, jardim que pode ser entendido tanto
no sentido material como no sentido espiritual, podendo participar nas duas
naturezas uma vez que serve a sua contemplação como ponte ou passagem para um
outro jardim, entendido no sentido místico: “Uns não querem ver nele senão uma «realidade
corpórea», outros uma «realidade espiritual», outros ainda uma «realidade
simultaneamente corpórea e espiritual»”9. Esta ponte ou passagem é muitas vezes
elaborada a partir do diálogo poético. A contemplação, para além de uma
passividade despojada, pode surgir como fonte de criação poética, entrando-se
num diálogo íntimo com os seres animados contemplados: “E as flores
desconhecidas que me olhavam e eu olhava tantas. Serenamente orgulhosas no seu
mistério”10 ou “Jardins misteriosos cheios de silêncio, contendo em si
uma tal concentração de vida: como prolongado instante extático (…)”11.
Observação que se torna difusa e torna difusa a linguagem: da descrição para a
poesia, da poesia para o instante extático de revelação. Porque toda a iniciação
comporta em si um estado “desperto”, não no sentido de uma maior concentração
meramente erudita ou de exercício de memória mas sim um estado, nunca virtual,
de descoberta de outros sentidos passíveis de apreender a realidade arquétipal,
numa linguagem platónica, ou uma supra-realidade no sentido místico. Essa
realidade da natureza não entra meramente nos parâmetros descritivos mas vai
mais longe, numa atitude que entende essa mesma natureza como Revelação da obra
do Criador. Porque, nesse jardim, ver é conhecer. Mas esse conhecimento, essa
entrada directa na Revelação é, no caso desta autora, motivo para uma obra.
Toda a Revelação é susceptível de transmissão por via da palavra como se a
Imaginação Pura se tornasse carne pelo Verbo, sendo esta transmissão de uma
dificuldade extrema:
“Porque sendo o
conhecimento do êxtase um conhecimento de experiência, que só por esta se deixa
apreender, o que é difícil é apresentar a outro (não explicar ou demonstrar, ou
ainda menos definir), o que para o próprio se apresenta com esta marca da
verdade: a evidência.”12
Facilmente o místico
pode cair numa espécie de irrealismo terreno, isto se não possui instrumentos
para que possa meditar as suas experiências e/ou transmiti-las. Facilmente esse
plano-outro que pertence à esfera do Real e não à realidade aparente das coisas
se torna vitima de si próprio, caindo numa espécie de isolamento e mesmo de
obscuridade, afastando o místico para uma espécie de “loucura de Deus”, um
louco que não o é totalmente. Dalila Pereira da Costa refere nas suas páginas
auto-biográficas as suas origens celtas, irlandesas e escocesas, por parte do
pai e, durienses e provavelmente romanas por parte da mãe, da qual
“teria recebido um
princípio concreto de ordenação e racionalidade para a transmissão desses
momentos de contemplação e união com a natureza: com revelação de seu secreto
esplendor; e ainda, de breves e imperfeitas apercepções de outros mundos
ultra-sensíveis.”13
É, em primeiro
lugar, a comunhão com a natureza a chave que abre as portas da percepção, num
despertar emergindo a partir da infância, em diálogos inocentes e necessários
com os seres vivos num jardim interior que já se adivinhava. Iniciação e
despertar caminham juntos numa via em que o despojamento e o silêncio parecem
constituir, mais do que panos de fundo de um qualquer cenário ritualista, os
verdadeiros fundamentos para a experiência estática, não podendo esta ser
confundida com qualquer patologia psíquica quando nos encontramos dentro deste
universo: “Assinale-se já a total incompatibilidade entre processo iniciático e
terapia psicanalítica.”14
De portões bem
cerrados, o outro-mundo só se torna acessível mediante determinadas condições,
sendo o despojamento uma delas e o silêncio como outra face da moeda, não
aparecendo como mero substantivo no discurso místico, mas sim como a outra face
do despojamento material: o despojamento mental do ruído do pensamento. Um
despojamento de tal forma apurado que o substantivo é obrigado a adquirir caixa
alta, passando de silêncio a Silêncio. O Silêncio é um estado ele-mesmo: “Não é
um caminho para o Silêncio, nem um caminho silencioso, é o Silêncio que está em
caminho”15
O jardim é um espaço
vivo, de criação e sobretudo de encontro. Encontro com o outro mundo e ainda,
no caso desta autora, uma referencia metafórica para o movimento da metamorfose
que o êxtase provoca:
“E como a
verdadeira vida, ele tem o seu mais profundo dom, o seu mais inalienável carácter:
a metamorfose. Assim, ao longo da nossa existência, ele vai-se modificando, e
com ele o conhecimento que dele tínhamos: sem cessar revelando-se o mesmo e
sempre outro. (…) Como semente que, oclusa e secretamente, perdura, cheia de
possibilidades. (...) como se esta iniciação não tivesse inclusa
necessariamente nela uma imediata realização. Esta, vindo mais tarde, através do
tempo, mas sempre a partir desta iniciação, como ulterior germinação e ensino:
como uma múltipla revelação”16.
Recorrentemente, a
autora recorre a comparações com elementos vegetais para exprimir o valor ontológico
das experiências místicas. A semente que germina e explode pode servir como
sustentáculo para a interpretação da sua obra. A metamorfose da experiência extática
não se situa ao nível do momento em que esta acontece, situa-se a nível da relação que a autora tem ao longo
do tempo com essa mesma experiência e isto tendo em conta que o vivenciado fora
do espaço-tempo vulgares é uma potência de vida e em consequência uma potência
de semânticas várias, de colagens a vários períodos da vida, de pesquisas em
livros e pensamentos, de maturidades encontradas ou até de uma certa inocência
reencontrada. A relação que se estabelece com a esfera do “ser” é uma relação
dinâmica, criativa, num lugar que, embora fechado dentro da cidade o é aberto
para o céu. A relação criativa é uma relação de verticalidade ou, nas palavras
de Rémi Boyer: “A Iniciação no Jardim não rejeita de modo algum o
desejo. Axializa-o”17, isto se partirmos do princípio que toda
a criatividade tem como parte da sua fonte o desejo.
O Jardim é um espaço em que os seus elementos são usados tanto na
sua forma externa como na sua substância. Como se na obra de Dalila Pereira da
Costa eles fossem sucessivamente virados, revirados e ainda o seu avesso fosse
revelado como cópia exacta, em palavra e imagem, de sensações poderosas
anunciadas e reveladas pelas forças do “alto”:
“Ela [A Virgem]
vinha este e aquele dia, aparecendo-me em formas diversas, no sonho (que dizia:
o mundo é construído como uma rosa -- camadas e camadas que é preciso
atravessar para chegar ao seu centro, que será o centro de dentro e o de fora;
(…) Mas primeiro fui a sua flor, como sua face verdadeira e oculta. Face que a
revelava e anunciava, em imagem transposta. Para mais tarde ser decifrada”18
A identificação com a natureza chega a ser corporal,
carnal. Se bem que comummente sejam os místicos vistos como protótipos de
carmelitas descalças, de eremitas longe do mundo, de cartuxos imersos nas horas
canónicas, em Dalila Pereira da Costa não existe a negação do mundo. O corpo
existe e está presente. A contemplação é um veículo para a união e essa união é
feita em sensação, em corpo e alma, em espírito que se aproxima, rodeia e
invade até ao âmago, até á totalidade do Ser:
“Tive subitamente a
consciência duma presença, força oculta e oclusa no centro da terra, no seu âmago
e à volta da qual se tinha acumulado a terra e o mundo, sucessivamente. Mas não
idêntica à terra: separada. E separada de mim. A terra não era a sua emanação.
Mas como seu invólucro, face. Esta força envolveu-me, cercou-me, lentamente
primeiro, depois vertiginosamente. Como se eu estivesse no centro dum remoinho,
dum nó de energias poderoso. Era uma força violenta, mas doce, quão doce.
Senti-me não possuída, mas rodeada, abrigada. Uma força tão viva: senti-me como
caída no coração da vida, no seu centro ardente. Abandonei-me. Todo o meu ser
se exultou, se elevou às suas maiores possibilidades, como incandescente,
acesso por uma força ardente. Não me senti aniquilada, vencida. (…) Era uma força
dinâmica, ninho de energias, em curvas elípticas múltiplas. E duma tal
serenidade na sua violência. E o seu dom foi um estado, composto e simples, de
plenitude, paz e liberdade. Era amor o vértice desse cone? Um amor desconhecido
à face da terra.”19
A contemplação, na
sua forma mais aguda, gera a identificação total entre objecto e observador. De
alguma forma a experiência extática permite o conhecimento do funcionamento da “máquina
do mundo”, nas palavras de Camões. A experiência nada tem de especulativo,
cientifico, dedutivo, como uma membrana que se pega ao objecto. O conhecimento é
um mergulho no interior da matéria, um mergulho só possível de ser feito em
amor: “Fora do amor só existirá um falso conhecimento. Truncado. Porque tudo
será feito para a possessão da sabedoria, não do saber.”20
e o eixo desse conhecimento não se situa nem na acumulação de experiências, nem
na acumulação de saberes. O eixo situa-se na esfera da transmutação do próprio
ser. Porque a iniciação, ao contrário de uma qualquer disciplina, visa a
transmutação ou o desbastar da “pedra” em excesso até à camada final do Ser. Não
existe nesta forma de Estar e de Ser (mais do que forma de pensar), nem o número,
quantidades que enriquecem apenas visualmente, nem a capacidade de relacionar
autores ou sábios diversos; a erudição não é tida em conta senão como mero
instrumento para a “solidificação”, “materialização” de uma experiência pessoal
e muito dificilmente transmissível. Existe em Dalila Pereira da Costa uma
meta-literatura num sentido apuradíssimo, na medida em que é a própria vida a
matéria-prima para a escolha das palavras. Uma meta-vida que se transforma em
meta-literatura. Uma metafísica que se torna física no sentido em que a experiência
extática procura ser transmitida com um rigor objectivo na escolha das
palavras, ao ponto de experiência e linguagem se confundirem:
“Entre tantos
outros, fica ainda o problema da linguagem: da possibilidade da sua comunicação.
Como transmitir um saber que se faz na esfera do indizível, do incomunicável?
E, no entanto, esse saber vem agora indissoluvelmente ligado à linguagem. Um
saber que parece fazer-se, não através da linguagem como meio ou analogia, mas
que surge como sendo ele mesmo a linguagem. Apreensível, não onde ele se
confunde com o pensamento, mas onde ele se confunde com o Ser. Mais que uma encarnação? Uma transmutação. E
então a pergunta: onde mergulham as raízes da linguagem, no mental ou no Ser
ele mesmo?”21
O jardineiro, sendo
aquele que transporta o jardim consigo, é aquele também no qual não há distinção
entre dentro e fora. Toda a Revelação é interna e externa, uma entrada numa
quarta dimensão na qual é possível que um acontecimento externo soe e ressoe em
simultaneidade, facto também observado por Jung nas suas análises com vista à
tentativa de explicação de fenómenos de sincronicidade:
“Ao observar a via de desenvolvimento daqueles que
silenciosamente e como que inconscientemente se superavam a si mesmos,
constatei que os seus destinos tinham algo em comum: o novo vinha a eles do
campo obscuro das possibilidades de fora ou de dentro, e eles o acolhiam e com
isso cresciam. Parecia-me típico que uns o recebessem de fora e outros, de
dentro, ou melhor, que nalguns o novo cresce a partir de fora e em outros, a
partir de dentro. Mas de qualquer forma, nunca o novo era somente exterior ou
somente interior. Ao vir de fora, tornava-se a vivência mais íntima. Vindo de
dentro, tornava-se acontecimento externo. Jamais era intencionalmente provocado
ou conscientemente desejado, mas como que fluía na torrente do tempo.”22
É possível a identificação total com o objecto que se
contempla a partir de uma experiência extática. Os elementos do jardim são mais
do que objectos iniciáticos, objectos que servem para iniciar o “outro” e para
serem eles mesmo condutores de iniciação na medida em que existe essa
identificação. Vida e Ser, unem-se em plenitude e, por via da palavra que, como
já vimos, também ela se pode situar na esfera do Ser, esta torna-se uma experiência
transmissível, ao ponto de poder provocar uma alteração de estado no próprio
leitor. Isto partindo do princípio de que o leitor entende o poder transmutador
de tais mensagens e a forma quase musical com que as palavras aparecem
escritas, uma espécie de mantras implícitos no ritmo de escrita, aliás, sendo
necessário ajustar o tom da leitura do leitor ao tom do escritor, de maneira a
que se produza o “efeito mágico” do estado poético, sendo sempre este estado
uma pré-figuração, um primeiro movimento, um gesto no Silêncio primordial para
se conseguir adquirir um estado místico. Dai que a linguagem, aquela existente
no domínio do Ser, seja sobretudo uma linguagem poética, encantatória,
hipnotizante. Como se a obra se propusesse ela mesma a abrir esses mesmos
portais que revela e ecoa:
“A Criação
Primeiro é uma semente redonda e dura, nó de condensação
terrível de energias, o coração duma espiral que vai girando, girando sempre, e
alargando.
E como vai alargando, vai subindo. E vai-se formando,
alargando o seu campo de força, naquela vibração lenta e segura, naquele
preservar; sem um movimento de desistir, naquela acumulação contínua de força.
Naquela cor sombria e brilhante de vida, rubra e terra, naquele sono, sonho de
vida, do centro do centro. Quando está formado, pronto, há aquele rebentar
brusco de laços, aquele fim sem fim.”23
Sendo jardineiro e jardim em simultâneo, porque
objecto e observador se anulam ou se unem num todo e estando as margens do
texto sempre tocando esse outro-mundo essencial, no qual não existe mal ou bem,
princípio ou fim, dentro e fora, a linguagem situar-se-á o máximo possível numa
frequência ou vibração inicial e é aí que se torna inovadora. Poesia, poema e
poeta não são vistos como separados mas sim sempre integrados numa análise
comum. Nunca se encontra a expressão “sujeito poético” pois o poeta é um ser
total, sua vida e obra não são dissociáveis, sendo pelo contrário a sua obra
reflexo da sua verdadeira vida porque “vida interior”. O poeta faz parte da
poesia e vice-versa. O poema é o resultado da “abertura” do poeta e o poeta só
o é porque, de algum modo, se “elevou” à frequência de um poema. E a vida
torna-se ou é, também ela, carregada da poesia: “A vida aparece como uma
celebração (e também como magia, como reencantamento) dual no seio da consciência
não-dual.”24
A Literatura surge
apenas como mediadora, entre a Vida. A utilidade da Literatura será então como
que um “amortecedor” do encontro entre o poeta e essa fonte, encontro
esse, que é sempre “um contacto
tremendo, estreme”25, perigoso: toda a
aproximação ao sagrado é, de alguma forma, um risco porque se entra em contacto
com um mundo essencial, pleno de potências e daí as proibições de “roubar o fogo aos deuses” e mais ainda de “roubar o fogo dos
deuses”, sendo possível apreender
(como segundo sentido nas palavras de Dalila Pereira da Costa) a poesia como acto
transgressivo, no sentido em que as fronteiras do mundo visível são
ultrapassadas até ao limite do não conhecido ainda, do ainda não visível, lugar
de onde a poesia espera ser resgatada, nesse acto heróico do poeta que supera o
risco trazendo o troféu intacto das esferas celestes. Será um acto heróico
porque o perigo é vencido, pois o transcendente move-se num plano que, embora
sendo subtil, sem espaço ou tempo, concentra, no entanto, a força dos primórdios,
a força integral a partir da qual o mundo visível, concreto e natural se torna
imanente, como a força que teria um parto constante.
É possível,
portanto, encontrar o poeta para lá da literatura, sendo as suas raízes as de
uma árvore invertida: a profundidade à qual conseguimos descer no seu entendimento
é equivalente à ascensão a um outro mundo onde reside a verdadeira vida e da
qual recolhe o poeta uma “vibração”26 que é também um “fervor”27 e no qual se dá uma renovação
tanto do poeta como do leitor, porque a criação poética se funde com a própria
vida, tendo por isso a capacidade da experiência da ressurreição. Nesse
sentido, a poesia aparece como acto sagrado conduzindo a uma dinâmica característica
do mundo celeste: a transmutação.
O poema, uma vez
tendo recolhido parte de uma sobrenatureza, torna-se uma espécie de “acumulador”, “uma reserva”28 de Vida. O valor de um poema não está no seu
contexto dentro da literatura nem reside no facto de poder ser literatura, nem
tão pouco ao nível do pensamento, ele está na vivência que permite acontecer,
vivência essa que se estabelece num “Contacto que é acto
de viver e conhecer: onde os dois não se diferenciam”29. Essa origem do poema num
mundo sobrenatural torna-o “intransigente”, inquebrável, de um corpo só e “resplandecente”30.
Curioso é o acto de
criação do poema, vindo de uma espécie de silêncio, de nada, de vazio, de
trevas, de despojamento, ele surge tal e qual o êxtase místico “quando das profundas das trevas ele se ergue em face
do poeta: ser vivo e vivificante”31 e, por isso, transportando
dentro de si uma das categorias do plano sagrado: a imortalidade como
duplo acto de transgressão, “matando-se a morte” por via de um regresso ao
jardim do paraíso num plano superior, repetindo-se o acto transgressor mas
desta feita com vista à reunião, não com a terra mas sim com o céu:
“O mundo está
perante o poeta, oferecido à sua adoração, como dom de Deus e seu mistério
inviolado. Mas oferecido a ele, como apelo e provocação. Porque é perante este
mistério que Deus o situa. Mais: é este mistério que Ele coloca perante o
poeta, como dom oferecido: pedindo que o decifre. (…) Porque, assim como ele
lhe surge, é apresentado, dado, assim por sua vez o poeta o deverá representar:
inteiro e íntegro; em si fechado, redondo. Como o fruto.
Porque ele é o que
pende da árvore que está no meio do Éden. E todo o acto de conhecimento poético,
sua transmissão, é o acto paradisíaco repetido. E o poeta, é a nova Eva,
assumindo o seu gesto, apresentando e dando o mundo inteiro resumido e
concentrado na esfera do fruto -- na sua
mão erguido ao alto.”32
A expressão poética
em Dalila Pereira da Costa surge, frequentemente, com dois elementos-chave para
a sua compreensão, mais até do que
decifração: ela surge-nos como Revelação ela mesma. O Jardim é expressão dele
próprio. A palavra surge como evidência, como um momento de um tempo forte, um
tempo sagrado:
“E depois de
protestar que me amava
a mim, enlaçou-me,
como só a hera
enlaça uma árvore.
E assim enlaçada
deixou para sempre
este mundo.”33
E surge-nos ainda dentro da mais alta vanguarda na
medida em que existe uma originalidade dos “começos” dos “princípios” visando
uma aproximação da fonte sagrada donde tudo brota. É nesse sentido que Rémi
Boyer nos diz que
“O iniciado no Jardim é um poeta, um fazedor --
palavra que define o alquimista --, um profeta do não-tempo, um teósofo. (…)
Nesse sentido, o iniciado do Jardim opõe-se ao profeta. É um hipo-feta,
palavra forjada por Rabelais para designar aquele que se recorda do que já
passou, do antigo. Mas este “antigo” é mais antigo do que o antigo, é original;
é por isso que ele é totalmente novo e vanguardista, tanto na sua expressão
como na sua impressão.”34
Conclusão
Procurámos com este
trabalho elaborar uma aproximação à linguagem de Dalila Pereira da Costa e
pareceu-nos que um caminho possível seria a utilização da metáfora do Jardim,
uma vez que no Paraíso ele nos surge com uma árvore central a partir da qual
correm quatro rios indicando quatro direcções do espaço. Poesia, Ensaio, Texto
Literário e Relato Realista de experiências extáticas ou místicas serão esses
quatro rios que se cruzam na obra da autora. A aproximação à sua linguagem, ao
seu modo de expressão, torna-se assim um trabalho delicado no sentido em que
facilmente se muda de “campo” e até
mesmo se confundem as diversas áreas temáticas. A Poesia troca os passos numa
dança com o Ensaio, o Texto Literário pode conviver em simultaneidade com um
Relato de uma experiência mística. Seria um acto pouco fiel à obra da autora se
se tentasse separar as águas diversas numa tentativa de dissecação dos textos.
A única forma de melhor transmitir o “timbre” e o “sentido” das várias mensagens é ir respeitando as
diversas melodias cruzadas porque só assim não se perde o poder encantatório da
sua escrita e se pode, ao mesmo tempo, seduzir o leitor para a sua obra. O
Jardim surge para além de um mero espaço simbólico efervescente em correspondências.
Ele surge-nos como um espaço sagrado e interior, submisso a uma presença
celeste e, em simultâneo, fonte de liberdade
poética. Os elementos do Jardim serão como diamantes de várias faces,
ora espelhando um símbolo, ora espelhando uma experiência, ora sendo metáforas
internas e intrínsecas do próprio jardineiro, confundindo-se muitas vezes a
existência da palavra da autora com um parto, nascimento súbito de uma
supra-realidade. A Poesia não surge como um efeito lúdico ou de prazer estético,
ela é reveladora no sentido em que abre uma diferente perspectiva sobre a própria
Vida. Não é uma mera variação do pensamento ou da sensação, é uma variação do
próprio Ser e é nesse sentido que ela pode surgir ao leitor (segundo a sua
receptividade) como fonte de transmutação da forma como ele aborda a sua Vida.
Isto porque o texto místico procura a raiz para justificar a árvore, o caroço
ou substrato para ir explicando o sabor do fruto. O movimento no Jardim é dúplice:
da contemplação à intuição apurada e da intuição apurada e mística para uma
outra contemplação muito para além da superfície, da pele, meramente estética.
Procurou-se então uma viagem pelo
interior do espírito da escritora, respeitando o seu tom e a sua intenção.
Cynthia Guimarães Taveira
1 Costa, Dalila Pereira da, “Os Instantes”; Ed.
Universidade Católica Portuguesa e Lello & Irmão Editores, Porto, 1999, pág.
29.
2 Ob. cit. pág. 29.
3 Paulo Samuel, obra citada, pág. 83.
4 Costa, Dalila Pereira da, Ob. cit. pág. 32.
5 Eliade, Mircea, “O Sagrado e o Profano - a essência
das religiões”, Edições Livros do Brasil, Lisboa, s.d., pág. 56.
6 Costa, Dalila Pereira da, Ob. cit. pág. 26.
7 Costa, Dalila Pereira da, “Místicos Portugueses
do Séc. XVI”, Lello & Irmão
Editores, Porto, 1986, pág. 199.
8 Ob. cit. pág. 188.
9 Delumeau, Jean, “Uma História do Paraíso - O
jardim das delícias”, Edições Terramar, 1994, pág. 27.
10 Costa, Dalila
Pereira da, “Encontro na Noite” Edições Lello & Irmão, Porto, 1973, pág.
19.
11 Ob. cit. pág. 80.
12 Costa, Dalila
Pereira da, “A Força do Mundo”, Lello & Irmão Editores, 1972, pág. 26.
13 Costa, Dalila
Pereira da, “Os Instantes”; Ed. Universidade Católica Portuguesa e Lello
& Irmão Editores, Porto, 1999, pág. 27.
14 Boyer, Rémi, “A
Tradição Maçónica e o despertar da Consciência”, Edições Arcano Zero, 2009, pág.
94.
15 Boyer, Rémi, Ob.
cit. pág. 34.
16 Costa, Dalila
Pereira da, “A Força do Mundo”, lello & Irmão Editores, 1972, pág. 35.
17 Boyer, Rémi “O
Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, edições zéfiro e Arcano Zero,
2011, pág. 93.
18 Costa, Dalila
Pereira da, “A Força do Mundo” , Lello & Irmãos Editores, 1972, pág. 77.
19 Ob. cit. pág. 71.
20 Ob. cit. pág. 128-
21 Ob. cit, pág. 23.
22 Jung C. G.; R. Wilhelm, “O Segredo da Flor de
Ouro - Um livro de Vida Chinês", Ed. Vozes, pág. 32
23 Costa, Dalila
Pereira da, “Encontro na Noite”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1973, pág.
66.
24 Boyer, Rémi “O
Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, edições zéfiro e Arcano Zero,
2011, pág. 117.
25 Pereira da Costa,
Dalila, A Nova Atlântida, Ed. Lello & Irmão, Porto, 1977, pág. 334.
26 Ob. cit. pág. 334.
27 Ob. cit. pág. 334.
28 Ob. cit. pág. 334-
29 Ob. Cit. Pág. 334.
30 Ob. Cit. Pág. 334.
31 Ob. Cit. Pág. 334.
32 Costa, Dalila
Pereira da, “Os jardins da Alvorada”, Lello & Irmão Editores, Porto,
1981, pág. 79.
33 Ob. cit. pág. 51.
34 Boyer, Rémi “O
Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, Edições Zéfiro e Arcano Zero,
2011, pág. 97.
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