quarta-feira, 31 de julho de 2019
É de homem!
Se as pessoas e os animais não me ocupassem tanto tempo, lia mais, escrevia mais, pintava mais, pensava mais e tudo o resto ficava para segundo plano. Mas entre uma pessoa e uma página escolho a pessoa. O Pessoa é que tinha todo o tempo do mundo para as páginas. É nos buracos do tempo que escrevo, estudo, leio romances e pinto. Já pensar só requer um pretexto e qualquer coisa serve. Sempre desconfiei da soberba soberana masculina no que toca à intelectualidade. Normalmente as pessoas são o buraco do seu tempo. E sempre desconfiei que a falta de virilidade feminina era um embuste. Normalmente todo o resto fica camuflado ou pela ausência ou pela suposta "visão feminina das coisas", coisa em que não acredito nas mulheres. Têm essa "visão feminina das coisas" para agradar e não entrar em conflito com os que os cercam. Foi a diplomacia que arranjaram. Tornam-se todas em sorrisos, em paz e amor. E se não são isso, são viris e metem medo. Entram em conflito com todos os que as cercam e, no fundo, bem lá no fundo, numa sociedade patriarcal, salazarenta ainda nos costumes e cheia de bafio nas atitudes, as mulheres viris não agradam. Tornam-se solitárias muito mais depressa que os homens que já nasceram sós e não ocupam muito tempo com as pessoas. Acredito na androginia com a mesma intensidade com que algumas pessoas acreditam em Deus. Isso não faz de mim nem uma feminista nem ateia. Faz-me apenas desconfiada. Até prova em contrário todos são culpados ou de soberba intelectual ou de ausência de virilidade intelectual. Os restantes encontram-se só por serem solitários, homens, mulheres e assim-assim.
terça-feira, 30 de julho de 2019
Pré-campanhas
Quando há repetições de acontecimentos ou de situações em poucos dias isso indica que o tema que envolve esses acontecimentos ou situações são uma espécie de sílaba tónica do contemporâneo. Ultimamente tenho reparado que existe, a vários níveis, uma repetição da frase idiomática portuguesa "sacudir a água do capote". Foi de tal maneira repetitivo que atingiu pessoas importantes. Aquilo que são pessoas importantes fica ao critério de cada um, no entanto, pelos meus critérios, isso vai desde as pessoas que dão a imagem de terem poder (não é seguro que o tenham ou deixem de ter), até a outras que para mim têm a máxima importância mas não é seguro que a tenham para mais alguém. De tal forma foi que achei por bem escrever embora saiba que o que escrevo pouco é lido, pelo menos de forma visível já que invisivelmente ninguém pode afirmar com segurança que não é lido. Este comportamento que se traduz como "sacudir a água do capote", ou "passar a batata quente", ou "lavar daí as mãos", vem acompanhado, por vezes, de um intenso desejo de projectar uma imagem de correção em termos comportamentais, de moralidade superior em termos infra-religiosos ou até mesmo de beatude em termos religiosos e que obriga a complementar esse "sacudir a água do capote" com o "agradar a gregos e a troianos". Os períodos de pré-campanha eleitoral são férteis nesta associação de expressões idiomáticas. De qualquer maneira, nas redes sociais e na vida, cada ser individual parece ser obrigado por razões de competitividade que têm a sua base na "evolução das espécies de Darwin" e por razões de sobrevivência tanto no mundo social que o cerca como no mundo individual que muitas vezes é uma criação do indivíduo de uma imagem de um determinado contexto e enredo no qual é a personagem principal, parece ser obrigado, dizia, a estar numa espécie de pré-campanha de si mesmo inserida em "eleições" que só o imaginário onde aquele que se encontra envolvido numa pré-campanha de si mesmo, conhece. O resultado disto é uma injustiça e um desiquilíbrio (o que é a mesma coisa) alimentado por muito tempo num ciclo vicioso que parece não ter fim. No entanto, todos os ciclos viciosos têm fim porque o verdadeiro impulso do universo é a espiral. O movimento espiralado desenvolve-se por sobreposições de ciclos, uns de maior amplitude, outros de menor amplitude. Os ciclos viciosos são uma ilusão. O que verdadeiramente se está a passar é um reposicionamento. Imperceptível mas rigoroso. A Ordem tem dentro de si o Rigor mas não depende dele. Ele é o complemento da Mesericórdia. Entre um e a outra o que existe são ciclos que parecem viciosos. A Ordem apenas Observa a Observância. Sendo assim, na verdade (a verdade para alguns interessa, para outros é coisa secundária e menor o que é indiferente à própria verdade onde quer que ela esteja), se virmos tudo como uma pré-campanha, quer seja partidária quer seja individual, as coisas fazem sentido. É pena que seja assim, muito espectáculo e pouca uva, mas isso não descarta a possibilidade de nos rirmos deste mundo onde abundam os tiques de origem democrática, a esperança democrática, a falta de democracia, a pseudo-democracia, a ilusão de democracia, a democracia-traça à volta da lâmpada a queimar as asas, e mais, muito mais tipos e sugestões de democracia e democráticas. O riso é anárquico. Só pode.
segunda-feira, 29 de julho de 2019
A fonte
Ontem estive a ver um filme com o título: "A verdade e só a verdade" que conta a história de uma jornalista que não quer, que se recusa a revelar a fonte que lhe deu determinada informação indo parar à prisão e ficando a sua vida semi-desfeita por isso. O filme prossegue e mostra que a fonte foi algo que aconteceu na sua própria vida. Algo de inocente na sua própria vida.
A verdadeira fonte reside sempre na inocência da própria vida.
sábado, 27 de julho de 2019
Leonor
O gosto pela obra cega-nos momentaneamente para tudo o resto. Mas é necessário que estejamos na mesma obra para nos esquecemos de nós e de tudo. Depois, voltamos ao normal como se tivéssemos vindo do mesmo sonho e parece-nos que isso é impossível. Não, não é possível partilhar o mesmo momento quase como se não estivéssemos lá, sem corpo, sem eu, sem nós. São estas as piscadelas de olho da eternidade. Um conhecimento antigo. Uma verdade mais do que tudo que, quando quer, se impõe ao tempo e ao espaço. É soberana. E todo o resto perde importância perante esses momentos de eternidade que sempre o foram. É como uma espécie de visão mística fazendo desaparecer tudo à nossa volta. Há experiências que Fernando Pessoa nunca teve. Nem sequer virtualmente nos seus heterónimos e nas suas figuras. Creio que intuiu a Aldeia, mas só a sua chegada a ela. Intuiu um Mestre nela, mas só a simplicidade dele. Nunca saiu da cidade e todo o campo para ele era um apelo. Daí que se idenficasse com a nostalgia de António Nobre. Apesar de tudo, e de uma infância ainda muito tenra no campo, a nostalgia de António Nobre era verdadeira e vivida. Pessoa chega à aldeia pela infância de António Nobre. Era aí que se encontravam, na infância, onde tudo era possível e a latência das coisas era ignorada. Mas há algo de mais profundo no Portugal profundo. Algo que provavelmente só a Ordem se Cristo soube. E Pessoa chega também à Ordem de Cristo, pelo alto, vindo de um espaço do tamanho do cosmos e sintetizando-a quase ao nível do átomo para que melhor essa Ordem fosse entendida e, em simultâneo, escondida, dependendo o pendor do pêndulo do leitor: ora compreendendo o que lê, ora mais próximo do mistério que é sempre um som indefinido. Há coisas que nunca foram escritas. Ainda há coisas que nunca foram escritas porque foram só vividas. Não como uma infância curta, longínqua e com semelhanças com o Paraíso. São só semelhanças com ele o que se encontra na infância, como quem chega à entrada de uma aldeia e ainda não a conhece. Para isso é preciso ter atravessado os tempos e tantas vezes que este é abolido. Para isso é preciso ter atravessado os espaços e tantas vezes que ele se dilui e fica suspenso no tempo da eternidade. A verdade que atingimos e que nos atinge, está no poço que fica no centro da Aldeia. Está na fonte que fica no centro da Aldeia. Está no largo principal. Está na água que sobe e desce. Nos cântaros de Leonor que vai formosa e não segura. Na ânfora que nunca se parte, nem no fundo do mar. Não no meio dia nem na meia noite. Mas na hora que medeia o dia e a noite e que não se sabe qual é. Ou antes, poucos sabem qual é.
quinta-feira, 25 de julho de 2019
Água viva
Deixamos que a idiotice prevaleça e depois não nos podemos queixar. Que o pensamento estéril haja e aja nos discípulos, que se maltratem as árvores, que se construam horrores de betão, que a arte seja muito engraçadinha e bem copiada do estrangeiro, que se ensinem as crianças a não aprender, que não se glorifiquem as fontes de água viva. Depois... Queixamo-nos como bebés e dizemos que não percebemos o que corre mal.
quarta-feira, 24 de julho de 2019
As tias desavindas
Conta-me alguém a história das duas tias da aldeia que tinham sido muito amigas durante muitos anos e que, logo a seguir ao 25 de Abril, ao ficar uma de um partido e outra de outro, se deixaram de falar até ao fim das suas vidas. Esta história é frequente ultimamente, não porque haja um ou outro partido, mas sim, por causa dos fragmentos, restos e rastos de ideologias, pedaços soltos de religiões, e crenças nas mais variadas teorias, desde as das conspirações até às esotéricas com os dois pés bens metidos nos lamaçais ideológicos. Assim, assiste-se a sucessivos desentendimentos, afastamentos e raivas súbitas, até aí insuspeitadas, com base, muitas vezes, nas mais estranhas razões, e na mais aprumada irracionalidade. No meio de tudo isto, sinto que tenho sorte. Depois de, entre 2008 e 2012 de ter atravessado o pântano onde conhecidos se batiam por causas e "batiam" uns nos outros por causa delas, e depois do dia em que me tocaram e me empurram fisicamente por causa dessas aberrações modernas (por mais defensores das tradições, dos arcanos, das raízes que dissessem ser), dei por mim num deserto. Lembro-me de uma pessoa chegada ter dito que me metia nos copos por pura maldade, quando os meus copos eram cheios de lágrimas... Assim, a minha sorte foi a de ter passado pelo pântano e dele ter prosseguido para o deserto, nele ter chorado um mar de lágrimas e a de quando dele saí, ver que, num campo fértil, esperavam por mim alguns novos anjos que tinham vindo do alto e alguns velhos amigos que sempre o tinham sido com uma amizade imune a essas rodas vivas ideológicas, esotéricas, conspirativas e políticas. As tias desentendidas tinham desaparecido no horizonte baço devido aos incêndios e a mais cristalina manhã aparecia com flores cobertas de orvalho...
Um cerco invisível tinha-se erguido à minha volta e só o atravessariam aqueles que passassem inúmeras provas, algumas delas mesmo iniciáticas. Outros não precisavam porque estavam dentro do meu jardim donde, aliás, nunca tinham saído.
Em épocas caóticas as tias desavindas proliferam e parecem aves mortas a cair subitamente do céu. O espectáculo é deveras triste. O mundo, por mais que o neguem, anda deveras triste. Aparecem umas Fúrias (ver teatro grego) a atravessar o palco de uma ponta à outra, a meio do espectáculo, e cantam "paz e amor". Assim como aparecem, desaparecem, o que torna a figura delas em qualquer coisa de ridículo. Pregam isso como pregadores das novas seitas de microfone na mão e palmas no fim (quando não geram mesmo suicídios).
Ora a matéria prima da humanidade são as próprias pessoas. Esta verdade parece de La Palice e não é tão óbvia assim, como a verdade da Lili Caneças quando afirmou que "estar vivo é o contrário de estar morto" também não é tão óbvia assim. Aquilo que ainda mantém o mundo de pé são essas cercas invisíveis e as provas necessárias para as superar. E o apregoar em alto e bom som "paz e amor" não só não consta do rol dessas provas como se tornam imediatamente suspeitas por, a curto prazo, se tornar o apregoador do dito numa das entre muitas tias desavindas, ou nessas aves que quedam em morte súbita do céu.
segunda-feira, 22 de julho de 2019
A intelectualidade
Quanto mais penso, menos intelectual fico. Pensamos para gastar a intelectualidade. Depois, oferecem-nos rosas, umas das preferidas, as "Sweet Avalanche" e ficamos a olhar para elas. Coloco-as numa garrafa de whisky, porque elas são o meu whisky. E penso que gastei de vez a intelectualidade. E ponho-me a pintar um móvel velho. E tudo desaparece e fica o símbolo, a ferver, ofuscando tudo à volta. E penso de novo, (para gastar mais um bocadinho a intelectualidade) que esta contemporaneidade pseudo-criativa é infértil porque lhe falta o símbolo que une o que está dentro com o que está fora e ainda a tal verdade interior absolutamente transparente, sem enganos nem mantos a encobri-la. A única coisa que vale a pena são os símbolos, as rosas e o restauro daquilo que está velho. A intelectualidade não tem nenhum interesse face a estas três coisas. Nenhum. Apenas com estas três coisas o coração fica transparente aos que falam a mesma língua. E como os amo, Meu Deus, como os amo...
sexta-feira, 19 de julho de 2019
A medida de todas as coisas e a imensidão de todas as coisas
Para além da pintura, aquilo que é mais mencionado e admirado em Leonardo Da Vinci é a sua curiosidade infinita por tudo. Na verdade, hoje ninguém pinta como ele. A sua ternura e delicadeza que emprestava às personagens que pintou, o seu traço vigoroso, com força e vida nos seus esboços e desenhos, os seu detalhes, as suas rochas longínquas... Hoje quase não fazem sentido no panorama actual das artes, ou antes, das auto-denominadas artes, se são ou não, o tempo o dirá. Relativamente à sua curiosidade, hoje, o pintor e estudioso não teria mãos a medir com a quantidade de especializações que existem em praticamente tudo. O acesso ao conhecimento (que não é o mesmo que sabedoria), tornou-se em determinadas zonas do globo acessível e rápido. O desenho do Homem Vitruviano, quase-símbolo do próprio Renascimento e a legenda "O Homem é a medida de todas as coisas", se naquela época significavam, sobretudo, as potencialidades do conhecimento e os seus limites, hoje, tais potencialidades tornaram-se de tal modo numerosas que nenhum homem consegue acompanhar o ritmo acelerado do conhecimento da natureza. Mas há outra leitura, aquela Tradicional, desse Homem Vitruviano. Cada um, como ser específico guarda e contém potencialidades que podem ser desenvolvidas (daí o dizer-se que só se trabalha com 10% do cérebro). A expansão da consciência será uma dessas possibilidades que alguns trarão em si. Numa época de uniformização e de competição há a tendência para se pensar que todos trazem em si exactamente as mesmas potencialidades (um pouco na esteira do adágio "Os homens são todos iguais" herdado da Revolução Francesa) mas na realidade, à custa da confusão total entre o social e o individual, tende-se a uma espécie de entendimento de que todos, com as mesmas circunstâncias, são iguais. Evidentemente que não são. A igualdade esbarra sempre com a diferença individual. O Homem Vitruviano actual para existir, desenvolve apenas as possibilidades que em si estão latentes e essas podem coincidir ou não com as potencialidades sociais ou do seu contexto social. Já não procura a satisfação da curiosidade na sua forma total porque isso, com o grau de especialização que existe, é praticamente impossível: o contexto sobrepõe-se ao indivíduo nesse aspecto. Mas há a questão fundamental que permanece, pese embora as mil e uma explicações das diferentes áreas de especialização, e que é: "O que é o Homem?". Para além disso, e devido ao facto salutar da diferença fundamental entre indivíduos, embora tendencialmente negada, existem as potencialidades de cada um a serem desenvolvidas. Cada um, especificamente. Se coincidem ou não com o chamado "colectivo" ou com a sociedade isso, francamente, é viciar a questão e não tem a mínima importância se coincidem ou não. Podem, uma vez desenvolvidas coincidir, mas também podem não coincidir. Devido a esta obsessão de se colocar a carroça à frente dos bois, encontramos muitas pessoas a quererem agradar a muitas pessoas. O social está nitidamente acima do individual para que o individual sobressaía de alguma forma. É uma estratégia como qualquer outra num mundo uniformizado e competitivo. As questões fundamentais continuam sempre à espera de uma resposta e o desenvolvimento das potencialidades encontram sobretudo obstáculos neste tipo de sociedade que se crê (até ao nível espiritual imagine-se) ser a soberana do indivíduo. É assim que se vão aglomerando pessoas nas fileiras das melhores intenções que são, evidentemente, ditadas pela sociedade. Ouvimos frequentemente que, por exemplo, "um dia estaremos tão evoluídos espiritualmente que deixaremos de comer carne". Os mortos não voltam à terra para comer carne. Será que estão evoluídos? O que é que a carne e o peixe têm a ver com tudo isto? Na verdade, se o corpo transfigurado de Cristo está "evoluído", nem de carne, nem de peixe, nem sequer deste plano terrestre necessita... o desenvolvimento das potencialidades são aquelas que pertencem a cada um. A cada ser humano único. A "espiritualidade" (seja lá o que isso for) quanto muito é uma consequência desse desenvolvimento ou, para ser mais rigorosa, esse desenvolvimento só existe porque o Espírito foi ou é suficientemente forte para vencer os obstáculos, cada vez maiores, gerados pela sociedade actual. Uma das maiores confusões a que assisto é exactamente essa, entre o social, o individual e o "Espiritual". Quanto à pergunta fundamental, sempre actual e de difícil resposta que é "Quem somos?", a resposta, provavelmente, só nos é dada ou nos vai sendo dada à medida que as nossas próprias potencialidades são desenvolvidas. E ainda assim, não tenho a certeza. As certezas ficam para a maioria da população, para o social, essa entidade abstracta e inventada que parece saber tudo.
terça-feira, 16 de julho de 2019
Imundos
Imunes às imagens, hipersensíveis às palavras. O horror de Francis Bacon é bem-vindo e acolhido mas se vos disser cruamente, sem que haja qualquer imagem que o vosso rosto interior é desfigurado, monstruoso, atroz, que a vossa alma é imunda, escorregadia, esbatida, deslavada nas cores, informe, indefinida, feia, absolutamente horrível aí, e só aí, choram, retaliam, estrebucham e vingam-se. São imunes ao belo e ao horror nas imagens. Nas palavras são só horror. Ao belo das imagens, desdedanham, são indiferentes, não procuram, não admiram, não desejam, e dizem gostar tanto do belo como de Francis Bacon ou de outro horror qualquer contemporâneo, como a "Arte de rua", ou o que seja. Até de "Arquitectura" moderna gostam. Vocês são doidos. Todos. Imundos.
Maio
Não foi em vão
Que as rosas se abriram
Ou que aconteceu o Verão
Nesse Maio incandescente
Pousada no seixo
No alto da montanha
Viste a toda a volta
As linhas do destino
Sempre sagrada fora
Essa espécie de história
Que pareciam mais
Palavras apenas juntas
A arte fora maravilhosa
Sempre e do céu jorrava
Sempre e das mãos vertida
Sempre e de amor merecida
A oeste havia aquele verde água
Espelho líquido que dizia baixinho:
"Já fui a Sintra nos teus sonhos
E à floresta, e dei-lhe o sal da vida"
Não te surpreendes se passam
E nada sabem e o dizem com o olhar
Afinal és um mistério e um segredo
Unidos num sussurro entre anjos
O que trazes é essa grandeza
Das gentes que conheceste
E incorporaste na tua verdade
No teu saber e no teu estar
A gratidão não baixa a guarda
E ofusca qualquer movimento em falso
E guarda nos momentos de pausa
Do pensamento um sorriso eterno
Olha que flor tão lilás e lisa
A eclodir no meio do teu olhar
Indiferente às tuas penas
Aos teus desgostos e dores
Não conseguem levar para longe
Essa forma de energia na ponta dos dedos
Quando tocas em amores
E os vivificas só por quereres
Passas sempre a voar
Desde que te tornaste ave
E desde que tornaste voo
E desde que ficaste lá suspensa no céu
Quando te vejo não resisto
E escrevo um poema mesmo que durma nele
E invente de novo o que mais ninguém
Ouve em ti
Essa música tão mansa
Que se funde com o silêncio
Incapaz de parar, de reter o eixo do mundo
Incapaz de não ser uma espiral de desejo
As imagens, como sabes,
Ganharam a nitidez pressentida
Tornaram-se uma prova de vida
Um eterno espanto na verdade do coração
Barcos com listas pintadas
Gaivotas com olhos humanos
Árvores arrancadas,
Pinceladas de nuvens coloridas
Tudo, mas tudo te toca
Como se te abraçasse
Para te dar a conhecer o que são
E o que podes ser nesse instante
O vento passou a ser uma mensagem
A cor do mar passou a ser a alma
Reflectindo o espírito
E tu passaste a ser tudo isso
Sem princípio nem fim
Sem tempo nem espaço
Sem pontes que se atravessem
Por estares em ambas as margens
As flores brotaram
As rosas brotaram mais ainda
Nesse Maio incandescente
que sempre havias procurado
Desde o dia em que nasceste.
( Poema e Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)
segunda-feira, 15 de julho de 2019
A crise de valores
O lado hilariante desta viagem pela cabeça dos "pensadores actuais" está no facto de verem golpes palacianos em folhas de literatura espalhadas aqui e ali. A estrutura mental em que nasceram, cresceram e lá vão andando, mergulha as raízes no lamaçal das ideologias para "democrático" ver. Nenhum deles é anti-democrático e, no entanto, parecem sofrer da síndrome obsessiva compulsiva de verem golpes palacianos em todas as esquinas e vertentes do pensamento que não adira às balelas pegajosas democráticas. Sofrem do complexo de rei-sol e transformam a democracia numa ditadura sua e imposta à força a qualquer pensamento que queira despontar em solo literário. Todos os escritores têm de escrever de duas maneiras: ou falam de flores e borboletas ou têm de ir ao encontro das virtudes da democracia. Se juntarem as duas coisas, melhor. Qualquer inferno que possam vir a (des)escrever só o é se for resultado da queda do paraíso democrático. O único inferno aceitável por esta "vanguarda" é o do desvio dos ideais da Revolução Francesa e tem de ser rapidamente ultrapassado. Nem sei porque se dão ao trabalho de dizer que pensam. Bastava um que pensaria por todos e o serviço ficava feito. Mas a democracia é isso mesmo: um conjunto muito grande de pessoas a dizerem todas a mesma coisa por palavras raramente diferentes umas das outras. Não há dúvida de que a democracia se trata de uma autêntica harmonia universal, da uma sintonia das almas, de uma efervescência de uma sub-espécie de eternidade e dos vapores inebriantes que solta e entontecem tornando tontos quem dela bebe. Ao ponto de já nem reconhecerem a beleza da arte, a força da diferença e a sabedoria que só os sábios possuem. Em democracia não há sábios. Há apenas igualdade de oportunidades, contagem final dos votos e a literatura é um cão amestrado.
A Salvação
Há uma nítida tentação de se escrever para se salvar o mundo do mal. Não me ocorre salvar o mundo. Chega a ocorrer-me salvar o mundo de ele próprio. Escrever para fugir do mundo. Escrever contra o mundo. Escrever a favor do mundo. Salvá-lo é entendê-lo à beira do abismo. Para cada salvador do mundo há uma solução. Um remédio de salvação. A panaceia para os salvadores do mundo nunca é universal. E são tremendamente aborrecidas. Tão aborrecidas como os salvadores das almas. Deviam existir complementos literários. Duas prescrições antogónicas, dois olhos. A literatura tende a parecer-se com um ciclope. Para os mais místicos esse único olho é o frontal que, como a glândula pineal, dá acesso a outros estados, a outras pecepções. Depois os escritores mais místicos erguem a taça do que percepcionaram e dizem: "À nossa!" Querendo dizer com isso que o que viram ou percepcionaram vai contribuir para a salvação do mundo. Para quê? Se tudo são ciclos o mundo já está salvo e perdido e salvo de novo há muito tempo. Se ficarmos calmos, se conseguirmos ficar calmos por entre tantos salvadores do mundo e tantas almas perdidas segundo o ponto de vista dos salvadores das almas, do mundo e de tudo o que possam encontrar pela frente como glutões, o que resta somos nós. Sós. A sós com os nossos pensamentos. Quando pensamos. Nós, a sós com os nossos sentimentos quando sentimos. Quando os salvadores concordam uns com os outros tornam-se extraordinariamente perigosos. Quando não concordam tornam-se também perigosos. A sós connosco não somos perigosos para ninguém. Se formos perigosos para connosco salvamos o mundo de nós porque o perigo fica concentrado no pequenino ponto que somos. Se não formos perigosos para connosco o mundo e o caminho dele não interessa para nada porque é quando começamos a querer salvar o mundo, as almas dele, ou até a alma do mundo que começamos inevitavelmente a ser perigosos para nós, para os outros e para o mundo. Quem é que quer, de facto ter razão? Ou quem quer sentir mais do que os outros? Percepcionar mais que os outros? Ou quem quer ter aquela mania irritante de que "todos contribuimos" com o "nosso olhar sui generis" para a salvação do mundo dos outros e para o caldo entornado logo que há discórdia em maior ou menor grau? É por isso que não quero saber do mundo, da salvação dele, das almas que há nele e da alma do mundo. Não há frescura nenhuma em se querer fazer isso ou contribuir para isso. Todos querem isso, de uma forma ou de outra. A humanidade é um bando de gente bem intencionada e profundamente desastrada. Uma geringonça desengonçada. Também me choca quando me dizem que somos um "aglomerado" biológico, genético, social e para os mais místicos com o bônus (que sorte!) de uma alma individual. Lembro-me sempre de contraplacados não sei porquê ou então ponho-me a imaginar percentagens. 32,2 % de biologia, 18% de alma individual e por aí fora. Uma autêntica conversa de tolos. Para não dizer de doidos. O complexo de "Fernão Capelo Gaivota" invade todos os espaços, até os mais elitistas da intelectualidade, mesmo que venha com muita literatura e palavras caras à mistura quando estamos em fases decadentes de um ciclo. É inevitável. E como a qualidade é nula, como a desse romance, todos contribuem alegremente e com a tal boa intencionalidade para esse escorrega descendente e cada vez mais acelerado. O verdadeiro embrião da ascendência consiste em não querermos saber da salvação para nada. Nem da nossa, nem dos outros, nem do mundo nem da alma dele. Borrifarmo-nos nisso não é panaceia nenhuma. Não é remédio santo. É já estarmos livres disso tudo.
sexta-feira, 12 de julho de 2019
Concha (poema avesso às leis da física da poesia)
Naturalizada no transcendente
Impressa nas estrelas
Esventrada do inferno
Apocalíptica nas intenções
O verdadeiro bordado
Existe na paz circundante
Que nunca é muito extenso
Mas suficiente para o mar
A força do sangue
Impele as ondas
O desejo afasta as nuvens
A cor preenche o vazio
Entre um tic e um tac
Há uma viagem
Devolvendo o infinito
Às marcas de água
No corpo potente
Há uma taça flamejante
Envolta num ovo
No silêncio de qualquer hora
O segredo não se espalha
Concentra-se num só espaço
Estimula a vida quando está
E deixa fogo quando parte
Nenhuma época
É tão capaz como o futuro
Franqueado por deuses a sorrir
No íntimo captando o coração
Não há palavras inventadas
Apenas ditas de novo
Com a certeza de nunca
As termos alguma vez ouvido
No nevoeiro a serra, o mar
O feitiço que nunca o foi
O olhar estendido como um perfume
O sonho aproxima-se sem fuga
A arte é um mistério
Sem que possa ser conhecido
O sono ela não permite
A sua verdade nunca a consente
Que vos interessa, afinal?
Que sentem? O que pensam?
O que sabem?
O que vos faz ser?
O que permitem?
O que ousam?
Nada sabemos,
Apenas aquilo que o mar nos diz
O seu som é a língua
Dos que acreditam nele
Só memória e vida
Túmulos e berços
Curvas e rectas
E esperança no sal
Quando se calam os sinais
E o destino não é obrigado
A ser o que quiser
A concha solta a pérola
(Cynthia Guimarães Taveira)
terça-feira, 9 de julho de 2019
Na peugada ecológica
A avaliar pela quantidade de lixo que vi espalhado no parque de campismo que serviu de suporte a um desses festivais de música aqui da Ericeira vistos por jovens sedentos de passarem uns dias longe dos progenitores ou encarregados de educação, esta geração anda tão preocupada com o meio ambiente como anda o Trump. Isto vem ao encontro do meu pressentimento de que esta história da ecologia dada a injeções na escola é repetida por papagaios sem consciência para ficarem bem onde é costume trocarem entre si e darem aos outros "óptimas" imagens de si próprios: a de bons alunos que repetem o que lhes foi ensinado (cada vez mais a escola forma papagaios enformados), na televisão, no Facebook ou em qualquer entrevista ocasional que lhes seja feita. Depois, sob o efeito do álcool (esgotam os stocks das bebidas alcoólicas dos supermercados vizinhos da ocorrência festivaleira) e drogas (muito são apanhados pela polícia), esquecem-se da ecologia num instante e, na manhã da ressaca e do regresso às asas "protectoras" dos seus familiares, deixam um rasto de lixo atrás deles. É a geração Erasmos, culta, viajada, informada, ecologista na sua única causa, que merecemos. Eu que pinto umas coisas sou a primeira a não acreditar nas imagens e se eles, ao menos, pintassem, talvez também não acreditassem... Mas teriam que largar a esquizofrenia oscilante entre a vaidade das selfies e a vontade de um planeta limpo azul e verde, entre as boas notas que arrancam e a capacidade de raciocínio que denotam quando falam, entre as causas que abraçam e tudo o que vão fazendo para as esquecer. Como dizia alguém quando eu era da idade destes festivaleiros, "ser jovem não é necessariamente ser estúpido", o problema, digo eu, é que as mentalidades "evoluem", são educadas com base na "consciência", e com a determinação das "causas", e ficam estúpidas ao ponto da frase citada poder apenas tornar-se numa ironia. O problema, hoje, é ninguém se atrever a chamá-los de "estúpidos" com medo das lesões emocionais que possam ser despoletadas (o "alavancar" é uma americanice) e isso, pelos vistos, é muito pior do que as lesões cerebrais que possam vir a ter à conta dos comas alcoólicos, ou das "graças divinas" das drogas diárias ou quase, ou do que quisá, e se alguém lhes chamar "estúpidos", poderem vir a beber e a drogar-se ainda mais, sendo pior a emenda que o soneto, de maneira que, alguma coisa se passa e que me faz duvidar de qualquer imagem que me seja projectada, tanto pelos jovens, como por alguns educadores (país e professores), como por qualquer "onda" juvenil muito ecológica e sentimentalista. Se não duvidarmos, vamos todos ao engano, oh, se vamos...
segunda-feira, 8 de julho de 2019
Resposta
Resposta aos Espíritos livres, viventes na sociedade democrática, tolerante, repetitiva e repleta de tédio que se espraiam sempre nas mesmas jogadas, e não arrepiam caminho na sua jornada hipócrita e mentirosa, falsa, inconfiável e sem Pinga de criatividade:
No meu território fechado, todos são livres, no vosso território aberto, todos são prisioneiros.
No meu território fechado, todos são livres, no vosso território aberto, todos são prisioneiros.
Coisas sérias e a sério
Foi no chão daquele estúdio de ballet que tudo se passou. Andei no ballet em miúda e parte da adolescência. Só uma ou duas vezes por ano tínhamos uma aula livre. O resto do ano eram, excercícios, excercícios e excercícios. O dia da aula livre não era anunciado. Era surpresa. Dividia-se a turma em dois grupos. Depois a professora perguntava: "Quem quer ser a coreógrafa?". Duas de nós tínhamos de dar um passo em frente para escolher a música e coreografar cada grupo. Normalmente era tímida, mas nessa ocasião nunca era. Avançava. Escolhia a música. Metade fazia a dança dos fru-frus, do lago do cisnes ou algo semelhante. A outra metade, coreografada por mim, dançava outra coisa. Já tínhamos tido classicismo suficiente. Dispunha-as em fila. Dançavam a marcha triunfal. Gestos precisos. Sem darem saltos. Inclinavam-se para um lado e para o outro. Os braços faziam o resto da dança. Dispunha-as em fila. As outras, da outra coreografia faziam o ritmo da flor, abrindo e fechando em círculos. As minhas dispostas em fila, sem perceber muito bem onde queria chegar. Trocavam de lugar, às vezes. O único propósito era o de acompanhar o triunfo da música. Nunca lhes expliquei isso. Dava-se graças com as palmas das mãos viradas para cima e os braços erguidos e afastados. Foi nesse chão do estúdio que tudo aconteceu. A vanguarda, espreitava. Triunfava. Depois de excercícios, excercícios e excercícios de bailado clássico. A vanguarda entrava triunfante. Atravessava as bailarinas circulares, em fila, como uma seta e encontrava a sua glória para além do classicismo, encontrava o seu triunfo na Tradição, porque atravessava, em fila, como uma lança, o cálice circular das flores. Era o Universo de Eros no seu esplendor. No chão, bem no chão do estúdio.
domingo, 7 de julho de 2019
O valor da indefinição
Tal como no êxtase, num determinado tipo de arte, ou num determinado patamar, no momento em que nos entregamos, tudo à volta desaparece e/ou fica para segundo plano. O tempo é, na verdade, inexistente, de maneira que, embora a aceleração possa contribuir para uma espécie de expressão no imediato, isso não é o mais importante. O mais importante é o facto de todo o corpo entrar numa espécie de viagem cuja urgência é o resultado final ainda que não se saiba muito bem qual seja. Esta indefinição quanto ao resultado final pode ser confessa, abertamente confessa ou pode ser escondida pelo artista em relação a si mesmo de forma inconsciente e nesse caso, não é confessa. Mas a realidade é que essa indefinição existe. Confundir arte com ciência, cuja meteorologia é rigorosa, é regredir, exactamente, por não se desejar esse espaço de indefinição. A ciência trabalha com objectivos claros, o mais que pode ter são surpresas. Arte e ciência não se opõem (até porque ambas podem ter uma relação mutualista) mas as suas naturezas são diferentes. A arte anda mais próxima de um êxtase porque contém, tal como ele, o dom da revelação. Há uma respiração parecida. Um universo único que se atravessa e se sustém no período de elaboração. Um tom, um timbre, um toque da asa de um anjo. Ao fim de alguns anos, a actividade artística, quando seguida nesta linha de honestidade interior e total entrega, esquecimento de si, e apagamento e/ou secundarização de todo o contexto e cenário envolvente, existe uma estranha capacidade que se adquire de observação dos seres. Assim como a asa do anjo toca a obra, toca também o artista. Dá-lhe um olhar vigoroso, profundo e perspicaz que nada têm a ver com a esperteza, a vivacidade ou a assertividade que alguns seres humanos parecem possuir desde a nascença. Esse olhar é um produto, um resultado de uma actividade para a qual se nasceu ao passo que quem nasce esperto, vivo e assertivo nem tem por isso obrigatoriamente, a propensão para a actividade artística. No caso dos artistas, o que se passa é duplo: capacidades que até aí estiveram em latência despertam e novas capacidades, por sua vez, são adquiridas. A marca da arte é a transfiguração, entendendo-se que o figurado corresponde ao interior do artista, e que a transmutação corresponde ao seu génio ou anjo ou duplo ou o que se queira chamar. Ambos são necessários. No êxtase místico pode haver ou não transmissão de conhecimento uma vez que o místico é passivo. Na arte, como a obra é sempre colectiva, sempre, nem que seja nessa relação entre duas entidades, ela forçosamente é uma actividade devido à dialéctica, ao movimento e ao entrecruzar entre duas realidades, a física e a extra-física. Estes pressupostos, que são tradicionais, são completamente alheios à suposta arte que se faz hoje em dia e é por isso que se assiste à possibilidade de qualquer um poder ser artista da mesma forma que qualquer um pode ter quinze minutos de fama. Quando nos desviamos destes pressupostos, aquilo com que se fica é com uma espécie de ginástica artística, sem nunca se alcançar o sublime bailado. Tem valor como exercício, quase apenas físico, enquanto a arte permite, de facto, uma transfiguração e uma transmutação no ser.
sábado, 6 de julho de 2019
Chovia nesse dia triste
Chovia, chovia devagar
Nesse dia triste
Em que as sombras
Não aguentaram mais
E saíram de dentro dos corpos
E via-as a navegar
Por debaixo das faces
Eram sombras, simples sombras
Mas já lá estavam há tanto tempo
À espreita, à espera
Desse gesto teu que sempre
Esteve envolvido em véus
Que disfarçavas com músicas
E canções
E lamentos de lira
Eu vi-as sair
E rodopiar de alegria e triunfo
E ficaram para sempre ao teu lado
Perto do teu rosto
Impressas na tua capa de cavaleiro
Sem norte nem verdade
Tenho a satisfação que há num jardim
Onde estão todas as flores que queira
Todas elas se oferecem e se inclinam
E murmuram nos recantos:
Poderemos ser tudo num instante.
De ti ficaram as sombras
Dispersas pelo jardim, só a forma
Sem cor nem cheiro
Nem verdade que amanheça
Nem prisão sem grades donde possam sair
Tive um amor um dia
Era um pássaro sem fim
Cantava como um cisne
Voava como um merlo de veludo
Atravessava os céus com olhos de águia
Ia e voltava como uma andorinha
Rodeava-me com danças
E julgava ser
Todos os pássaros de uma só vez
Um dia caiu morto
Mesmo junto de mim
Peguei nele e perguntei-lhe
Porque tinha morrido assim
Piou ele que foi por ser
Só um pássaro sem princípio
Para além de não ter fim
E nesse instante voou
Por já saber do início
Não bastava não ter fim...
No princípio estava a verdade
Tão escondida como as tuas sombras estiveram
Soltaste-as, viveram e dependem de ti
Dependem sempre de ti
Sou o graal que esconde Portugal
Se é sombra ou um jardim?
Isso é a prova que cada alma faz
Quando toca os seus lábios
Nos astros que rodeiam toda a esfera
Depende do pássaro que voa
Depende se a arte apavora
Depende se cais morto junto de mim
E voas a partir do início
Tive um amor que foi assim...
(Cynthia Guimarães Taveira)
sexta-feira, 5 de julho de 2019
Um texto de ficção
No prédio em Lisboa onde passei a infância, a adolescência e parte da vida adulta havia uma porteira cujo comportamento era o de uma autêntica mãe galinha de todo o prédio, de todos andares e de todas as famílias. Era a ela a quem todos os inquilinos davam as chaves de casa para que pudesse haver sempre uma chave disponível caso nos esquecemos dela em casa e não pudéssemos entrar, era ela que nos regava as plantas quando íamos de férias, que resolvia alguns problemas práticos e ficava com as crianças "se fosse mesmo necessário", enquanto os pais saíam para tratar de qualquer coisa. E era ela também que entrava quando queria pela nossa casa, surpreendendo-nos pela visita inesperada para nos dar um recado qualquer ou uma informação. A minha mãe, freverosa adepta do topless, tanto em casa, como na praia, foi tantas vezes apanhada naqueles propósitos que a nossa porteira começou a achar por bem abrir a porta e gritar: "Está vestida, Senhora Doutora? sou eu.", e a minha mãe lá respondia: "Só um bocadinho, D. Emília". Numa dessa entradas súbitas, aconteceu uma situação que nos ficou na memória para sempre. A D. Emília entrou, e falou compulsivamente como era costume do assunto que a levava ali, no fim, a minha mãe perguntou-lhe como é que se achava a situação de saúde do marido e ela disse: "Não está nada bem, vai ser operado ao coração. Veja, é só desgraças. Ainda por cima a Carolina hoje vai partir um pé". E saiu. Ficámos a olhar uns para os outros sem perceber nada, julgando-a uma espécie de vidente. No dia seguinte foi desvendado o mistério. A Carolina era uma personagem de uma novela. Uma bailarina. E a D. Emília sabia que ela iria partir um pé no dia anterior porque tinha lido a TV Guia, revista semanal da altura sobre televisão e que publicava os resumos da telenovela. (Só havia dois canais).
Na verdade, na cabeça da D. Emília, aquele facto da telenovela fazia parte da sua lista de preocupações. Não sabia distinguir a ficção da realidade, tal como muitos leitores procuram na vida real factos que tenham levado o autor a escrever a ficção e procuram na ficção de determinado autor, factos que aconteceram na vida real desse autor. De maneira que este problema é transversal a qualquer classe social e/ou intelectual. Há como que uma recusa da literatura em abono da vida real ao passo que a D. Emília dava o mesmo peso à vida real e à ficção, contribuindo ambas para o peso das suas ralações. Evidentemente que tudo isto me faz rir, ainda hoje. A operação do marido da D. Emília correu bem e viveu ainda por muitos anos. A Carolina partiu o pé mas recuperou, salvo erro, e continuou a dançar, salvo erro. E as pessoas prosseguiram, confundido a ficção com a realidade. Outras, com mais sorte, viram a ficção tomar conta da sua vida, e as pessoas à volta a não acreditarem que tal coisa pudesse acontecer, tentando explicar esse acontecimento com teorias psicológicas oscilatórias e convencendo-se de que essa explicação era a realidade dos factos, quando a realidade dos factos era bem mais simples do que isso: a ficção tinha participado, de facto, na sua vida. O povo anda muito mais perto da verdade embora não tenham consciência disso e isso porque ninguém os despertou. Nesse despertar está toda a diferença ao passo que na intelectualidade morna que encontramos está toda a distância profunda em relação à verdade, todo o adormecimento. É dessa maneira que, na Índia, vemos alguns intocáveis a participar em ritos dos Brâmanes, e na nossa aristocracia vemos os Reis perto do Povo. Na aristocracia verdadeira, porque a outra, a democrática é um lamaçal. Tal e qual a intelectualidade morna, convencida, Aristotélica e Platónica em simultâneo (sem chegar aos patamares de ambos os filósofos), e vulgar nas explicações do inexplicável.
Auto-proclamações
Parece haver por aqui vida e não é auto-proclamada, não precisa. É assim que olho em meu redor, em determinados locais. A auto-proclamação está na moda. Há imensas pessoas a auto-proclamarem-se. Quando digo imensas, é mesmo imensas. Pelas ruas de Jerusalém podíamos, e creio que ainda é assim, encontrar as pessoas mais díspares. Um homem, por exemplo, visto por um amigo meu há uns bons anos, andava por lá vestido de Napoleão. Auto-proclamou-se Napoleão à boa maneira de Napoleão que se auto-proclamou Imperador.
A auto-proclamação é como uma febre e confunde-se, nos tempos mais inseguros, com a própria identidade da pessoas. Quem se é, pelo que se é, quem se pensa ser, ficam assim unidos e constituem a imagem que a pessoa quer para si e para revelar aos outros. A auto-proclamação é sempre uma revelação no sentido mais profano do que pode ser uma revelação. E também é uma espécie de bandeirola que serve para justificar, quando se torna necessário (e, às vezes, urgentemente), toda a espécie de actos. Alguns deles tresloucados. Napoleão invadiu uma série de países porque se auto-proclamou imperador e vice-versa, no caso dele. Bem o caso dele não são todos os casos nisto do "vice-versa", mas também não tem importância que não o seja. O que é importante é que haja auto-proclamação. Nas ruas, nos jornais, no Facebook e por aí fora. É a auto-proclamação que devolve a identidade das pessoas quando elas não fazem a mínima ideia quem são (ou que alma têm, como disse Fernando Pessoa no fim da Mensagem). E podem auto-proclamar-se o que quiserem, isso não aquece nem arrefece o conhecimento da sua própria alma, que é quase nulo. Quando me aparecem com auto-proclamações aparece-me logo o fantasma de Napoleão a passear em Jerusalém e a vontade que me dá é de perguntar aos auto-proclamados se trouxeram a bandeirola e a coroa imperial. Por detrás de cada auto-proclamado pode estar um Imperador escondido. Nunca sabemos... há vida por aqui. E a vida, é outra coisa. Assim como a alma que a compõe. Sem auto-proclamações. Não precisa.
quinta-feira, 4 de julho de 2019
O subaproveitamento em proveito próprio
Lembro-me de que quando dei aulas, no prolongamento de horário, de artes "plásticas" (vão chamar "plástico" a outra coisa, mas não à arte) dei umas aulas em que resolvi limitar propositadamente os meios dos meus alunos pequenos, todos do ensino básico. Lembro-me, por exemplo de lhes mostrar uma aguarela oriental, em tons pastel de amarelo canário, preto e cinzento azulado, de lhes colocar apenas essas cores à disposição e de lhes pedir que fizessem uma pintura o mais parecida possível com a original, até porque era muito simples. Muito bonita e muito simples. O resultado era fascinante. Todas diferentes mas todas uma tentativa absolutamente própria e pessoal de alcançar o modelo. Em suma, limitava-lhes os meios e a criatividade surgia espontaneamente e de uma forma que só os verdadeiros artistas (já pareço o Serafim Saudade) sabiam reconhecer - lamento mas há, e sempre houve, verdadeiros e falsos artistas. Isto a propósito do subaproveitamento que torna vítimas algumas almas artísticas. Esse subaproveitamento não é mentira nenhuma, é estúpido e faz sofrer. Quanto mais capacidades tem uma pessoa mais susceptível fica ao subaproveitamento porque a sociedade, no geral e actualmente, não entende nada nem de arte nem das capacidades inerentes à mesma. Foi na agonia do sofrimento de sucessivos e convulsivos episódios de subaproveitamento que descobri que os outros não precisam de nós, nem das nossas capacidades para absolutamente nada. Na verdade, no corrente momento da história, as pessoas estão-se nas tintas umas para as outras e para as capacidades de cada um. Como anda tudo doido, isso não conta para nada. Foi assim que descobri uma verdade de La Palice: quando há subaproveitamento nasce o proveito próprio. E foi assim, também, que sobrevivi à cegueira e à ignorância que me contextualizam. De um dia para ou outro deixei de ter o sentimento de "dever", de "possibilidade de ajudar", de "mostrar o que fazia" o que para o contexto foi uma mudança insignificante, pois o contexto definitivo é o "estar-se nas tintas" mas para mim foi como achar um tesouro. Mais um porque tenho vários. O "proveito próprio" das nossas capacidades maiores foi a única forma que essas capacidades arranjaram para sobreviver no meio de cegos, ignorantes e invejosos. Descobri que ajudar os outros nas coisas práticas era o único grau de exigência que as pessoas tinham para comigo. Tudo o que fosse mais do que isso, era perfeitamente dispensável. Ninguém perguntava nem ninguém queria saber. Mas o proveito próprio é o acto mais egoísta e, porém, o mais lúcido se não queremos adormecer e/ou tornarmo-nos dormentes. O mais estranho, e que tenho vindo a descobrir é que, quanto menos contactos tenho com esse contexto que não quer, nem nunca quis saber das minhas capacidades para nada, com mais capacidades fico. É uma espécie de criação num viveiro, como uma cerca natural, feita e mantida pelo contexto, não por mim, e que acaba por resultar em algo parecido com o que se passava com as crianças a quem limitei as cores e as formas. Foi assim que dei comigo a fazer coisas que pensava que nunca seria capaz de fazer. Em proveito próprio, claro, porque o contexto permanece indiferente à minha existência e deixá-lo estar assim sem contaminações desnecessárias e inócuas. Nunca pensei que o egoísmo trouxesse tantas benesses, sobretudo numa época em que todos são egoístas e todos criticam o egoísmo. Fazem-no de forma egoística, claro, porque o nosso egoísmo é sempre melhor do que o dos outros.
terça-feira, 2 de julho de 2019
Enfim...
O país mais esquizofrénico é aquele apresentado nos telejornais. Por um lado todas as acções colectivas de solidariedade têm êxito, por outro, há ladrões e vigaristas por toda a parte. Isto a par com uma televisão pobre e triste, e com um Facebook que vende imagens e nada mais. Dizia-me uma amiga que lhe parecia que os pais agora já não tinham filhos, tinham imagens. Vendiam ou impingiam os filhos aos outros como se fossem marcas registradas. E o pior são as meias tintas. Pobre país, entregue aos bichos e às causas pontuais que remendam apenas. Sonhava com mais, pensava mais alto do que isto, imersos de novo na pasmaceira, balizada por extremismos ideológicos estrangeirados. Sonhava que o país era um sonho.
Se decidirmos ser dualistas, então..
Foi quando o ouvi dizer "É Barroco, e ainda bem!" que tive a confirmação de uma série de coisas. Dizem alguns teóricos que o mundo balança, por ciclos, entre o Espírito Barroco e o Espírito Neo-clássico. Quem diz "balança" no presente pode dizer "balançava" porque nos dias de hoje já não se balança nem se dança, é mais uma espécie de ginástica competitiva cuja estética é casual e não essencial. As cornucópias e os dourados barrocos parecem querer fazer ascender os homens aos deuses por suas reviravoltas e, pelo mesmo caminho, fazer descer os deuses aos homens a tal ponto é que os deuses nem são mencionados. E porquê? Porque já co-existem de tal forma que não há diferença entre homens e deuses. O Barroco é um Espírito que incorpora pelo movimento. A perfeição do movimento faz-nos lembrar a perfeição do movimento dos deuses que se enquadram em todos os desejos humanos. O humano e o divino confundem-se e misturam-se num claro-escuro. O Barroco é a síntese, o êxtase estático do movimento. Já o Neo-clássico é frio. A separação entre os deuses e homens é nítida. Os deuses são aquilo que os homens não são. A contemplação é genuinamente parada. Fria como a pedra perfeita com os corpos serenos dos deuses que são só destino e imagem. Embora Camões esteja inserido no Renascimento como corrente, deuses e homens, nos Lusíadas estão em movimento. Os deuses não estão serenos no Olímpico depois de vivida a sua história. Permanecem em actividade, ora adjuvante, ora oponente. Não há serenidade formal nos Lusíadas. Há um para-barroco imanente. A transcendência não é distante e ideal. A vida como movimento incessante é o eixo da activalidade divina e humana. Foi quando o ouvi dizer: "É Barroco, e ainda bem!" que percebi. Esta corrente está muito mais próxima do ser-se português. E faz toda a diferença. Quem pensa em deuses serenos que não são como nós só pode ter um deus dentro de si adormecido ou não o ter de todo. Se ousa despertar torna-se Barroco. Quando se cola o classicismo ao catolicismo o resultado é no mínimo estranho. Todo o céu fica mais distante porque só é alcançado por via da razão, ou seja, não é alcançado de todo. O que se alcança, normalmente é uma imagem. Uma imagem de equilíbrio. Ora a imagem de equilíbrio não é o equilíbrio. É no desiquilíbrio do Barroco que está o equilíbrio. Há sempre um desgosto neo-clássico, o desgosto de nunca se alcançar o patamar dos deuses. No Espirito Barroco, não se pensa nisso. Está tudo vivo e presente. A Idade Média era profundamente Barroca, o nosso Renascimento em Camões era tendencialmente Barroco. Fernando Pessoa com as suas Cornucópias incompletas também o era. A Cornucópia da abundância, clássica, é o ponto de fuga do próprio Espírito Clássico. Quando os deuses se movem são barrocos, quando ficam petrificados em mármore, são matemática pura com um perfil sereno e inefável. "É Barroco, e ainda bem!" Como é bela esta frase e a fúria dele quando disse gostar da perfeição da queda do tecido, como se traísse a verdade. Dois mundos, duas maneiras de estar, duas estirpes, dois movimentos da história. Um só êxtase. Só o ouro resgata os clássicos.
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