O mais alto valor de Portugal é a liberdade (quantas vezes
tendo como forma de expressão a independência...). Colocou, a minha amiga Alexandra Pinto Rebelo,
a fotografia da serra de Nossa Senhora do Socorro numa rede social. Estou certa que, lá em cima, bem no alto,
e quando se olha em volta, usufrui-se desse sentimento de liberdade. Qualquer
um pode subir a montanha. A forma mais rápida é em sonhos. Fechamos os olhos
e, num rasgo estamos lá. No entanto, e embora o sonho seja veloz, como por
exemplo o facto de se colocar a aprendizagem acima de tudo (forma de liberdade
também), o sonho está no domínio do frio... (complementar do quente). Quem o
faz em sonhos chega lá, mas quando acorda, dá-se uma sensação de frio, como se
a justiça predominasse sobre a mesericórdia. A paridade entre o sol e a lua,
permite a correcção entre ambos à medida que, tanto por via do sonho, como por
via dos pés no caminho, permite um usufruto da liberdade cuja temperatura é
semelhante ao paraíso. É como as formas de luz, que tanto Goethe tentou
perceber: a luz pode iluminar a paisagem, como um objecto ou pode conter em si
uma propriedade, uma espécie de fogo que, ao mesmo tempo que a desvenda a
completa com um substrato cognitivo muito mais lento (mas mais duradoiro ao
longo do caminho) do que esse salto, aparentemente irracional, que é o sonho,
mas cujo resultado pode ser simplesmente acordar numa estepe deserta.
Quando Camões chama a atenção para o “saber de experiência
feito”, chama, igualmente a atenção para o “saber de teoria feito”. A teoria,
estranhamente, é o sonho. O sonho, em determinadas alturas precede a realidade,
como a teoria precede a prática, como os arquétipos precedem o mundo... a
experiência é o encontro com um certo “precedimento” ao mesmo tempo que já foi
construido ou descoberto em nós... daí que, a verdadeira leitura, seja uma confirmação e que
o paraíso, para certos sábios, seja poder ler e, finalmente, ler compreendendo.
Indissociável, é portanto a liberdade do conhecimento. Falo do caso português
como via. Ora a grande vantagem de um povo marítimo é esse mar que é todo
liberdade. A grande lição é a aprendizagem da bússula, das estrelas, do
astrolábio, num dialogo incessante entre terra e céu para melhor se saber do
mar...
O substracto deste povo é de uma liberdade endémica. Volta e
meia, e por via instintiva se sonha com o cume da montanha e daí as sucessivas
revoluções sobretudo depois dos Descobrimentos, numa tentativa de re-alcance da
liberdade perdida, no entanto, se formos atrás, e até Aljubarrota, a grande
batalha foi a de definir as fronteiras face a Espanha (porque face ao mar não há fronteira numa viagem que é, em simultâneo para o futuro e para o passado) e ainda a construção de uma liberdade espiritual absolutamente sui generis... no modo como foi sendo edificada e mantida, com actos de violência máxima e de doçura máxima mas cujo o cerne, lá está, e volta e meia, reside sempre na procura dessa liberdade, num diálogo com o divino, (quantas vezes directo, dai a originalidade portuguesa...) algumas vezes traduzido em paz, não a artificial que hoje tanto vigora, mas naquela que dilui as dúvidas e os fragmentos, tão rara... e tão num ápice, mas ainda assim, existente por diversas vezes. O movimento é incessante. Do que nos esquecemos nas últimas revoluções, desde D. Sebastião, é desse
principio de independência que é a primeiríssima forma de expressão da nossa
liberdade, e esse esquecimento deveu-se, em grande parte, ao contágio com os
problemas que nos vieram de fora, obrigando-nos a um circulo vicioso de
pequenas revoluções necessárias para que nos mantivessesmos de pé, mas não
totalizantes no que concerne a essa subida à montanha, confundindo-se esses
pequenos rigores com o sonho, quando nem isso é. O que alguns
autores nos vêem lembrar, é exactamente essa separação entre as guerras que não
são nossas mas que as cumprimos por falta de alternativa e o aviso de que a par
destas corre um sonho verdadeiro e útil que por sua vez corre a par com a
realidade com os pés na terra. Quando um autor, mesmo que de forma implícita,
faz esta separação, é absolutamente imprescindível dar-lhe atenção pois
encontra-se num estado de lucidez e de sintonia com o país que pode estar na
base de uma saída pelo alto a uma temperatura que permite a entrada nos
domínios da liberdade feita de amor, e, por isso mesmo, quente e susceptível de
ser partilhado por muitos e muitos anos e povos. É o chamado Banho Maria do
nosso país, que, com um nome masculino (único na Europa), guarda em si, todas
as Beatrizes, Sophias, Leonores, Margaridas que a Europa intuiu, ou não tivesse
sido raptada, mas que, foi perdendo pelo caminho devido a guerras, algumas
delas, francamente, desnecessárias. Não somos aqui uma espécie de Suíça,
gelada, oportunista e indiferente a tudo. Muito temos sofrido em consequência
da Europa, mas penso, sinceramente, que temos uma palavrinha a dizer à Grécia
no que toca à ver acção pelo mundo, não feita de sugestões e alusões, mas feita
de “experiência”. É que navegar no Atlântico é muito diferente de navegar no
Mediterrâneo: poderemos ouvir os gregos, em parte, mas desde sempre soubemos
que a terra era redonda e não quadrada como Tales pensava... Poderemos dar-lhe
uma palavrinha, conversar um pouco, trocar ideias, mas Ulisses, quando partiu
em viagem, chegou às colunas de Hercules e viu que tudo era diferente do que
pensava, esse sim, com “saber de experiência feito”, fundou Ulissipo, na terra
da Lux (itânia) cuja memória ainda era mais antiga do que a dele, porque
mantida viva, não só em história... talvez por essa liberdade endémica que nos
percorre as veias, obrigados que fomos a percorrer o mundo e, nessa obrigação,
descobrimos, a um nível inconsciente, o que seria a verdadeira liberdade e como
afinal, sempre havia estado em nós, na aparência de um castigo e no substrato,
uma missão. Uma missão de libertação, evidentemente: entre a raiz e a flor, às
tantas, não há diferença, queremo-la inteira para que possa haver mais. A
eternidade reside algures aí, mas se nos darmos conta da luz com que é feita,
hei-la desvendada aos nossos olhos, no seu verdadeiro esplendor, bem no meio de
um jardim, no alto da montanha, toda ela em vida transbordante.
(Cynthia Guimarães Taveira)