sexta-feira, 29 de julho de 2016

Do ver as estrelas até ao “até ver estrelas”

 
 
 
O sistema económico em que estamos absortos, para não dizer, submersos, prende-se com uma série de defeitos, muitos deles ligados à má relação que se tem com o tempo.

René Guénon sexualizou a questão do espaço e do tempo, concedendo o primeiro ao masculino, porque os homens caçavam no espaço e construíam no espaço e o segundo ao feminino porque as mulheres geravam no tempo. A questão da sexualização quando ultrapassa a fronteira do símbolo pode ter como consequência exactamente o mesmo erro que pode ocorrer quando se lê um texto considerado sagrado: a leitura literal do texto sem que ocorra profundidade qualquer nesse acto de ler e mesmo de pluralidade de interpretações. A palavra, entre as suas múltiplas facetas é também simbólica. Exactamente como qualquer símbolo, quando reduzida a um só significado perde a sua mobilidade e, ao perdê-la, perde a sua capacidade de ser coisa viva.

Temos vindo a ver ressurgir um certo gosto no paganismo, produto, em grande parte, de um crescente desejo de se regressar “à terra”, “às origens”.  Perfeitamente compreensível num mundo que construímos cada vez mais artificial. Tais movimentos são vistos como um “ai Jesus” pelas religiões monoteístas que assim assistem perplexos  (e às vezes em pânico) áquilo que consideram, por um lado uma “involução”, na base da total crença que a conquista de um só Deus é uma conquista benigna para a humanidade e, por outro, porque tais movimentos seriam a entrada no inconsciente ou subconsciente das religiões coisa que as mesmas optaram, na maioria das vezes, por não falar delas (quantas vezes apelidados de demoníacas) ou por outro ficando tais áreas reservadas a uma elite, secreta mas convertida a uma instituição (veja-se o caso de Dante e do Catolicismo).

A perpétua queda do homem no materialismo foi acompanhada pela completa inaptidão para simbolizar.

A má relação com o tempo, em termos simbólicos terá, para uma cabeça simbólica, relação com a má relação com a mulher/planeta terra/mãe natureza.

Antigamente, homens e mulheres (porque não creio que vendassem as mulheres) observavam as estrelas. O passar delas e o seu percurso pelo céu. Construíam, em seguida, autênticos observatórios astronómicos que tentavam estar em sintonia com o movimento temporal dos astros e corpos celestes. A noção e o conhecimento do tempo pareciam tão fundamentais que se construía em redor de tal coordenada terreste.

Hoje o homem, tal como afirmou Mircea Eliade, foge para a frente. Tem medo do tempo. O tempo é o grande devorador dos homens. O problema é que, nessa fuga, os gestos dos homens provocam a própria aceleração do tempo e consequentemente a contração do espaço. O tempo passa mais depressa quando o espaço é contraído.

Dizem que houve um dilúvio e que a espécie humana esteve em perigo. Se isso é verdade, e se a mulher é aquela que transporta e gera a espécie humana dentro do seu próprio ventre, então ela veio a adquirir, em termos simbólicos um excesso de zelo traduzido nos inúmeros tabus sociais de que foi alvo ao longo da história e ao longo dos monoteísmos. Ainda não ultrapassamos o trauma do dilúvio. Aliás, toda a nossa cultura tem como base esse acontecimento. A reprodução em massa da espécie humana é um sintoma de um trauma colectivo que se disseminou por formas religiosas traumáticas elas mesma. A figura feminina tem sido alvo de excesso de zelo. Sob as mais diversas formas, positivas e negativas, mas em excesso. Essa relação foi tendo importância no modo como se percecionava o próprio tempo. E hoje não entendemos o tempo da mesma maneira que Freud dizia não entender as mulheres…

A economia não pode ser sustentável enquanto no nosso mais profundo fundo traumático não esquecermos, de vez, o dilúvio. Enquanto no nosso fundo mais arcaico reinar a ideia de que ter um filho é um dever, um dever social, uma prova de amor, uma exigência da família e dos vizinhos, um desejo animal de um qualquer relógio biológico que se impõe à mulher como se esta fosse um animal com períodos de cio e não um acto simplesmente natural, enquanto não se entender que são os próprios gestos humanos que geram o tempo e a percepção que temos dele iremos sempre entrar em guerras dualistas pelo controlo do planeta.

Antigamente procurava-se andar de acordo com os ritmos cósmicos. Onde é que isso já lá vai. Começa logo pelo horário de trabalho e por relógios que não se adaptam à estrela do nosso sistema solar. De Inverno levantamo-nos de noite e recolhemo-nos quase de madrugada. O desfasamento com o tempo do próprio universo produz um desfasamento do homem consigo próprio. As consequências estão à vista. Pior que o dilúvio foi o trauma dele.

As populações ligadas à agricultura ou à recoleção tinham ainda alguma relação com o tempo. Nós perdemo-la por completo. E como a perdemos a única maneira de a recuperar será por via intelectual uma vez que já ninguém tem uma relação com o tempo natural.

Intelectualmente talvez consigamos lá chegar e, se formos capazes, isso implica a alteração total da relação que se tem tanto da sexualidade como com aquela que se tem com o tempo. Xiva, o grande dançarino cósmico na sua dança erótica sabe que a música se desenrola no tempo. O seu gesto no espaço é uma consequência do modo como percepciona o tempo. O seu gesto provoca o tempo e o espaço em gesto.

A economia tem a ver com isto. A economia é um termo que quer dizer “governo da casa”.  Neste momento até vimos estrelas com os embates. O que é muito diferente do que ficar a ver as estrelas.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

2 comentários:

  1. Duas flechas no alvo. Pode haver mais mas falta-me competências para as ver...

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  2. Duas flechas no alvo. Pode haver mais mas falta-me competências para as ver...

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