O sistema económico em que
estamos absortos, para não dizer, submersos, prende-se com uma série de
defeitos, muitos deles ligados à má relação que se tem com o tempo.
René Guénon sexualizou a questão
do espaço e do tempo, concedendo o primeiro ao masculino, porque os homens
caçavam no espaço e construíam no espaço e o segundo ao feminino porque as
mulheres geravam no tempo. A questão da sexualização quando ultrapassa a
fronteira do símbolo pode ter como consequência exactamente o mesmo erro que
pode ocorrer quando se lê um texto considerado sagrado: a leitura literal do
texto sem que ocorra profundidade qualquer nesse acto de ler e mesmo de
pluralidade de interpretações. A palavra, entre as suas múltiplas facetas é
também simbólica. Exactamente como qualquer símbolo, quando reduzida a um só
significado perde a sua mobilidade e, ao perdê-la, perde a sua capacidade de
ser coisa viva.
Temos vindo a ver ressurgir um
certo gosto no paganismo, produto, em grande parte, de um crescente desejo de
se regressar “à terra”, “às origens”.
Perfeitamente compreensível num mundo que construímos cada vez mais artificial.
Tais movimentos são vistos como um “ai Jesus” pelas religiões monoteístas que
assim assistem perplexos (e às vezes em
pânico) áquilo que consideram, por um lado uma “involução”, na base da total
crença que a conquista de um só Deus é uma conquista benigna para a humanidade
e, por outro, porque tais movimentos seriam a entrada no inconsciente ou
subconsciente das religiões coisa que as mesmas optaram, na maioria das vezes, por
não falar delas (quantas vezes apelidados de demoníacas) ou por outro ficando
tais áreas reservadas a uma elite, secreta mas convertida a uma instituição (veja-se
o caso de Dante e do Catolicismo).
A perpétua queda do homem no
materialismo foi acompanhada pela completa inaptidão para simbolizar.
A má relação com o tempo, em
termos simbólicos terá, para uma cabeça simbólica, relação com a má relação com
a mulher/planeta terra/mãe natureza.
Antigamente, homens e mulheres
(porque não creio que vendassem as mulheres) observavam as estrelas. O passar
delas e o seu percurso pelo céu. Construíam, em seguida, autênticos
observatórios astronómicos que tentavam estar em sintonia com o movimento
temporal dos astros e corpos celestes. A noção e o conhecimento do tempo
pareciam tão fundamentais que se construía em redor de tal coordenada terreste.
Hoje o homem, tal como afirmou
Mircea Eliade, foge para a frente. Tem medo do tempo. O tempo é o grande
devorador dos homens. O problema é que, nessa fuga, os gestos dos homens
provocam a própria aceleração do tempo e consequentemente a contração do
espaço. O tempo passa mais depressa quando o espaço é contraído.
Dizem que houve um dilúvio e que
a espécie humana esteve em perigo. Se isso é verdade, e se a mulher é aquela
que transporta e gera a espécie humana dentro do seu próprio ventre, então ela
veio a adquirir, em termos simbólicos um excesso de zelo traduzido nos inúmeros
tabus sociais de que foi alvo ao longo da história e ao longo dos monoteísmos.
Ainda não ultrapassamos o trauma do dilúvio. Aliás, toda a nossa cultura tem
como base esse acontecimento. A reprodução em massa da espécie humana é um
sintoma de um trauma colectivo que se disseminou por formas religiosas traumáticas
elas mesma. A figura feminina tem sido alvo de excesso de zelo. Sob as mais
diversas formas, positivas e negativas, mas em excesso. Essa relação foi tendo importância
no modo como se percecionava o próprio tempo. E hoje não entendemos o tempo da
mesma maneira que Freud dizia não entender as mulheres…
A economia não pode ser
sustentável enquanto no nosso mais profundo fundo traumático não esquecermos,
de vez, o dilúvio. Enquanto no nosso fundo mais arcaico reinar a ideia de que
ter um filho é um dever, um dever social, uma prova de amor, uma exigência da família
e dos vizinhos, um desejo animal de um qualquer relógio biológico que se impõe à
mulher como se esta fosse um animal com períodos de cio e não um acto simplesmente
natural, enquanto não se entender que são os próprios gestos humanos que geram
o tempo e a percepção que temos dele iremos sempre entrar em guerras dualistas
pelo controlo do planeta.
Antigamente procurava-se andar de
acordo com os ritmos cósmicos. Onde é que isso já lá vai. Começa logo pelo
horário de trabalho e por relógios que não se adaptam à estrela do nosso
sistema solar. De Inverno levantamo-nos de noite e recolhemo-nos quase de
madrugada. O desfasamento com o tempo do próprio universo produz um desfasamento
do homem consigo próprio. As consequências estão à vista. Pior que o dilúvio
foi o trauma dele.
As populações ligadas à
agricultura ou à recoleção tinham ainda alguma relação com o tempo. Nós
perdemo-la por completo. E como a perdemos a única maneira de a recuperar será
por via intelectual uma vez que já ninguém tem uma relação com o tempo natural.
Intelectualmente talvez consigamos
lá chegar e, se formos capazes, isso implica a alteração total da relação que
se tem tanto da sexualidade como com aquela que se tem com o tempo. Xiva, o
grande dançarino cósmico na sua dança erótica sabe que a música se desenrola no
tempo. O seu gesto no espaço é uma consequência do modo como percepciona o
tempo. O seu gesto provoca o tempo e o espaço em gesto.
A economia tem a ver com isto. A
economia é um termo que quer dizer “governo da casa”. Neste momento até vimos estrelas com os
embates. O que é muito diferente do que ficar a ver as estrelas.
(Cynthia Guimarães Taveira)
Duas flechas no alvo. Pode haver mais mas falta-me competências para as ver...
ResponderEliminarDuas flechas no alvo. Pode haver mais mas falta-me competências para as ver...
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