A vida bate a literatura aos pontos e isto quando não é a literatura que faz o mesmo à vida, mas quando a vida é literatura, então bate em retirada para uma outra realidade. É esse o sustento tanto da vida como da literatura, ess'outra realidade onde se encontram unas, miscigenadas, apenas suspensas entre o céu e a terra. É face angelical das duas que se revela quando se unem por tempo suficiente para não poderem ser, de maneira alguma, demoníacas. O tempo nestas coisas conta mais do que pensamos, funciona como carimbo de qualidade ou como ex-libris de algum autor celeste impresso nas linhas e entrelinhas da vida e da literatura quando caminham lado a lado, tão parecidas, tão iguais, tão gémeas, a tal ponto que uma se disfarça de outra sem que se tenha de mudar o nome porque não há diferença. Quando a vida é literatura podemos pegar nas palavras porque deixaram de ser apenas ideias e passaram a ser coisas moventes recheadas com as ideias do que são. Nessas alturas o sopro insuflado pelos anjos nunca vem só, como uma brisa ou vendaval, traz sempre ofertas: caixas com frutas, cornucópias de abundância, enquanto as folhas das árvores flutuam no sopro. É o brinde dos deuses à ascenção da literatura à vida e da vida à literatura, dois movimentos iguais, só possíveis a meio caminho entre o céu e a terra. É por isso que a compreensão da literatura sabe sempre a pouco e a disposição para entender a vida nunca é suficiente; é porque nunca são uma só e sabem sempre a pouco na imensidão da viagem que nos espera entre terra e céu. Os que vão compreendendo a vida deixam que as pálpebras se descaiam, mais tarde ou mais cedo, e em cada ponta delas, uma sílaba tónica de tristeza, não há compreensão sem um certo lamento; os que vão compreendendo a literatura, no canto dos lábios, acabam por ficar com uma sílaba tônica de amargura ou de cinismo porque nunca hesitam em comparar a literatura com a vida. Aqueles a quem, sem que o peçam ou sequer desejem (por nem conhecerem essa possibilidade) é dada a literatura e a vida num só copo, esses não se escapam à embriaguez dos deuses e riem-se dos sentidos das coisas porque os sabem ver como ninguém. Com uma aparência normal, passam por loucos se lhes convém, mas são seres extraordinários, invisíveis aos normais.
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