Segredo a segredo, imagino, uma a uma as aves longínquas eternizando-se no meu olhar. Cai a noite sobre a civilização e adormeço na tentativa de um lugar mais luminoso. Como me ardem os versos mudos? Como a prova de fogo de um herói. Sabes, contorno as arestas dos acontecimentos, não como uma serpente, mas como um voo curvo de uma ave e se a noite cai, não caio com ela. Pela janela observo os vultos sombrios retirados das vielas de uma outra realidade e afiguram-se como aquelas marionetas indonésias, sombras numa história hipotecada pela maldição, acorrentadas num pequeno cenário, só delas, onde se movem num enredo que trouxeram para si com o esforço dos condenados ao cadafalso da ausência de consciência. Atordoa-me esta ausência de teatro substituída por essas sombras. Talvez me atordoe demais e não me deixe respirar. Não deixo que isso aconteça no último minuto, quando sobra a palavra “quase” como esperança. E, nesse último minuto, abro ainda mais os olhos e afasto a dormência e inauguro a comédia onde só se encontram os vivos. E os vivos aparecem a cores e a sua voz é um eco da minha própria alma lá longe, escondida num vale do tempo, entre montanhas d’hoje. É imperativo, esse eco. Como um chamamento. Os adjectivos cobrem as palavras que devem ser despidas para que surjam nuas e completas em si mesmas.
Sabes, tremo só de pensar no olhar deles, daqueles que são das sombras. Assemelham-se a franjas arrancadas de um manto real e espalhadas pelo chão do meu palácio. Não as quero por lá. A oferta deles chega sempre demasiado tarde e as minhas palavras chegam sempre cedo demais.
Neste momento tudo é um sonho livre mas aprisionado em si mesmo. Civilização que se auto-cerca sem misericórdia. E as sombras estão nela como habitantes naturais, nativos da humidade de um Inverno demasiado prolongado no tempo. E arrastam as palavras fixas que nunca são ecos da minha própria alma. Vivem em si e por si. Estão absortas desde há muito na perspicaz vontade que lhes esculpe os degraus demasiado baixos para serem dolorosos.
Os vivos não. Sofrem em segredo e sussurram, uns para os outros, palavras inaudíveis. Há uma melodia captável apenas pela sensação da memória. Mas uma memória que é toda ela real. É o manto real estendido pelo palácio que habito. A historia que fica para trás debruada a ouro, com flores brancas e uma paz sossegada, religiosa. Há um corte ontológico com a própria civilização porque o devir é demasiado ingrato, corre como um louco e não nos deixa chorar profundamente nesta comédia que somos. O vivos têm de chorar profundamente na comédia que habitam e que cometem como um crime na tragédia humana. Encontram-se espalhados, aqui e ali, no fundo do olhar de um gato, na cauda agitada de um cão, numa criança que se aproxima e adivinha o centro onde somos todos iguais entre nós. Linguagens outras, mudas e que nos indicam a bússola que surge, por breves momentos, no céu.
Sabes, temo o olhar deles pela luz que lhes possa dar com o meu, mesmo sabendo que não a veem. Nas sombras não se vê nada. E nós, os vivos, vimos a sombras que eles não veem. A luz não os cega porque são cegos e não podem ser mais do que isso. Nem podem cegar novamente sequer...
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