O MOVIMENTO
É inimaginável parar. Até em sonhos isso não é
possível. Se uma onda neles pára, a mente, intrigada, procura saber porquê.
Ainda que adormeças a meio da tarde recusando o que te rodeia, alguém te coloca
uma flor na lapela, alguém se move por entre o teu segredo. Parece sossegado, o
jardim, com as suas plantas pendentes em vasos pendentes, seguros por cordas
pendentes, presas às traves pendentes, apoiadas nas casas pendentes nos
alicerces que pendem da terra suspensa no céu e sabes que nem a terra, nem a
casa, nem os vasos ou plantas permanecem no mesmo lugar porque o lugar és tu e
nem em sonhos paras de percorrer os teus sonhos. Quem entra no jardim não vê
ninguém e ninguém fica no limiar, debaixo do portão forjado. Descoberto o
jardim, os passos prosseguem para o seu interior. No jardim não há limiares
porque só a verdade dele existe em todos os passos. Os muros de pedra, as
cercas de madeira, os arbustos que parecem limitá-lo, são parte de todo o
jardim e a partir deles é revelado todo o vale e a montanha que começam a
qualquer momento, a qualquer passo. O jardim é extensivo aos nossos gestos.
Para onde quer que o nosso olhar se dirija, ele encontra-se lá, vivo,
vivificante, em perpétuo movimento. Aparentemente sossegado para quem passa o
portão e se dirige ao velho sino para chamar por alguém que nunca se sabe bem
quem será, uma flor, um animal, um homem… alguém que se encontre por lá,
aparentemente perdido e aparentemente pendente da salvação. O jardim foi criado
por quem foi nessa barca no dia em que o céu se abateu sobre a terra, por quem
foi ter à praia e, ainda atordoado, agarrou na areia e viu nela a promessa de um sonho; foi criado por quem foi salvo pelos primeiros raios de sol, por quem se
dirigiu à montanha e viu nela a primeira rosa do mundo a florescer. Por quem
tornou o círculo em espiral. Enquanto o mundo morre, corrupto, emerso na
civilização selvagem, o jardim floresce em cada canto da alma que parece
perdida no jardim. A criação não permite a corrupção, transforma-a em matéria
prima. A corrupção é calada, contida, sinuosa. A criação é musical, extrovertida,
transparente, mesmo nas trevas densas de onde emerge. A corrupção é sólida, a
criação, etérea, mesmo quando cai solidificada em poesia. No jardim, o olhar
atento à asa, cria a asa, a mão que toca a seara, torna-a viva, o rosto virado
a Norte, permite o Norte, a canção entoada é reproduzida no canto dos pássaros,
a brisa que passa foi um sorriso que aconteceu enquanto deitados contemplávamos
as estrelas, a estrela cadente existe porque a desejamos. A perpétua criação é
a própria vida e só assim se pode contemplar a salvação no jardim, só
participando nele ela se revela, transparente. E a salvação não é parada, oca
ou morta. É, no seu âmago, na sua face oculta, absolutamente insatisfeita. A
raiz de todos os voos, até daquele que não conhece ainda.
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