segunda-feira, 3 de abril de 2023

O JARDIM DOS SÌMBOLOS XXIII

 



O MOVIMENTO

 

É inimaginável parar. Até em sonhos isso não é possível. Se uma onda neles pára, a mente, intrigada, procura saber porquê. Ainda que adormeças a meio da tarde recusando o que te rodeia, alguém te coloca uma flor na lapela, alguém se move por entre o teu segredo. Parece sossegado, o jardim, com as suas plantas pendentes em vasos pendentes, seguros por cordas pendentes, presas às traves pendentes, apoiadas nas casas pendentes nos alicerces que pendem da terra suspensa no céu e sabes que nem a terra, nem a casa, nem os vasos ou plantas permanecem no mesmo lugar porque o lugar és tu e nem em sonhos paras de percorrer os teus sonhos. Quem entra no jardim não vê ninguém e ninguém fica no limiar, debaixo do portão forjado. Descoberto o jardim, os passos prosseguem para o seu interior. No jardim não há limiares porque só a verdade dele existe em todos os passos. Os muros de pedra, as cercas de madeira, os arbustos que parecem limitá-lo, são parte de todo o jardim e a partir deles é revelado todo o vale e a montanha que começam a qualquer momento, a qualquer passo. O jardim é extensivo aos nossos gestos. Para onde quer que o nosso olhar se dirija, ele encontra-se lá, vivo, vivificante, em perpétuo movimento. Aparentemente sossegado para quem passa o portão e se dirige ao velho sino para chamar por alguém que nunca se sabe bem quem será, uma flor, um animal, um homem… alguém que se encontre por lá, aparentemente perdido e aparentemente pendente da salvação. O jardim foi criado por quem foi nessa barca no dia em que o céu se abateu sobre a terra, por quem foi ter à praia e, ainda atordoado, agarrou na areia e viu nela a promessa de um sonho; foi criado por quem foi salvo pelos primeiros raios de sol, por quem se dirigiu à montanha e viu nela a primeira rosa do mundo a florescer. Por quem tornou o círculo em espiral. Enquanto o mundo morre, corrupto, emerso na civilização selvagem, o jardim floresce em cada canto da alma que parece perdida no jardim. A criação não permite a corrupção, transforma-a em matéria prima. A corrupção é calada, contida, sinuosa. A criação é musical, extrovertida, transparente, mesmo nas trevas densas de onde emerge. A corrupção é sólida, a criação, etérea, mesmo quando cai solidificada em poesia. No jardim, o olhar atento à asa, cria a asa, a mão que toca a seara, torna-a viva, o rosto virado a Norte, permite o Norte, a canção entoada é reproduzida no canto dos pássaros, a brisa que passa foi um sorriso que aconteceu enquanto deitados contemplávamos as estrelas, a estrela cadente existe porque a desejamos. A perpétua criação é a própria vida e só assim se pode contemplar a salvação no jardim, só participando nele ela se revela, transparente. E a salvação não é parada, oca ou morta. É, no seu âmago, na sua face oculta, absolutamente insatisfeita. A raiz de todos os voos, até daquele que não conhece ainda.


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