Meu querido:
Escrevo-te hoje, dia 13 de Junho, para te dar os parabéns.
Passam 135 anos desde o dia em que nasceste e todos devíamos celebrar o teu
nascimento. Porque és, de facto, único. Ultimamente tenho andado a pensar em ti
e na distância que vai de ti a este mundo actual. Conseguiste a proeza de gerar
Literatura, de quem hoje se pode dizer que o faça? Conseguiste a proeza de
seres um mistério vivo. Quem hoje o é? Tu que te afirmaste como sendo nada, à
parte de todos os sonhos do mundo, terias de conviver com esta civilização de
gente imbuída do espírito de que são tudo, um sonho vivo e sobretudo, muito
importantes. Adivinha-se já a crítica, não é? Todos conhecem a tua imagem e
poucos te lêem. Todos reconhecem o teu chapéu, os teus óculos e a tua expressão
entre o triste, o sério e o ensimesmado. Sabes porquê? Porque estamos na época
das projecções de imagem. Primeiro começou, este hábito, com as fotografias,
depois com o cinema e agora, todos podem tirar uma foto ou gravar um vídeo
instantaneamente e colocar a coleção de imagens em ecrãs para todos verem. E é
o que fazem. Sistematicamente. Projectam imagens de si próprios como se isso fosse
crucial para se sentirem vivos e para serem dados como vivos. Das palavras, da
consciência e da alma, pouco sabemos. Sabemos apenas das imagens, a maioria delas
vazia, sem nada a reter senão elas mesmas. Tu que te preocupaste com as
palavras como espelho da consciência, estranharias tudo isto. Todo este mundo
de fantasmas sem consistência. E, aqueles que se preocupam com a alma, também
são estranhos. Muito estranhos. Unem-se em grupos e almoçam ou jantam juntos. Dão
muita importância às refeições. Tu que comias ovos estrelados solitariamente,
devias estranhar estes banquetes daqueles que se preocupam com a alma. E retratam-se
a comer, ou no fim das refeições para mostrarem a todos que são amigos. Tu, que
tão poucos amigos tiveste… deverias estranhar o tempo dedicado ao convívio como
coisa maior do que qualquer obra. Também creio que se hoje existisses, ninguém
te entenderia na mesma. Pensariam que serias um ser estranho, longe do burburinho
visual e das duas uma, ou te tomavam como guru, ou te invejariam de tal forma
que te ignorariam. Se te tomassem como guru isso seria porque hoje todos
precisam de orientação, de alguém que lhes diga qualquer coisa, que os distraia,
que os anime e que os façam ganhar esperança não se sabe bem em quê… podemos
questionarmo-nos se as pessoas querem sabedoria, ou se querem “evoluir
espiritualmente, ou se querem salvar o mundo, ou se querem apenas andar por aí
a distraírem-se com alguém que os distraia. Na verdade, não vejo ninguém tão
ocupado como tu andaste, assim inquieto, com a tua obra que é maior. Talvez as
pessoas me intriguem como a alma humana te intrigou a ti. Muitos ou dizem ou
julgam-se estando numa demanda. Mas demanda de quê? Se lhes perguntarmos
diretamente, saberão responder? O problema é falar com as pessoas de maneira
que elas entendam, embora o entendimento possa ser um mau entendimento, ou um
bom entendimento ou apenas parcial. Sabes como ando? Com a alma calada. Ela que
me é tão exterior, parece-me que não está interessada em palavras. Assemelha-se
a um lago tranquilo. Não sei se já alguma vez estiveste assim. Sem palavras por
as pressentir inúteis. Mas quem disse que as palavras têm de ser úteis. Se fossem
sempre úteis ninguém falaria no estado do tempo que é indiferente às palavras. Só
gosta de danças da chuva. Lembras-te de pedires à Lídia para se sentar contigo
à beira-rio? Parece que Lídia se sentou à beira-lago, olhando o mundo como um
espelho de uma outra realidade, invisível e sobreposta. Como aquela ilha que
escreveste estar próxima e distante. E mesmo assim, Lídia fica imóvel, numa
quietude estranha, tão parecida com a do lago que se fundem. Talvez saiba que
por mais que agitasse o lago com qualquer pedra que lançasse, este voltaria à
sua forma estática e impassível e poupa-se, assim, a movimentos da alma demasiado
complexos. O mundo permanece em queda livre e nessa queda é estático como um
lago. E Lídia, acompanha esse movimento que é um não-movimento. Não se quebra
porque o abismo não tem fim. Por isso, estranho esta quietude. Parece quase
irracional. Até um voo picado de uma ave tem mais sentido, porque procura
alimento, ou simplesmente sentir o ar a percorrer-lhe as penas. Se calhar é a
vida bucólica que a torna assim. Não tem estradas para atravessar, apenas caminhos
para percorrer, numa sucessão de paisagens indiferentes à sua presença. Mas hoje
é o dia do teu aniversário e celebro-te com saudade. Ter saudades de um poeta é
a glória deste mundo, tal como está. Mesmo que sejam umas saudades silenciosas,
sem palavras, mas tão fortes que produzam um qualquer som no universo. As saudades
têm essa capacidade. E da Saudade, nem se fala. Essa, altera mesmo o cosmos. Dá-lhe
uma tonalidade fascinante, e une os tempos desunidos. Talvez a queda se transforme
em voo e procure então as cúpulas em vez dos absimos. Talvez se lance de
repente para cima e talvez as palavras surjam como estrelas.
Um grande beijinho
Da sempre tua,
Cynthia
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