quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A contemplação dos ossos


 

Dou comigo a pensar que nas quentes temporadas em que os espíritos parecem descer à terra, eles se limitam a baralhar as vidas para que na próxima temporada possa haver um reajuste. É uma espécie de movimento em espiral, no qual eles, à nossa humana visão, parecem acelerar ou desacelerar os acontecimentos temporais, mas à deles, que possuem uma visão mais abrangente, e não os nossos míseros 180 graus muitas vezes aplanados senão mesmo achatados num só plano de existência, conseguem colocar diversos tipos de  motores a andar os quais nem nos passam pela cabeça. O materialismo de hoje é sórdido como sórdido é o seu ápice: a existência resume-se ao nascimento e morte e no intervalo as pessoas andam por aí, de um lado para o outro, sem perceber, nem querer perceber, o que lhes aconteceu para nascerem, andarem por aí e morrerem. Se perguntarmos a um materialista bem intencionado como quer morrer o mais provável é que diga que quer morrer de consciência tranquila ou que quer morrer com a sensação que fez o que devia. Mas se começarmos a perguntar-lhe o que entende ele por consciência ou o que entende ele por “fazer o que devia”, o chão aplanado começa a tremer. A filosofia resume-se a isto: fazer o chão tremer e, enquanto treme, sente-se a vertigem da descida e da subida. A filosofia é o grau mais baixo da consciência. Há místicos que, em êxtase, conseguem sentir o chão a tremer. Literalmente a tremer. Como se a consciência da demanda que, é a filosofia, se tornasse viva. Tudo treme à nossa volta. Os terramotos colocam-nos em estado de alerta e automaticamente esse estado leva-nos a que soltemos substâncias químicas capazes de nos fazerem ver melhor, ouvir melhor. Nos estados de alerta há como que um despertar, uma abertura da consciência. Nós aqui no Ocidente, falamos em consciência como o último reduto da perceção da existência. E usamo-la quase como sinónimo da potência da acção correcta. Um materialista responde com termos filosóficos, com conclusões filosóficas imediatas: a consciência e a acção. Não sei se isto não será quase estranho aos deuses, mas sei que tanto uma como a outra, e mesmo juntas, não se limitam a um só plano. O “não assassinarás” é uma acção recusada pela consciência e onde adquiriu ela essa recusa? Pela sensação de que a “existência é boa”? E o que é a qualidade do “bom”? Onde adquirimos esse conceito? Já se vê que o caminho não pára e que a uma pergunta se sucede outra. Os deuses parecem querer pôr à prova as nossas capacidades e, para isso, fazem funcionar motores que nós nem sabemos que existem. Não sabemos, por exemplo onde adquirimos a qualidade do bom, do belo. Eles também não parecem interessados em saber onde adquirimos isso. Parecem apenas interessados em constatar isso sempre que nos põem à prova. Nenhum deus perguntou a Hércules em que escola aprendeu a vencer obstáculos, limitou-se em colocar-lhe os obstáculos à frente, sem filosofia alguma. A filosofia somos nós que a fazemos quando ouvimos a história de Hércules. Nessas temporadas quentes dos deuses, eles parecem querer saber se nós, humanos, ossificamos o conhecimento, o tornámos parte de nós. Contemplam os nossos ossos como nós mortos contemplamos os nossos. São a nossa passagem antes de tempo. Estão o passo à frente na nossa morte. Vêem-nos mortos porque vivos. Mortos no sentido em que veem o que adquirimos, não o que estamos a adquirir. Daí que se diga que “Deus não nos coloca desafios que não possamos resolver”.  Os terramotos, as situações de crise, as pandemias, são uma espécie de temporada quente dos deuses. Neles somos vistos nús, com o que temos, com o que alcançámos, com o que adquirimos de maneira a responder à provação. Nem um materialista se escapa a esta contemplação das próprias ossadas.


Sem comentários:

Enviar um comentário