Dou comigo a pensar que nas
quentes temporadas em que os espíritos parecem descer à terra, eles se limitam
a baralhar as vidas para que na próxima temporada possa haver um reajuste. É uma
espécie de movimento em espiral, no qual eles, à nossa humana visão, parecem
acelerar ou desacelerar os acontecimentos temporais, mas à deles, que possuem
uma visão mais abrangente, e não os nossos míseros 180 graus muitas vezes
aplanados senão mesmo achatados num só plano de existência, conseguem colocar diversos
tipos de motores a andar os quais nem
nos passam pela cabeça. O materialismo de hoje é sórdido como sórdido é o seu
ápice: a existência resume-se ao nascimento e morte e no intervalo as pessoas
andam por aí, de um lado para o outro, sem perceber, nem querer perceber, o que
lhes aconteceu para nascerem, andarem por aí e morrerem. Se perguntarmos a um
materialista bem intencionado como quer morrer o mais provável é que diga que
quer morrer de consciência tranquila ou que quer morrer com a sensação que fez
o que devia. Mas se começarmos a perguntar-lhe o que entende ele por
consciência ou o que entende ele por “fazer o que devia”, o chão aplanado
começa a tremer. A filosofia resume-se a isto: fazer o chão tremer e, enquanto
treme, sente-se a vertigem da descida e da subida. A filosofia é o grau mais
baixo da consciência. Há místicos que, em êxtase, conseguem sentir o chão a
tremer. Literalmente a tremer. Como se a consciência da demanda que, é a
filosofia, se tornasse viva. Tudo treme à nossa volta. Os terramotos
colocam-nos em estado de alerta e automaticamente esse estado leva-nos a que soltemos
substâncias químicas capazes de nos fazerem ver melhor, ouvir melhor. Nos
estados de alerta há como que um despertar, uma abertura da consciência. Nós
aqui no Ocidente, falamos em consciência como o último reduto da perceção da
existência. E usamo-la quase como sinónimo da potência da acção correcta. Um
materialista responde com termos filosóficos, com conclusões filosóficas
imediatas: a consciência e a acção. Não sei se isto não será quase estranho aos
deuses, mas sei que tanto uma como a outra, e mesmo juntas, não se limitam a um
só plano. O “não assassinarás” é uma acção recusada pela consciência e onde
adquiriu ela essa recusa? Pela sensação de que a “existência é boa”? E o que é
a qualidade do “bom”? Onde adquirimos esse conceito? Já se vê que o caminho não
pára e que a uma pergunta se sucede outra. Os deuses parecem querer pôr à prova
as nossas capacidades e, para isso, fazem funcionar motores que nós nem sabemos
que existem. Não sabemos, por exemplo onde adquirimos a qualidade do bom, do belo.
Eles também não parecem interessados em saber onde adquirimos isso. Parecem apenas
interessados em constatar isso sempre que nos põem à prova. Nenhum deus
perguntou a Hércules em que escola aprendeu a vencer obstáculos, limitou-se em
colocar-lhe os obstáculos à frente, sem filosofia alguma. A filosofia somos nós
que a fazemos quando ouvimos a história de Hércules. Nessas temporadas quentes
dos deuses, eles parecem querer saber se nós, humanos, ossificamos o
conhecimento, o tornámos parte de nós. Contemplam os nossos ossos como nós
mortos contemplamos os nossos. São a nossa passagem antes de tempo. Estão o
passo à frente na nossa morte. Vêem-nos mortos porque vivos. Mortos no sentido
em que veem o que adquirimos, não o que estamos a adquirir. Daí que se diga que
“Deus não nos coloca desafios que não possamos resolver”. Os terramotos, as situações de crise, as
pandemias, são uma espécie de temporada quente dos deuses. Neles somos vistos
nús, com o que temos, com o que alcançámos, com o que adquirimos de maneira a
responder à provação. Nem um materialista se escapa a esta contemplação das próprias
ossadas.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
A contemplação dos ossos
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