Conheci quem trabalhasse num banco e tivesse de sair por doença. A seguir, todos os que naquele gabinete ficaram acabariam por morrer de cancro. É caso para dizer que há profissões que fazem mal à saúde. Contar o dia todo para alimentar a rainha Banqueira, deve tornar os seres humanos em formigas, meros insectos, simétricos como os números. Entendo perfeitamente que a relação com o Estado não possa ser melhor. Antigamente, quando se morria por causa de uma tragédia, os nomes surgiam em listas. Agora já não há nomes, há números. Fernando Pessoa, uma cabeça superior, não se identificava com o Estado. Por saber, eventualmente, que o Estado era uma figura de estilo aplicada ao texto da humanidade só para soar melhor... o Estado desalma porque o seu princípio é constituído pelo impossível: a aglomeração de umas tantas almas na identidade do Estado e que constituem, todas juntas a figura do Funcionário Público. Figura tipicamente esquizofrénica: por um lado gozando de alguns benefícios que o Privado nunca teve, por outro, gozando da infelicidade de saber que não são pessoas, são apenas Funcionários Públicos. Daí que este tipo de figuras produzam tantos sentimentos extremados. Como são constituídos por um nome genérico, como genérico é o nome "Estado", não possuem propriamente uma alma, porque a vão perdendo, a pouco e pouco, enfiados nas papeladas, nos carimbos e, tal como os funcionários dos bancos, nos números. Os sentimentos extremados são iguais aos produzidos pelas religiões: ou são amados em extremo, ou são detestados, porque deles ninguém tem uma imagem precisa. Não chegam a alcançar o estatuto de semi-deuses, estão apenas numa espécie de limbo entre a identidade possível e a falta dela. Se se disser: "sou funcionário público", e apenas isso, o mistério religioso permanece, não sabemos bem se havemos de amar, respeitar ou odiar e não sentir qualquer respeito. Enquanto não soubermos qual a hierarquia, qual a função e, sobretudo, se nos vai beneficiar ou não, não temos qualquer intimidade com essa entidade abstracta que é o funcionário público. Apesar de tudo, somos mais íntimos com o Estado que, volta e meia, nos persegue com cartas ameaçadoras. Nunca persegue os banqueiros a tempo, mas a nós, parece que nos filmam cá em casa e nos analisam ao pormenor. No tempo da outra crise, a antecedente, conversei com uma funcionária pública que esteve à beira de uma depressão. Trabalhava nas Finanças e o trabalho dela era ser perseguidora. Reformou-se e ficou feliz. Voltou a ter alma. O Estado corre o risco de ser desalmado e de produzir pequenos seres, chamados de Funcionários Públicos, cujo olhar é baço, os cantos da boca estão sempre descaídos e estão sempre prontos para irem tomar café. Amados e protegidos, odiados e nada protegidos naquilo que se refere à alma. Transformar pessoas em números é tarefa penosa. Anti-artística, por assim dizer. O Funcionário Público, a seguir aos bancários e aos banqueiros, são as figuras mais chocantes que uma sociedade pode produzir. Por isso é que se entendem nas pseudo perseguições e nas transferências de dinheiro sempre que um banco se vai abaixo por causa de um bancário ousado que pensa poder levar o cheque com ele para a cova. Estas figuras assinaladas, que não são armas nem barões, nem possuem sequer essa grandeza, tomam conta de um país inteiro, de uma série de almas que já não sabem muito bem o que pensar, o que amar, o que odiar ou em que acreditar. Se fogem é porque fogem, se se deixam apanhar, é porque se deixam apanhar, se cumprem é porque cumprem. Metade do país anda à caça da outra metade e cada metade, por sua vez, caça a outra metade. Os mexilhões são aqueles que nunca desejaram uma vida tão complicada e tão difícil e com tanta falta de atenção à alma. Os mexilhões somos todos nós quando nos deitamos e pedimos apenas para nos deixarem viver em paz. Há funções desalmantes, desalmadas e, pior do que isso, colocam o país em risco, em elevado risco. Que nos digam o contrário com argumentos, tabelas de Excel, subsídios, reformas, exemplos, é coisa que já não queremos saber, isso é converter-nos a todos, à vez, em funcionários públicos, em bancários e em banqueiros. É mais ou menos isso que os telejornais tentam fazer quando nos apresentam tabelas, quando nos informam de todos os números, de todas as perseguições, de todos os medos. À vez, lá vamos sendo banqueiros quando nos emprestam dinheiro, bancários, quando nos cobram, funcionários públicos quando perseguimos e somos perseguidores. À vez, numa roda dentada, vamos perdendo a alma, a pouco e pouco, como povo ancestral. À vez, rodando em números em vez de rodarmos em sonhos, porque os sonhos são para os parvos, gente pequena, inútil até ao dia em que os sonhos começarem a dar dinheiro e se tornam úteis só por isso.
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