quinta-feira, 10 de junho de 2021

A bazuca



O Presidente da República falou no ouro, nas especiarias, na prata, nos fundos comunitários e na bazuca dizendo que esta não deveria ser mal aproveitada como tinham sido as riquezas antecedentes.  E disse que não devíamos dar ouvidos aos profetas desgraça. Só me lembrei do livro de Miguel Real, "A morte de Portugal", um livro infeliz, até no título. Só que um povo não é só dinheiro, é também o conhecimento de si próprio. Neste tempo de polarizações o que pensamos que somos e/ou fomos serve apenas para caçar votos. De um lado temos a extrema-direita a dizer "Somos os maiores", deviam dizer isso à Le Pen para esta dar uma boa gargalhada, por outro, a minimização constante, a deterioração da memória, a inversão da história e a sua fraca leitura à luz de tensões importadas dos EUA.  O que é certo é que ninguém leu Dalila Pereira da Costa ou António Telmo, ou Sampaio Bruno ou Pessoa sob uma determinada perspectiva e é por aí, que encontramos a nossa verdadeira face, evidentemente, iniciática. Também António Telmo fala da morte de Portugal no seu livro "O Horóscopo de Portugal" (Guimarães Editores), a páginas tantas, na 189, mais concretamente, entende que "... na medida em que diminui o número de indivíduos <<iniciáveis>> vão faltando no mundo as condições precisas para a <<iniciação>>." E mais à frente diz que, perante tal acontecimento "... resta apenas uma saída: a de ficar só, completamente só em si mesmo e de nessa solidão se manter firme, não cedendo um ponto", embora aponte que tudo neste mundo está feito de forma a obstruir essa solidão, utilizando para isso diversos meios, sobretudo o do trabalho obrigatório, forte condicionador da liberdade (já sabemos que a liberdade é relativa, mas ai de nós se deixarmos de falar dela...). Diz em seguida, restar a Pátria que herdamos com os nossos antepassados e mais à frente escreve: "Novos salazares aparecerão em cadeia que parece não ter fim, alimentando a mediocridade em que o país tombou, como se, fora do grande círculo iniciático, se tivesse constituído outro que continuamente gire sobre si, num movimentos de definitiva e caracterizada rotina. Pode ser que assim aconteça. E, então, foi tudo inútil, incluindo nessa inutilidade este livro?" E coloca a questão ao leitor responsabilizando-o por essa tomada de consciência.
É assim que Telmo, em poucas palavras, coloca o problema verdadeiro do Portugal actual e verdadeiro. A iniciação do indivíduo, do país, a solidão, os obstáculos a essa solidão firme nos seus princípios, o perigo dos pequenos salazares sucessivos caídos numa rotina inerte, essa sim a verdadeira morte ou adormecimento de Portugal e o papel da obra como elemento activo, despertador de consciências. A obra que nada tem a ver com o trabalho obrigatório pois é sempre uma dádiva vinda do fundo de cada um em permanente contacto com aqueles que pertencem ao mesmo círculo iniciático. Gostaria de saber se todos estes neo-templários de trazer por casa  alguma vez leram a obra toda de Telmo, Dalila, Quadros e já agora a de Pessoa e muitos dos seus estudiosos e, claro, Camões. Ou se isolaram numa qualquer quintarola com comparsas, igualmente ignorantes destes autores, crendo apenas uns nos outros numa espécie de febre colectiva que lhes provoca alucinações com espadas e capas achando-se preparados para tudo: desde resgatar Portugal do seu esquecimento de si, até quiçá conquistar Jerusalém. Outro autor essencial, esse estrangeiro, mas bem versado nos temas iniciáticos, Guénon, chama a atenção para um "hábito" hindu: o do estudo como sendo de extrema importância, se não mesmo essencial, como fase preparatória de qualquer iniciação. Basta lê-lo para descobrir estas palavras (podem começar a procurar). Não digo que Marcelo não seja bem intencionado, mas não vale a pena, ou antes, não vale mesmo de nada, esconder o problema fundamental do Portugal actual: é um problema espiritual e sendo essa a fonte de tudo, enquanto não se resolver isso e não nos re-situarmos naquele que é o nosso eixo, de nada servem as bazucas a não ser para ir tapando buracos que crescerão sempre mais do que a terra disponível para os tapar. Sobre a cristandade portuguesa ela não é afirmativa, aliás, bem sabemos como o povo português é profundamente anti-clerical (quando assim foi houve uma coincidência com os seus melhores momentos), ela é activa nos pequenos gestos que são grãos de mostarda por acontecerem espontaneamente e não porque qualquer padre, ou ordem, os anunciar em voz alta e os ditar em forma de lei. Pequenos gestos que ainda hoje levam a que as ruas da Guiné se encham de gente para ver o Presidente de Portugal (não escrevemos república porque não o somos) passar, ou a que se enfeitem os barcos com flores em Goa para receber o Navio Escola Sagres. Esses gestos espontâneos do povo português em uníssono com os dos outros povos,  a par com a existência de iniciados a sério, e não de alucinados, é o que constitui a matéria-prima do "Portugal sonhado". E respondendo a António Telmo, quando na pág. 190 se pergunta se não terá sido tudo apenas um sonho, respondemos que sim. Foi tudo um sonho. Mas os sonhos tendem a materializar-se, sobretudo nos iniciados que já não distinguem a matéria do espírito, como o país não distinguiu o mundo de si quando se entregou à sua Descoberta. Entre o sonho e a alucinação há a grande diferença da existência de consciência no primeiro. E a diferença entre o gesto espontâneo e o gesto ordenado por uma qualquer mente que ordenou, é a maravilhosa inconsciência (o que está em cima é igual ao que está em baixo umas vezes invertido, outras não) do povo português porque de tão pura, toca o céu e a consciência dos iniciados... nisto não há qualquer confusão. Por isso, penso que não chega a haver "profetas da desgraça", excepto o Miguel Real que não devia estar bem disposto quando escreveu o livro dele, aquilo que há é uma falta de iniciados incrível, um excesso de alucinados inconscientes, uma falta tremenda de povo livre que não seja escravo do trabalho obrigatório, uma carência de sonhos conscientes, um excesso de alucinações colectivas, uma falta de gestos espontâneos porque o povo está cada vez mais domesticado pelos órgãos de informação e pelo Facebook que ordenam o que pensar e o que fazer, e talvez um excesso ou não de gente solitária que não "cede um ponto", irremediavelmente exilados no seu próprio país. E são esses a verdadeira bazuca porque são eles que seguram Portugal, com uma força tremenda, e o carregam aos ombros, elevando a grande janela ao céu. 


 

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