terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Bola branca

 


Já há uns anos, alguém insinuou que eu era extremamente influenciada pela pessoa com quem vivo nas minhas opiniões, nos meus textos, na minha forma de ver o mundo. A misoginia partiu de uma mulher, um pouco tonta, mas mulher. Imagino alguns homens pensando o mesmo com dez vezes mais vigor. Um amigo aqui da casa, uma vez disse que, segundo ele, qualquer relação amorosa era uma relação entre o submisso e o vencedor da batalha. As generalizações são sempre produto de alguém que pensa estar no centro do mundo, o mesmo acontecendo com a sua própria vida. Neste mundo misógino, o maior erro é ter talento e estar ao lado de alguém que já é, de alguma forma, considerado. Este nem se trata de um tema novo. Por exemplo, aquela velha história de se ser "filho de" e de se estar condenado a ser isso. Lembro-me que na altura em que a senhora do início do texto fez a insinuação, franzi o sobrolho porque nem estava perceber. Depois percebi e zanguei-me. Já não me zango porque partilho da ideia de Miguel Sousa Tavares quando entrevistado pela jornalista Fátima Campos Ferreira, no programa "Na primeira pessoa": não vale apena dialogar com pessoas estúpidas e que vão continuar a ser estúpidas. Assim, já há uns bons anos que dei o caso por encerrado. Não só relativamente a este assunto como relativamente a muitos outros. Em vez disso, perco ou ganho o meu tempo (depende do ponto de vista), com coisas muito mais interessantes. Agora ando muito interessada na pré-história, no tempo em que ainda éramos humanos (agora somos um composto genético e cultural sem escape) e talvez as pedras entendam e guardem na memória aquilo que interessa. As nuvens passam como numa imagem acelerada no ecrã, mas o sentido maravilhoso do Mistério permanece. Continua a ser isso a fascinar-me. O imenso Mistério em que nos encontramos emersos. Já há muito que me habituei ao facto de que nada do que escreva ou pinte tenha algum peso e venha a aquecer ou arrefecer ao mundo. Ainda tive esperança. Mas, contrariando Yuval Harari, não me sinto irrelevante. A impassibilidade é que é irrelevante. Tudo me afecta como afetam os dedos nas teclas de um piano. Tudo me influência, até o estado do tempo. Tudo escuto e reenvio para o Mistério que não entendo, nem sei se um dia vou entender. Nesse Mistério, está também guardada a misoginia crónica. Vou dizendo coisas irremediáveis aqui e ali, como qualquer gesto que façamos é irremediável e fica fixo no Mistério do Universo inteiro. Assisto a debates e penso que as pessoas passam a vida a falar. Até os surdos-mudos. A par com a luz divina que jorra sem fim, também as palavras jorram e brilham como prata, como os peixes do rio que se queixa do sabão saloio. Saudades? Tenho do homem que foi concebido em Amares, viveu no Algarve, e acabou saloio. Também, de Amares vim, fui concebida em Broomley cuja divisa é "Servir o Povo" e acabei saloia. Só me falta o bigode e o trator, daqueles que caiem em cima dos próprios condutores (os acidentes mortais com tratores neste país já foram remetidos há muito tempo para o Mistério). De resto observo e observo. E o coração ainda observa mais e esse, é o grande condutor para o Alto. Em vez da conversa da mulher vivida, que olha a partir das suas cicatrizes e afirma que já nada a choca, espanta ou lhe causa estranheza, o meu coração continua com os olhos abertos, tal e qual os olhos observados por um médico, o D. Mello e Castro, há muitos anos atrás, quando me perguntou porque tinha os olhos tão abertos, ao que lhe respondi, do alto dos meus 16 anos: "Porque ando espantada com o mundo." Ainda me lembro da gargalhada dele, seguida pelas seguintes palavras: "Também eu". Tenho a certeza de que se ainda fosse vivo, continuaria a dizer o mesmo. Quanto à mulher que insinuou que eu era influenciada em tudo pelo macho, tenho a certeza que continua com a mesma opinião pois a estupidez não passa tão depressa. Nesta floresta há muitos seres vivos. Uns espantam-se e outros não e outros ainda deixam-se espantar e correm esbaforidos, ou por medo ou por instinto de sobrevivência (tanto um como o outro são compreensíveis), só o grande Mistério não é. E por falar em mistério, entre o ano 2010 e 2014, o mistério andava no ar... Senti por todo lado entidades invisíveis. Depois acalmaram.  Entre 2020 e uma data sem fim à vista, a estupidez está mais visível, mais aguda, de tal modo que só dá para falar do estado do tempo ou da lida da casa. Se subirmos um pouco o patamar, das duas uma: ou estamos a falar "estrangeiro", ou  somos efectivamente aves raras prontas para o embalsamamento quando ao abrirem a boca vem a resposta letal: "Muito interessante!".  E fico a saber que a minha conversa não interessa para nada. Ou então, das reações mais bonitas a que assisti ultimamente, quando uma mulher vinda do Norte me veio visitar sem me conhecer, só de leitura de alguns textos, depois de uns quilómetros ao volante em que fiz questão de não me calar (ao volante falo muito), e eis-nos com a viagem finalizada com um passeio numa praia, e vendo-a ficar para trás, parada, estática, me aproximo e me apercebi de que chora. Pensei que estava com problemas, mas não. Tinham sido aquelas palavras que brilhavam como prata que a tinham feito chorar. "Deus conta as lágrimas das mulheres", como diz um provérbio judaico ensinado pelo macho cá de casa (isto é uma influência que não se pode), foram as palavras lembradas agora. Ela chorava. E espantei-me. Quando algumas almas falam, outras almas podem vir a chorar. Almas sensíveis, claro está. Soube que não tinha dado pérolas a porcos. Foi um toque ao céu. O meu coração observou, as palavras exprimiram o que foi observado, o coração dela ouviu e as lágrimas caíram para serem contadas por Deus. Um autêntico bilhar. Encestei, sem querer! Os misoginos fazem neste momento um esgar de desprezo, e Deus também conta com esses esgares. Duplo encestamemto! Se a vida fosse um jogo... Mas não é, é muito mais do que isso. De maneira que já vislumbraram, caros não-leitores as implicações de tudo isto. Ou se calhar não vislumbraram nada porque querem respostas rápidas, tipo concurso, quando acabei de dizer que a vida não é um jogo.


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