terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O Abismo

 


‌Todos, duma ponta à outra do mundo, usam o azul como pano de fundo para os discursos, apresentações e declarações como se nos quisessem convencer de que vieram do céu e de que são anjos protetores. Fico sempre enjoada com o azul imposto. O do céu é natural, e não é sempre azul e diz-nos apenas que esta é a esfera onde nós encontramos e que há outras. Tudo é tão estudado, analisado e medido que os homens se auto-amestram, tomando-se a si mesmo como animais, apenas reactivos, seja ao azul como pano de fundo, como às palavras. Daí que tivessem criado para si próprios a "inteligência artificial", porque a sua também a é. Não fazemos nada que não seja à nossa imagem e semelhança e foi essa, (a da inteligência que tornámos artificial) a metade da partícula repetitiva divina que reproduzimos sem parar. A outra metade que é livre e que é a própria liberdade, voou para longe e nem a conhecemos bem. Entendemo-nos, ora como robôs, ora como animais e, na verdade, é o próprio ser humano que está em vias de extinção. Tanto animais, como robôs, nos hão-de sobreviver, enquanto aplaudimos o nosso próprio desfecho, tão artificial que é a nossa inteligência. A não ser que haja intervenção divina e aí, não haverá azul celeste como pano de fundo, a glosar a cópia dos anjos, pois serão eles, efetivamente transparentes que, quais animais amestrados de Deus, mas ainda com a metade livre dentro de si, concederão a alguns, mais uma oportunidade, aos Noés do futuro. Os burros de carga, que carregam o mundo às costas apenas porque querem e não porque tenham nascido para isso, são os de pano de fundo azul como fundo. E isso é um problema para quem lê este texto e procura nele a sua facção. É que todos e cada vez mais, e volto a repetir, de uma ponta à outra do mundo, usam esse azul impecável quando querem dizer coisas. Uns porque pensam ter o mandato vindo do céu, outros porque pensam ter o mandato vindo do povo que é simples e ingénuo (quase tolinho) como as crianças e, por isso, representantes na terra do céu. É por isso que Putin tem razão quando diz que caminhamos para o abismo e que o ocidente também tem razão quando diz que não caminhamos para o abismo. O que dá razão a ambos é o abismo. O mundo tornou-se num abismo bicéfalo, imagem pálida de Janus, por ter largado o tempo: cada face do abismo olha o espaço... A palavra abismo está lá, sobrepondo-se ao sim e ao não. Não interessam ao abismo, as palavras sim e não, elas são tão irrelevantes para o abismo como seriam para um buraco negro cósmico que a via láctea encontrasse pelo caminho. O abismo é o grande senhor, de um azul profundo para o qual todos caminhamos a gritar sim e não. O Grito é apenas o que restou da metade da partícula livre e de liberdade que nos abandonou a todos há muito tempo. Já não nos lembramos do seu sabor, do seu cheiro, do seu rosto. Caminha pelo cosmos desviando-se de todos os buracos negros, mas o primeiro desvio que fez foi de nós próprios, os humanos, demasiado animais e demasiado artificiais, para ela. 

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