Talvez seja apenas necessário guardar um grão de vida e andar com ele no bolso interior do coração e não o mostrar excepto às crianças e aos animais, os únicos capazes de o identificar, os restantes estão cheios de rugas na alma e têm os olhos pregados ao desgosto e o desgosto pregado nos olhos. Desde que saí do jardim, tem de ser assim. Lá podia ser eu própria e andar desnuda, sem vergonha nem medo, mas cá fora temos de nos cobrir de trapos e de véus para não haver nenhuma desgraça. Neste mundo woke, todas as excentricidades são permitidas, menos a verdade. E no mundo anti-woke, o mesmo se passa e o mesmo ainda no que não é nem deixa de ser e onde se é funcionário de uma democracia bizarra encaixotada em tecnocracia e profissionalismo, seja lá o que isso for. Já passamos por muitos escritores que agarraram o “sonho de Portugal” sempre esbatido no pano de fundo que é o Quinto Império. Hoje olho para trás e vejo uma grande jornada feita durante décadas por esse sonho fora, mas a sua materialização não pode ser feita dentro de pessoas cheias de rugas ou com o desgosto pregado nos olhos e os olhos pregados ao desgosto, de maneira que afasto o pensamento desse sonho e coloco-o, como uma vez fiz com um livro, no topo da estante, encostado à parede, num ponto incessível e invisível que só eu conheço. Não se deitam fora os sonhos, sobretudo este, o de Portugal. A única coisa a fazer é colocá-lo longe do nosso olhar, não pensar muito nele para não nos tornarmos impacientes numa altura em que o globo terrestre não está para brincadeiras com noventa e nove por cento de loucos, enlouquecidos por o restante um por cento. Evidentemente que temos de estar fora do mundo, a orbitar em volta dele, com um grão de vida no bolso interior do coração e a brincar com ele, dentro de nós e para nós, como se fosse um berlinde. Um abafador, abafado, só utilizado nas almas que valem a pena, como as das criança ou dos cães. Giramos à volta do mundo como se fossemos satélites à espreita e à espera de uma oportunidade para cair em cheio nele e então sim, começar a transformá-lo. Até lá, apenas ouvimos a música das esferas e rebolamos na relva com cães e crianças. Também descemos dunas de areia gigantes e rebolamos como se fôssemos bolas e rimos todos juntos do nosso segredo que o mundo não vê. Desse e do segredo da gruta onde escondemos, num sítio inacessível, o sonho de Portugal. Claro que há quem fale dele, mas ou o desvirtuam (apenas quando falam dele) não o beliscando sequer na sua essência (é apenas uma tentativa de apropriação impossível de se concretizar) ou não serve para nada falar dele porque há palavras cujos ouvidos actuais nem reconhecem, ficam imediatamente surdos à passagem do seu som e por isso não vale a pena falar de certas coisas, mais vale rir e rebolar pelas colinas e ser-se satélite sem nome, nem voz, nem fama, ser uma constante lua nova e permitir que as trevas se instalem em sossego, deixá-las respirar e ser o que são e não as incomodar com sonhos nem com nomes de países demasiado misteriosos para serem ditos em voz alta. Não se pode dizer o nome de Portugal em voz alta, só se pode sussurrá-lo pois a força do seu nome equivale a um tsunami e ninguém quer um tsunami na sua alma. Ninguém quer morrer para renascer. Às vezes penso-me como guarda-livros, mas não daqueles que fazem contas, antes daqueles que os guardam de facto dentro de si, como no filme Fahrenheit 451. Ainda não chegámos ao ponto dos livros serem proibidos, apenas os sonhos o são. Podemos ler tudo, desde que não sonhemos. E muito menos temos permissão para entrar num sonho, isso é o sacrilégio mais trágico. Duas realidades apenas se querem sobrepostas, nunca fundidas. É por isso que o ponto não é uni-dimensional, é bi-dimensional. A sobreposição é aceite, ser-se várias coisas ao mesmo tempo, em paralelo, sem se tocarem e dizer a toda a gente que se trata de um ponto, de uma unidade. É mentira. São várias, sobrepostas num líquido. São liquefeitas, dissolvidas, mas não unidas, fundidas numa só. Como o nome de Portugal é unidimensional, não pode ser dito em voz alta, como o segredo do Templo. Simplesmente porque o mundo não ia aguentar e talvez passasse por um grande período de choro, ou de dilúvio e ninguém quer um dilúvio, nem chorar. Preferem um desgosto colado aos olhos porque assim a boca ainda pode sorrir sem conhecer o sabor da lágrima. Sem o sal, sem a vida. As trevas, neste momento, são muito mais interessantes porque ofuscam a luz e nós disfarçamo-nos de lua nova, mas as trevas que carregamos são de uma outra espécie, daquela que contém tudo e onde tudo flutua em expectação, embora quem nos veja de fora, veja apenas a lua nova, a permitida, como um livro que se lê sem poder ser sonhado.
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