“Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
E a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar."
Fernando Pessoa, in Mensagem
Tornavas tudo íntimo porque tudo
tendia a tomar mais do que duas dimensões e, ao fazê-lo, nada ficava inocente.
Nem podia sê-lo. Descontextualizavas as palavras e os gestos e colocava-las num
qualquer outro pensamento, ideia ou tempo. Assim, de repente, raptavas aqueles
que de ti se aproximavam para um outro lugar, para uma outra consciência das
coisas, para a dimensão mais profunda que delas te conseguias aproximar. Sabias
que, em último grau, tudo era afinal revelação, mas sabias também, que se cada
gesto era uma viagem, se cada pensamento um passo, se cada ideia um voo, havia
uma espécie de ilha que ia contigo, onde quer que fosses. Ilha única,
impartilhável pela impossibilidade de quem quer que fosse poder fazer a mesma
viagem até lá. Sabias da impossibilidade de duas pessoas fazerem a mesma
viagem, por terem tido vidas diferentes, serem outras, e terem até outro corpo
que não o teu. Mas no fundo de ti, vivia a dúvida, aquela isenta de vontade ou
desejo, e que se prendia com a certeza de memórias sem tempo, coladas a ti como
um tempo presente. Era esse o teu limite da dor, o exacto instante em que
acabava a ilha e começava o mar. E nesse pequeníssimo espaço de areia e tempo
cabia o infinito abismal de separação. Essas ilhas encobertas que se dispunham
no mar, atravessando-o eram, sem que o soubessem, a sagração do próprio tempo,
tão raras quando vistas, tão próximas quando encontradas, tão ímpares na
realidade que propunham, mas tão ilhas que eram e inalcançáveis, por isso. Dessas ilhas apenas o vento
as sabia quando levava as folhas como poemas, as sementes como esperanças, as
poeiras como estrelas... e nada mais era senão isso, e todas as obras dos
artistas não eram senão isso... e todos os descontextos das palavras e gestos
que proporcionavas a ti e aos outros, nada mais eram senão isso... e os olhos e
as almas ficavam sempre por acontecer, enfaixados numa falsa esperança porque a
realidade nunca se submetia à vontade do sonho, calando-se este, na viagem que
era só promessa... e tudo ganhava a utilidade que o próprio sonho negava: as
folhas, as sementes, as poeiras caiam, geravam numa utilidade descarnada,
quase, donde tinham vindo. As brumas nunca enalteceram as ilhas e os sonhos
nunca foram de ninguém, os deuses entregavam-se em vão, porque não escutaste e,
com a capa da esperança se afastavam, deixando-te com um sorriso vago de quem
caminha nas esferas e volta a estender a mão, em contra vontade, a quem passa,
numa eterna espera.
E há, no entanto, esse fio ténue aproximando-se, e segreda tanto a voz como a escuta.
(Cynthia Guimarães Taveira)
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