sexta-feira, 29 de maio de 2015

Fio ténue


“Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
E a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar."
 
  Fernando Pessoa, in Mensagem
 
Tornavas tudo íntimo porque tudo tendia a tomar mais do que duas dimensões e, ao fazê-lo, nada ficava inocente. Nem podia sê-lo. Descontextualizavas as palavras e os gestos e colocava-las num qualquer outro pensamento, ideia ou tempo. Assim, de repente, raptavas aqueles que de ti se aproximavam para um outro lugar, para uma outra consciência das coisas, para a dimensão mais profunda que delas te conseguias aproximar. Sabias que, em último grau, tudo era afinal revelação, mas sabias também, que se cada gesto era uma viagem, se cada pensamento um passo, se cada ideia um voo, havia uma espécie de ilha que ia contigo, onde quer que fosses. Ilha única, impartilhável pela impossibilidade de quem quer que fosse poder fazer a mesma viagem até lá. Sabias da impossibilidade de duas pessoas fazerem a mesma viagem, por terem tido vidas diferentes, serem outras, e terem até outro corpo que não o teu. Mas no fundo de ti, vivia a dúvida, aquela isenta de vontade ou desejo, e que se prendia com a certeza de memórias sem tempo, coladas a ti como um tempo presente. Era esse o teu limite da dor, o exacto instante em que acabava a ilha e começava o mar. E nesse pequeníssimo espaço de areia e tempo cabia o infinito abismal de separação. Essas ilhas encobertas que se dispunham no mar, atravessando-o eram, sem que o soubessem, a sagração do próprio tempo, tão raras quando vistas, tão próximas quando encontradas, tão ímpares na realidade que propunham, mas tão ilhas que eram e  inalcançáveis, por isso.  Dessas ilhas apenas o vento as sabia quando levava as folhas como poemas, as sementes como esperanças, as poeiras como estrelas... e nada mais era senão isso, e todas as obras dos artistas não eram senão isso... e todos os descontextos das palavras e gestos que proporcionavas a ti e aos outros, nada mais eram senão isso... e os olhos e as almas ficavam sempre por acontecer, enfaixados numa falsa esperança porque a realidade nunca se submetia à vontade do sonho, calando-se este, na viagem que era só promessa... e tudo ganhava a utilidade que o próprio sonho negava: as folhas, as sementes, as poeiras caiam, geravam numa utilidade descarnada, quase, donde tinham vindo. As brumas nunca enalteceram as ilhas e os sonhos nunca foram de ninguém, os deuses entregavam-se em vão, porque não escutaste e, com a capa da esperança se afastavam, deixando-te com um sorriso vago de quem caminha nas esferas e volta a estender a mão, em contra vontade, a quem passa, numa eterna espera.
 
E há, no entanto, esse fio ténue aproximando-se, e segreda tanto a voz como a escuta.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

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