Teria sido mais fácil se tivesse nascido com aquela memória prodigiosa para citações, ou aquela forma de falar académica na qual as longas palavras fazem também um longo e afunilado remoinho em direcção ao abismo mas que dão lugar na elite dos dezoitos universitários. Mas não. Tive de lidar com um misticismo precoce que me deu cabo da cabeça demasiado racional até ler o Xamanismo do Mircea Eliade e perceber que louco, andava o mundo actual. Teria sido mais fácil se tivesse sido mística e tivesse permanecido como Lídia (de Fernando Pessoa) e me deixasse ter ficado sentada à beira rio esperando que ele corresse além dos deuses. Mas não. Em vez disso, a minha vida foi-se tornando símbolos que ganharam vida, ao ponto de já nem querer saber dos fantasmas dos outros que são evidentemente estúpidos demais para saberem o que é um símbolo. Os fantasmas não sabem o que é um símbolo. Estranhamente só querem saber de corpos para incorporar ou para aterrorizar, ou para se distraírem do facto de serem fantasmas. Em vez disso a nitidez das imagens que me devolveu uma dioptria em cada olho fez-me ver as pessoas, os seus fantasmas e ainda mais longe disso tudo, onde o mais alto e o mais baixo se tocam. E foi assim que fiquei sem paciência e com toda a paciência do mundo em simultâneo. E olho para uma esfregona e digo que não tem nada de especial e, ao mesmo tempo, no mesmo instante e momento reclamo para as donas de casa um ordenado superior ao do Presidente da República, porque sei que sem as donas de casa o país caia a pique e que com a justiça coxa que temos, ainda assim, o país lá vai andando. E por absurdo que pareça esta é a realidade das realidades, que uma mulher com uma esfregona que não vale nada, vale mais do que cem juízes e que a justiça, a verdadeira, é semi-cerrada aos olhos do vulgo. E deixei de lado as ideologias, que nunca as tive, porque ser monárquica não é aderir a uma ideia, é um facto, e deixei de me preocupar com pomposos intelectuais cujo carácter sempre foi inferior à quantidade de livros que leram e me entreguei ao estudo vivo que é aquele que se está nas tintas para a "partilha", para o "bem comum", para o entretenimento de alguns e para o desvio do estudo de outros que se encostam suavemente e com doçura numa perguiça enlameada a quem tem o fogo do estudo bem aceso, e também foi assim que nunca mais peguei numa esfregona como um castigo mas sim como uma glória. Por isso, teria sido mais fácil se me tivesse deixado ir no academismo graduado, nas filas de espera para o sucesso, no misticismo deslumbrante que me levaria a vestir de branco com um véu segurado por uma data de anjos aparvalhados e embevecidos. Teria sido mais fácil. Mas tenho, de facto, mau feitio. E sou portuguesa, país batido na justiça, batido pela justiça e onde a justiça é um batido de injustiça onde não se espera e de justiça onde não se espera. E a vida devolve-me tudo em símbolos, sempre, porque já os atravessei.
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