No prédio em Lisboa onde passei a infância, a adolescência e parte da vida adulta havia uma porteira cujo comportamento era o de uma autêntica mãe galinha de todo o prédio, de todos andares e de todas as famílias. Era a ela a quem todos os inquilinos davam as chaves de casa para que pudesse haver sempre uma chave disponível caso nos esquecemos dela em casa e não pudéssemos entrar, era ela que nos regava as plantas quando íamos de férias, que resolvia alguns problemas práticos e ficava com as crianças "se fosse mesmo necessário", enquanto os pais saíam para tratar de qualquer coisa. E era ela também que entrava quando queria pela nossa casa, surpreendendo-nos pela visita inesperada para nos dar um recado qualquer ou uma informação. A minha mãe, freverosa adepta do topless, tanto em casa, como na praia, foi tantas vezes apanhada naqueles propósitos que a nossa porteira começou a achar por bem abrir a porta e gritar: "Está vestida, Senhora Doutora? sou eu.", e a minha mãe lá respondia: "Só um bocadinho, D. Emília". Numa dessa entradas súbitas, aconteceu uma situação que nos ficou na memória para sempre. A D. Emília entrou, e falou compulsivamente como era costume do assunto que a levava ali, no fim, a minha mãe perguntou-lhe como é que se achava a situação de saúde do marido e ela disse: "Não está nada bem, vai ser operado ao coração. Veja, é só desgraças. Ainda por cima a Carolina hoje vai partir um pé". E saiu. Ficámos a olhar uns para os outros sem perceber nada, julgando-a uma espécie de vidente. No dia seguinte foi desvendado o mistério. A Carolina era uma personagem de uma novela. Uma bailarina. E a D. Emília sabia que ela iria partir um pé no dia anterior porque tinha lido a TV Guia, revista semanal da altura sobre televisão e que publicava os resumos da telenovela. (Só havia dois canais).
Na verdade, na cabeça da D. Emília, aquele facto da telenovela fazia parte da sua lista de preocupações. Não sabia distinguir a ficção da realidade, tal como muitos leitores procuram na vida real factos que tenham levado o autor a escrever a ficção e procuram na ficção de determinado autor, factos que aconteceram na vida real desse autor. De maneira que este problema é transversal a qualquer classe social e/ou intelectual. Há como que uma recusa da literatura em abono da vida real ao passo que a D. Emília dava o mesmo peso à vida real e à ficção, contribuindo ambas para o peso das suas ralações. Evidentemente que tudo isto me faz rir, ainda hoje. A operação do marido da D. Emília correu bem e viveu ainda por muitos anos. A Carolina partiu o pé mas recuperou, salvo erro, e continuou a dançar, salvo erro. E as pessoas prosseguiram, confundido a ficção com a realidade. Outras, com mais sorte, viram a ficção tomar conta da sua vida, e as pessoas à volta a não acreditarem que tal coisa pudesse acontecer, tentando explicar esse acontecimento com teorias psicológicas oscilatórias e convencendo-se de que essa explicação era a realidade dos factos, quando a realidade dos factos era bem mais simples do que isso: a ficção tinha participado, de facto, na sua vida. O povo anda muito mais perto da verdade embora não tenham consciência disso e isso porque ninguém os despertou. Nesse despertar está toda a diferença ao passo que na intelectualidade morna que encontramos está toda a distância profunda em relação à verdade, todo o adormecimento. É dessa maneira que, na Índia, vemos alguns intocáveis a participar em ritos dos Brâmanes, e na nossa aristocracia vemos os Reis perto do Povo. Na aristocracia verdadeira, porque a outra, a democrática é um lamaçal. Tal e qual a intelectualidade morna, convencida, Aristotélica e Platónica em simultâneo (sem chegar aos patamares de ambos os filósofos), e vulgar nas explicações do inexplicável.
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