terça-feira, 29 de outubro de 2019

Os fazedores e os que fazem


No filme realizado e protagonizado por Clint Eastwood, com o título “Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos”, a páginas tantas do guião, o actor diz. “Hoje em dia todos querem ser celtas”. Na altura achei graça devido ao gosto que tinha e que tenho, pela chamada música celta. O actor deveria vir agora a Portugal. Por aqui, todos querem ser celtas, ou templários, ou rosa-cruz, ou magos, ou vikings, ou bruxos ou extremo-orientais, ou tibetanos ou o que seja. Depois dos últimos representantes maiores da filosofia portuguesa terem partido, pergunto-me sobre o que se passa. Os grandes, maiores, como Dalila, Agostinho, Quadros, Telmo, limitaram-se a ser eles próprios. Os desalmados de hoje pertencem a grupos, ou étnicos, ou esotéricos, e até mesmo dentro da filosofia passou a existir uma cisão muito vincada entre católicos e maçons em jeito de Dan Brown (por muito que façam pouco do autor, ele limitou-se a espelhar a realidade). Pessoa que é pessoa tem de estar agrupada e em muitos casos “agrupalhada” ou até bi ou tri ou poli-agrupada ou agrupalhada.

Ser naturalmente o que se é, é sinal de heresia. Ir sendo, ainda é pior por causa das incoerências francamente insuportáveis, no meio da esquizofrenia e bipolaridade como formas de “respiração” consideradas normais. Ainda estou para encontrar um que diga que não é nada, nem coisa nenhuma. Essa maravilhosa taça zen vazia. Normalmente os “cheios”, cheios de si que se colam a um grupo maior, étnico, esotérico ou qualquer outro, não colocam o seu nome no centro do labirinto, como Dante, Dürer ou Camões (Pessoa colocou-se em todas as partes do labirinto) porque isso seria considerado “ego” a mais. Mas o que noto é que os egos que nunca mais acabam, templários, rosa-cruz, magos e etc... e tal, são muito pouca coisa, e, por isso, sentem necessidade de juntar qualquer coisa ao seu apelido. São os tais casamentos por conveniência que os levam depois e, pelos anos fora, a saltitar, por aqui e por ali, aos encontrões e aos desconcertos enquanto produzem aquilo a que chamam “obra”, embora de criativos não tenham absolutamente nada; limitam-se, a grande maioria deles, a eliminar quem tenha um pingo de criatividade do seu caminho. Qualquer tipo de criatividade só serve para lhes fazer sombra ou para os remeter para um altar de sabedoria se calha serem eles os visados (positiva ou negativamente) pelo artista, ou seja, andam às cavalitas dos artistas quando podem, como, aliás, qualquer bom burguês -- sim, essa burguesia enfadonha que criticam tanto e que muitos deles dizem contrariar com laivos de gnosticismo onde a moral serve para tudo: para puxar por ela quando estão à beira de se escaldar ou para a recusar quando já estão a morrer de tédio com o enfado da vida que levam… são, de facto, maravilhosos – perfeitamente assumido. É o tal gnosticismo plástico e adaptável às necessidades do momento e, até mesmo, às da idade.
Mas, continuando. Ser natural, ser-se quem se é, isso é coisa difícil. Por dois motivos. Quando não se é grande coisa isso é uma chatice, quando se é até mais do que aquilo que se pensa, eis as portas do sofrimento, da desgraça e dos tais perseguidos e amaldiçoados em terra, a escancararem-se diante de si. E todo o trabalho que isso dá e todo o trabalho que se tem pela frente quando essa realidade é desvendada, conscientemente ou inconscientemente. Neste caso a consciência é suplementar porque aquilo que interessa é o que se é, de facto e, aí, estamos a lidar com uma coisa que está fora de moda: a verdade. Uns dizem do alto do púlpito celta: “Ah, a verdade, ou, o que é a verdade?”, outros, do alto do púlpito “seja do que for”, que ninguém possui a verdade. Ora aí está meio caminho andado para se “agrupalhar” ou “agrupar” (há uns grupinhos um bocadinho muito pequenino melhores do que outros); quando ninguém sabe, ou ninguém tem a verdade, como bolinhas de mercúrio, agrupam-se. E, como ele (o mercúrio) comunicam muito, espelham-se muito, aglutinam-se muito e são acéfalos porque só há uma gota, uma cabeça que é a do grupo porque “juntos somos mais fortes” e somos todos uma família, democrática, claro, nada de Pater ou Mater ou quando os há é por fidelidade à tradição seja ela qual for… qualquer coisa serve porque ninguém estuda, de qualquer forma.
Ora os exemplos destas figuras exemplares da nossa história, como Pessoa, Camões, etc  (basta consultarem algumas biografias na Wikipédia), mostram que, difícil mesmo, é ser-se forte sozinho. E ninguém quer coisas difíceis. O ser-se forte sozinho implica um confronto frente a frente com Deus. Um confronto com o Anjo. Um confronto com nós mesmos. Um confronto com a Verdade, em suma. Terrível, mas muito mais iniciático, incapaz de enganar na imagem projectada que é sempre decadente, suja, maltrapilha, vacilante, duvidosa, temível, frágil, mas densa, muito densa. Exactamente o oposto dos fazedores de discípulos, de adeptos de equipas, de perdidos da verdade que dão a imagem de a terem.
Clint Eastwood, o durão dos filmes de murro e pontapé, intuiu isto muito bem (o filme é praticamente todo dele), quando disse, com um ar ligeiramente irónico e sábio: “hoje em dia todos querem ser celtas…”. Quando não se quer ser coisa nenhuma, então a estrada abre-se à sua frente, e é ainda a estrada larga, porque a outra, estreita, é, quando se quer fazer alguma coisa sem se saber muito bem o quê… e repito, sem se saber muito bem o quê. É apenas uma vontade. Mais forte do que o mundo. E há outras estradas ainda mais estreitinhas mas dessas... 

1 comentário:

  1. Há uns tempo dei por mim a tentar passar por entre dois carros com o meu. Devagarinho, devagarinho, passei entre ambos e lá prossegui sem dano. No caminho pensei que aquilo não era uma porta estreita, era um caminho/estrada que se estreitava ali. A diferença entre uma parta e um caminho, ao nível simbólico, tem a ver com a irreversibilidade e com o tempo. Passar por uma porta é passar para um outro estado, quer seja uma porta larga quer seja por uma porta estreita. E fazê-lo é irreversível. Ou seja, uma vez passando, passado ficou. Já o caminho implica o movimento e o tempo. Estradas largas e estreitas são viagens, são transformações no tempo, são modos de estar e de viver que podem ir dar às portas ou não. Penso ter explicado o "porquê" de ter usado as "estradas" no texto acima e não as portas. Referia-me a caminhos, a modos de estar na vida, com maior ou menor naturalidade e, por isso, mais perto ou mais longe de qualquer porta (que são mudanças profundas). Para os olhos "deformados" por leituras sucessivas de "portas estreitas" e de "portas largas" dos textos religiosos, evidentemente, que soa a erro, esquecendo-se de interpretar o texto que é extremamente mundano. Passa-se no mundo. Fala sobre o mundo. É para o mundo. E está no reino do "fazer" e como "fazer". Fala sobre pessoas que souberam ser elas próprias com naturalidade e, por isso, fizeram bem.

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