domingo, 30 de junho de 2019

A Mensagem do Unicórnio



Hoje ofereci a "Mensagem" de Fernando Pessoa a uma menina que fazia 11 anos, e um outro livro para a idade dela. Disse-lhe que podia começar já a ler o de Fernando Pessoa que não lhe fazia mal e que mais tarde o iria compreender todo. Como ela gosta de ler sinto que lancei uma espécie de berço de verga à sorte no Nilo ou que lancei uma arca cheia de escritos para os "futuros leitores" de quem Pessoa dizia ter saudades. Há gestos primordiais que se podem reproduzir numa escala mais pequena. Dar a "Mensagem" a uma criança que gosta de ler, é um deles.
Recebi, também hoje, uma chamada telefónica de uma amiga que já não vejo há uns bons três anos. Sabendo ela do meu percurso mais-do-que-acidentado pelo mundo das artes plásticas, dos escritos no Facebook e das palestras e sabendo do facto de isso ter acabado muito mal, com o meu afastamento, metade instigado por invejosos e/ou inconscientes e a outra metade por iniciativa própria, perguntou-me ela só para confirmar: "Não te interessa nada o protagonismo, pois não?" Respondi-lhe que não e de mim para mim respondi: "prefiro ter amigos". Em certos meios ou se escolhe uma coisa ou se escolhe outra sobretudo quando se é rebelde e se sofre de insuficiência crónica de contexto de liberdade.
Este foi o meu dia a par com um churrasco de entremeada, salsichas frescas e de um bolo de aniversário altíssimo todo coberto de massapão branca como a neve e um unicórnio no topo porque esse animal está na moda entre as meninas dessa idade. Mal sabem elas das tapeçarias iniciáticas onde aparece esse animal mitológico.
Sim, diria que foi um dia puro, sem grandes voos e sem grandes complicações. Mentira. A "Mensagem" de Pessoa é tão complicada que ainda hoje se presta a diversas interpretações e as tapeçarias idem. Foi um dia puro e complicado, como tudo o vale a pena quando a alma mergulha num qualquer mitema (mitema é uma palavra inventada a partir da palavra "mito", muito utilizada por Gilbert Durand, autor francês que estudou alguns mitemas portugueses). Entre queixas, desgostos, lágrimas, o churrasco, a alegria, a celebração e símbolos que ninguém conhece porque ninguém os explicou a quem não os sabe - e quem não os sabe também não mostra interesse em saber, situação recíproca e recorrente - lá se passou o dia, com o carro meio entupido devido ao gasóleo mais barato e de má qualidade que estraga o escape. A vida é feita de alguns pormenores um pouco idiotas e de outros que, seguindo um determinado percurso, só mais tarde fazem sentido.

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