terça-feira, 11 de junho de 2019
Lê lá para lá daqui
A amêndoa, como bem observou Dalila Pereira da Costa, conserva o fruto adocicado e perfumado no interior da casca dura e grossa, difícil de se quebrar. Creio haver uma certa função pública que evidentemente advém da função pública interna. Isto vai de mal a pior. Dizia o poeta António Carlos Cortez, convidado nos Prós e Contras de hoje, que se debruçou sobre Portugal, que ninguém lê. Pois não. Ninguém lê. Nem ninguém quer saber. Convém ir fazendo queixa ao céu, talvez alguém lá em cima ouça. Isto vai de mal e pior. Ao poeta de hoje, que estava cheio de razão, deixo o recado: quando se lê poesia lá para cima, para o alto, por vezes, esse gesto tem consequências surpreendentes. Não é como orar. Orar é sempre a mesma coisa, aquelas rezas, aquela técnica respiratória mal disfarçada. Não, refiro-me mesmo a ler poesia lá para cima. Inteira. É que ela não foi feita para os homens, foi feita para os deuses e quando a lemos lá para cima, se for lida com o coração, eles ouvem. A poesia encanta-os como eles nos encantam com a sua música. E ler poesia com o coração é a única forma de a ler e eles sabem. Ouvem. Também já falei no Facebook muito sobre educação. Nada. E até havia pessoas "importantes" a ler os posts. Mas nada. Lá no Ministério da Educação, eles são supra-deuses. Aquilo que resulta mesmo é dizer poesia para o céu. Ler em voz alta para os anjos ouvirem. Sentir todas as palavras como o poeta nunca as sentiu, até. Isso sim. Estão esses deuses mais próximos de nós do que os do Ministério. Ninguém lê. Pois não. Muito menos lá para cima. Já andam aborrecidos, os anjos e os deuses. No Ministério, os supra-deuses encarnaram o aborrecimento. Não estão aborrecidos. São aborrecidos. Tremendamente, para citar o Trump que é outro que é aborrecido. Ninguém lê. Pois não. Disseste que 40% dos portugueses não tinham lido um livro durante um ano. Não. Pelo menos metade deles estava a mentir. E a outra metade lê romances do fantástico ou livros das tias que foram mães e querem contar a toda a gente "como é ser mãe" porque ninguém sabe... Por isso escreve poesia, lê poesia para o alto. Lá eles apreciam. Cá em baixo não. Anda tudo muito preocupado em ser mais do que os deuses. Nêm têm tempo, "tremenda" é a tarefa. Vou contar-te um segredo: para se ler há que se ser humilde. Verdade. Esse é o princípio da leitura. Dizer: "Não sei". As pessoas preferem ser aborrecidas a ler. Armam-se em Ministério da Educação. Têm a mania das grandezas. Lá, no Ministério da Educação encontram-se os primeiros "não-leitores". Estão no topo. E toda a gente quer ser como eles. Mas não lhes chegam aos calcanhares, porque além de não lerem, são cegos. Nem em braille lêem. Nada. Carimbam papéis. Obedecem às editoras e à Santa Europa. Verdade. Por isso, lê para o céu, para os deuses, para os anjos. São mais humanos.
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