sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A casa carregada

 



Um dia vieram cá a casa, por convite, e observaram as coisas. Deram com um cantinho com velhas cartas de tarot já com os cantos gastos. Observaram que estavam "carregadas" o que deve ter sido por terem, exactamente, os cantos gastos... Daí passaram para toda a casa que estava muito "carregada" com objectos, livros e quadros originais feitos por mim. Evidentemente que a casa estava "carregada" e continua. As pinturas, os livros, os objectos não são transparentes e etéreos, carregam as paredes e as estantes e as memórias. Se eu quisesse uma casa nada "carregada" pintava tudo de branco, dispensava os livros e as pinturas e nunca me teria distraído a lançar cartas de tarot para passar o tempo. A panóplia de observações sobre o nosso "estado" com aquela expressão crítica é que se torna deveras assustadora. Uma casa carregada de vida, com animais, gatos e cães e vivências é motivo de observações desprovidas de sensibilidade provindas de "especialistas" da alma. A carga espírito+psicológica analítica é-me estranha embora seja alvo dela frequentemente. Os texugos aparecem e começam a escavar à procura de "defeitos", de elementos que comprovem o seu pré-conceito e encontram sempre uma base de sustentação, nem que sejam as cartas de tarot com cantos dobrados. Por aqui, têm muito por onde pegar, desde a imaginação incessante revertida para as telas, até ao aglomerado de flores que existem pela casa, passando por milhares de livros que nascem como cogumelos numa floresta olímpica e objectos idiotas como sejam caixinhas, frasquinhos, copinhos, taças etc, mas cuja idiotice é indispensável a quem "transfere" um pouco da sua alma para os objectos, tudo isto é um maná para a crítica especializada. Um dia, vieram cá a casa dizer que eram muito cristãos. Essa também aconteceu e fizeram ver que achavam perfeitamente natural que alguém queimasse uma estátua de um buda em nome de Cristo. A idolatria que constitui este gesto é a chamada idolatria máxima quando atinge o seu maior expoente. Ainda tentei explicar que o buda de madeira era apenas um objecto e apontei para a estatueta de Xiva numa das prateleiras, para as de buda noutras, para "chaves da vida" egípcias trazidas dessa terra, para os ícones, para os dois cristos, um em pedra outro em barro que frequentam a sala e fiz a revelação chocante de que eram apenas objectos dos quais gostava e que me remetiam para as filosofias e as religiões, uma espécie de companhia intelectual e sentimental. Em vão. Em vão porque para essa pessoa, a idolatria só podia ir num sentido e, nesta casa, só deveriam existir "marcas físicas" do cristianismo. Nada mais. Na verdade, essa pessoa, acabou por ser o autor de um dos actos menos cristãos a que já assisti na vida... Já dizia o professor Feijó que a "especialidade conduz inevitavelmente ao crime". E a idolatria, a verdadeira, não é outra coisa senão isso. O especialista da alma que observou o baralho, os objectos, as pinturas e por aí fora, vinha "carregado" de preconceitos que atirou para cima das pessoas que aqui vivem e saiu "leve" com a sua consciência tranquila, sem a mínima consciência do que tinha dito. Saiu leve como uma pluma. Afinal, tudo é mental. Mas houve qualquer coisa de ridículo nessa saída. Parecia um rei que ia nù carregado de preconceitos no dorso. Uma espécie de burro de carga emproado e empoleirado na sua sabedoria. Parecia, porque não afirmo nada. Talvez fosse um gênio e eu não o soubesse e talvez a sua casa fosse branca, sem estantes, sem flores, sem animais, sem vida. Talvez fosse o fantasma de uma casa. A casa mais "carregada" do mundo.  



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