quinta-feira, 26 de março de 2020
Diário da pausa
Por aqui parece que houve uma procura às ferramentas, tintas, parafusos, a mais ou a menos, nunca saberemos, e assim se deu uma explosão de bricolage; outros arrumam o que andavam para arrumar e até descobrem livros dos quais nem se lembravam, objectos escondidos. Memórias. Memória de si. Isto parece uma canção dos anos sessenta em que as viagens que pareciam exteriores eram sempre interiores. E pusemo-nos todos nessa estrada por não nos podermos pôr em estrada nenhuma. Há quem passe o dia à procura do culpado e quem circule pelas conspirações com um ar ágil, como quem dá um passeio descontraído, por entre vírus de laboratório, chineses malditos a quererem subjugar o mundo, (até já se esqueceram dos muçulmanos terroristas, tal é a fúria), ou por uma intervenção dos Estados Unidos na colocação do vírus no mercado de animais vivos na cidade chinesa donde ele veio. Há um pouco de tudo para quem não quer andar pelas suas memórias ou pelo bricolage. O tempo passa na mesma, e o inimigo, digam o que disserem, é o vírus. As estrelas dizem-me que morremos todos na mesma e que alguns, até lá, precisam de inimigos para se sentirem vivos, doutra maneira estariam mortos para o mundo. Mas este vírus quase que diz em surdina para nós voltarmos para dentro, para pegar em livros ou trabalhar com as mãos. Três castas antigas para um terço da população mundial fechada em casa. Os sacerdotes, virados para dentro, os leitores, mesmo que ainda assim procurem compreender os meandros do poder ( casta real ou guerreira) e os outros, artesãos que não perdem tempo com essas coisas e se dedicam a concertar e a reinventar com as mãos aquilo que os rodeia. Talvez agora se achem as vocações que andavam escondidas. Os restantes desesperam por uma razão ou por outra. O monstrengo gira sempre três vezes. Há os que treslêem as minhas palavras e que a seguir patinam vitoriosos nas suas interpretações. Não passa de patinagem artística no gelo da insegurança. Bem vistas as coisas num só dia podemos ser tudo e atravessar as castas com agilidade, de manhã se lê, à tarde se pinta os muros do castro construído no quintal e de noite, a viagem para dentro e fica assim o monstrengo desenrolado, do avesso e não se pense que está derrotado porque o dia nem precisou de inimigos e passou em paz.
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