domingo, 29 de março de 2020
O copo de água
Tenho uma amiga holandesa que veio para Portugal há muitos anos e que aqui casou e teve os seus filhos. Um dia estávamos a conversar sobre a diferença entre os dois países e lembro-me de que uma das coisas que ela estranhou no início, quando tinha vindo para cá viver, foi o facto de se poder ir a qualquer estabelecimento, pedir um copo de água e de ele ser gratuito. Ainda hoje, frequentemente, se vê um jarrinho de água com copos ao lado para as pessoas se servirem nos estabelecimentos. Aqui, a água, não se nega a ninguém. A água das fontes. Lá na Holanda, dizia ela, isso não se encontrava, pois quem entrasse num estabelecimento tinha de pagar pelo copo de água. Ela estranhou bastante este hábito português. Numa canção popular portuguesa, a água assume o valor de tesouro, "só invejo de quem bebe/ a água de todas as fontes", canção que se dirige à "rama do olival", em tom coloquial, a uma árvore, a oliveira cujo azeite serviu durante muito tempo de combustível para se obter luz, tem propriedades medicinais e tendo sido com ele ungidos os reis, para além de servir de alimento. Mas se voltarmos ao copo de água depressa nos lembramos que ele assumiu o sentido de banquete. O copo de água dos noivos é, afinal, um banquete que é oferecido. Evidentemente que se trata de um eufemismo exagerado mas a verdade é que, mais uma vez, encontramos a associação "água-abundância-generosidade". Bem vistas as coisas a cornucópia de abundância tem todo um ar de búzios dos mares, em espiral e brotando alimentos, como uma fonte. Também por altura da Revolução dos Cravos as mulheres em Lisboa ofereciam copos de água a quem passava. A água não se nega a ninguém, nem mesmo aos revolucionários. A água é um tesouro. Mas o verdadeiro tesouro, aquele que a amiga holandesa nunca compreendeu, era a dádiva. O simples gesto de oferecer a quem precisa ou não precisa (estamos no campo da abundância, não da caridadezinha). Isso é uma coisa cultural que nos está no sangue. E vê-se, agora com o vírus, a forma como algumas empresas metamorfosearam a sua produção em objectos e líquidos necessários ao combate ao vírus. Isto enquanto o Trump anda às voltas com os empresários da terra dele a tentar encontrar um "acordo comercial" conviniente a ambas as partes. Por aqui, a generosidade, essa coisa estranha aos holandeses, foi colocada em primeiro lugar. Era em terras de Amesterdão que, até alguns tempos atrás, se podia respirar a sensação de liberdade. Amesterdão, à semelhança de Veneza doutros tempos (também tem canais de água), acolhia os apátridas, os desvalidos, os diferentes. Embora fosse generosa quanto aos costumes, não o era, pelos vistos, relativamente ao copo de água. O pequeno copo de água que, como um vírus, tem tendência a multiplicar-se, a espalhar-se a a tornar-se num banquete. Num banquete generoso. A Holanda tem muito que aprender relativamente a Portugal. Mas para isso, provavelmente, terá de fazer como a amiga holandesa que casou com um português. Com copo de água e tudo.
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Lembro-me de ir à Festa dos Tabuleiros em Tomar, quando era criança, e de me admirar por ver que em muitas janelas, ao nível do rés do chão, as pessoas tinham jarros com água e copos, para darem de beber a quem passava.
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