quarta-feira, 1 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS IV

 


O CAMINHO DAS PEDRAS

 

Levo-te pelo caminho das pedras, devagar, porque podes escorregar. Choveu. A água percorre os intervalos entre elas. Corre sempre em direcção ao mar. Corre sempre para mais baixo, segue a linha da gravidade. Segue o íman do mundo. Tem tendência a concentrar-se lá em baixo, onde fica o lago. Tem tendência a ser sempre primordial. Corre para o princípio dos outros e para o princípio de si. E descemos seguindo-a, levamos folhas dispersas connosco, levamos as poeiras e os pensamentos; nunca descemos só um pouco, descemos com tudo, desde o início, em direcção às águas primordiais, ao lago, no fundo do jardim. Descem todos os encontros, descem todas as palavras e todas as manhãs, descem com a água que desliza. A água é pesada. O nosso passado pesa-nos descendo, sobre as pedras, sobre nós. O céu cinzento desce sobre os nossos ombros, o céu ainda mais escuro, ao fundo, sobrecarrega-nos com o seu peso invencível, os braços descem sobre o nosso corpo, a nossa cabeça inclina-se na direcção das pedras que descem, e desce com elas, descem as memórias, desce o cansaço. E a chuva desce sobre o nosso rosto. E o lago espera-nos ao fundo, lá em baixo. Lá salpicado de gotas e de nenúfares. E oásis absorvem as águas nas suas bermas. Bebem as águas que chegaram do céu, bebem as águas que chegaram das pedras, bebem-nos as mãos geladas da gelada manhã até não as sentirmos… e os pensamentos são um grito de dor e não podem voar mais alto do que o frio porque o frio, do lago, da manhã, das águas, e de nós que descemos com elas, são o encontro último antes de um último suspiro de vida ante a visão dos nenúfares flutuantes, atravessados por gotas de chuva. E o último suspiro de vida são esse nenúfares que se deixam deslizar sobre as águas frias do lago, os últimos rostos de vida sobre as águas, os últimos seres, antes de nos afundarmos nas águas, e de ficarmos frios, no seu fundo, onde já não se ouvem as vozes nem se vêem os corações. Águas primordiais, paradas, escuras, no lago de Inverno, o nosso corpo oculto sob nenúfares, no lago das nossas lágrimas pesadas, túmulo sem saber que o é, concentradas as nossas lágrimas tão pesadas, guardam-nos desde o princípio, cercam-nos desde o princípio, e vão gelando nas pedras frias, tão frias, e descem com os pensamentos sob o peso do nosso coração, deslizam sobre as pedras, e arrastam-nos como poeira, e sepultam-nos no frio das águas primordiais.


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