O ENCONTRO MARCADO
É possível ver-te sem que durma estando tu tão
distante. É possível que a tua imagem me invada. É possível falar contigo
dentro dessa imagem. Não, não é um sonho desperto, nem um sonho enquanto
dormimos. É a gota mais pura de eternidade que cai, apenas porque tem de cair,
sobre nós. É possível reconhecer a tua voz por entre as de um coro, os teus
gestos por entre os ramos ao vento, a tua grandeza por entre os astros. O tempo
é uma máscara que colocamos para que a nossa eternidade não seja vista… e
embora digam as multidões que somos todos iguais, no íntimo sabemos sempre
donde viemos e que estamos mais ligados a umas pessoas que a outras. E o laço é
tão forte e tão divino que não se desfaz nem com o desgaste da chuva, nem com
as ondas do mar, nem com o vento… que é o mesmo que dizer, nem com o mundo
profano, nem com os obstáculos da vida, nem com o desamor vindo como um vento…
nós somos divinos, nós bebemos a liberdade desde a nossa origem, foi o nosso
seio e é o nosso selo. O nosso maior mistério, o nosso maior segredo, tão
grande, tão imenso como é o jardim donde viemos, e dentro dele, no espaço mais
secreto dele, para lá do lago, coberto de nenúfares, negro, de Inverno, de
chuva, sem fundo, sem fim… a nossa origem está para lá do fim. O ovo donde
eclodimos é todo feito de luz, a gruta onde repousa é de luz e indo mais para
dentro dela, num regresso agudo ao útero, até ao seu interior mais profundo
está o seu coração, de onde brotámos como ovos depois de termos sido sementes
nele, e o seu coração é a fonte de todas as coisas vivas, a fonte do nosso
próprio coração. O coração do mundo. Foi por isso que quando te vi pela
primeira vez, sorri. E me beijaste a mão e me disseste que no nosso jardim
somos deuses de pedra dotados de vida… deuses de pedra que já foram sementes,
que já são aves e que voamos para o mar só para o ver desde cima, peixes vistos
do céu que contemplamos no tanque do recanto, nadando como se voassem. E como
voamos no céu da criação, e como dançamos nele valsas e danças das quais
ninguém sabe o nome por serem feitas de sons caindo sobre nós em gotas de
eternidade e por nelas colorirmos o mundo e reinventarmos o jardim, tantas
vezes, como uma cornucópia da abundância: jacintos mudando de lugar, aves,
cantando em gaiolas abertas douradas, crisântemos brancos em fila, gerberas
indagando-nos com o olhar enquanto as mudamos de sítio, muros que se levantam,
muros que se derrubam, abrindo caminhos, aquários com peixes de cauda de noiva, leves sedas em
água, leves vestes como nenúfares em água, à superfície, nadamos à superfície,
onde a água está mais quente e onde a chuva parou e o sol brilha, aquecendo as
lágrimas do lago donde emergimos porque há um vaso para mudar de lugar, um
crisântemo branco a espreitar, uma gerbera a indagar… e muros, baixos,
pequenos, pedra a pedra, à espera de nós, caminhos a libertar, a abrirem-se aos
nossos pés quando saímos dessas águas primordiais, da morte fria onde caímos
como poeira e nos deixámos levar, para lá do lago, além, mais, além, nessa
gruta de luz, onde fomos coração, semente e aves eclodindo, piando em fogo por
alimento, fénix coloridas, voando acima dos muros, só para poder ver o mar e os
peixes em baixo, nas águas de baixo, nas águas inferiores, ovo do mundo ….
Ganso… cisne…curvas da natureza. Encontrei-te, deste-me a mão e corremos pelo
nosso jardim.
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