domingo, 12 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XIII

 



OS NÚMEROS E OS NOMES

 

Não se poderia dizer que não existissem números. Mas nada era susceptível de ser contado, apenas sabíamos quando era para saber. Não se poderia dizer que não tentávamos. Todos nós tentávamos. Mas havia sempre alguma coisa que nos interrompia e tínhamos de começar de novo. Eram raras as vezes em que acertávamos e, mesmo assim, como tudo mudava à mais pequena mudança da nossa alma – a alma muda muitíssimo - nem disso podíamos estar seguros. Alguém disse que a ciência moderna era, sobretudo, medida. Como ali estávamos num jardim solar e não lunar, a medida era relativamente útil. Algo que, de vez em quando, tínhamos de utilizar, embora soubéssemos que não era muito precisa, ao contrário da ciência moderna que se diz precisa. Diz isso de si própria, mas no íntimo, não acredita. Pelo nosso lado, quando a luz do sol incide, só há crença, aquilo que se opõe à dúvida. Quando começávamos a contagem, acreditávamos com toda a verdade de que iriamos conseguir. E, com a mesma precisão que tínhamos na certeza de que iriamos conseguir, os números apareciam-nos imprecisos, voláteis. A nossa exactidão era de outra espécie. Acreditávamos, ou melhor, tínhamos a plena confiança de que os números estavam sempre a mudar. Com uma relativa utilidade, íamos contando, pétalas, flores, vasos, canteiros, árvores, espécies. Quando acabávamos, já tudo tinha mudado e sabíamos isso. Não é que desistíssemos de o fazer, deixávamos de dar importância a isso. O que não era importante ali não era em lado nenhum. Preferíamos simplesmente olhar para o ramo florido que íamos tecendo nas mãos. Os nomes tinham o mesmo valor da contagem. Trocávamo-los sistematicamente e chamávamos uns pelos outros, com letras trocadas, com o nome trocado, ou com aquele que surgia em palavras de fogo que iriam rodear alguém com as suas chamas. No Jardim dos Símbolos perde-se o nome. Até os símbolos perdem o nome à medida que vão sendo envolvidos nas interpretações que fazemos deles. Quem diria que a rosa é a sabedoria e que a sabedoria é a rosa? E que a sabedoria contém as letras da rosa e que a rosa dispensa tudo o que está a mais… todas as letras que estão a mais na sabedoria, porque a rosa é uma concentração de forças, de energias, uma essência. Os números e os nomes, quando muito, eram um pretexto para o facto de estarmos ali. Os pretextos são acessórios. Enxadas pesadas de ferro sulcando a terra para que não o façamos com os dedos. Os números e os nomes, são luvas. Não nos permitem chegar às coisas, tocá-las e sentir a sua temperatura sem números, apenas o sentido do frio, do morno, do quente. A adjectivação é muito mais total do que qualquer número. Falta sempre um número ou algum deles está sempre a mais, desencontrado com a realidade. O adjectivo envolve-nos totalmente. Absolutamente, quente, frio, morno. A captação de um momento tem sempre um adjectivo. Um momento não é apenas um nome. É a sua circunstância… como dizia Ortega y Gasset. Todos nós ali dávamos a entender que tínhamos um segredo ou que guardávamos um mistério dentro de uma caixa escondida num esconderijo, mas, na verdade, apenas os que já tinham nascido do ovo o tinham. As flores, donzelas e cavalheiros, nascidas das sementes, pareciam pressentir a existência de um qualquer segredo, de um qualquer mistério que pairava no ar quando os deuses do jardim passavam por eles. Esse pressentimento fazia com que levantassem o queixo e olhassem em várias direcções enquanto falavam. Pareciam procurar os deuses que lhes punham as palavras de fogo na boca. Sem pensar, ficavam frequentemente em silêncio, a farejar o segredo. Paravam de falar e olhavam para além da nossa presença, para uma qualquer linha de um horizonte que só eles viam. Não percebiam que os deuses éramos nós: aqueles que não tinham nome e se riam quando deviam ter medo e se enfureciam quando se deviam alegrar. Eles, por sua vez pressentiam a ira dos deuses e tremiam como as flores tremem ao vento. Cheguei a ver-lhes o pânico nos rostos quando se levantou o vento: “Nunca vi nada assim!” gritou alguém naquele momento quando um vaso de pedra, outrora colocado na escadaria de um palácio, se precipitava e caia aos seus pés. Quando olhou para mim, recriminando-me, soube que também era um de nós. Porque tinha olhado para o sítio certo sem que o seu olhar vagueasse para parte incerta. Um dia, coloquei-o em cima de um carro triunfal. Lamentava-se por ser um deus pouco bonito enquanto das suas mãos saía um campo de flores tão selvagem como requintado, tão forte como frágil, tão sereno como intenso. Limitei-me a apontar para o que fazia ao ouvir os lamentos. Nesse momento subiu para o carro triunfal porque percebeu: de si só saia o que em si havia: a mais estonteante beleza. E ergueu-se no seu carro, triunfante, feito de silêncio e de entendimento. O triunfo não era o que tinha lido nos livros. Era o silêncio e o entendimento.

 


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