O TEATRO VERDADEIRO
Enquanto se desenrolava o segundo acto da vossa
maravilhosa representação, os fantasmas divertiam-se na soberba linha que
separa o visível do invisível. Se não fosse pressentir a outra linguagem que
falavam, ter-me-ia ficado pelas duas primeiras linguagens. Porque havia a
linguagem do mundo, corrente como um rio, uma outra, que falava por gestos e a
sublime que não necessitava de mais nada a não ser da presença. E uma quarta,
a mais secreta de todas, que nem de presença necessitava, tida à distância,
quando cada um de nós, em cantos opostos do mundo, plantava as sementes que
davam a mesma flor. Abriguei-me nas vossas línguas, nos vossos pensamentos, uma
abelha de regresso à colmeia. “Aqui, todos os dias são diferentes”, e
caminhávamos por eles como se estes fossem um caleidoscópio da nossa alma. No
Jardim dos Símbolos, as leis da física já foram todas desvendadas e entraram em
vigor há muito tempo. Era vigoroso o modo como adoptavas um cão, quando eu, do
outro lado, adoptava um outro. Demasiado vigoroso para não ser verdade. O nosso
coração era um só porque era o coração do próprio jardim. Olhávamos para os
corações uns dos outros, eles eram o nosso verdadeiro rosto. As flores,
nascidas das sementes, e não dos ovos ainda, olhavam para longe, enquanto
falavam, como se recebessem instruções de um deus qualquer que só elas viam.
Afinal, as cores das flores eram as mensagens dos deuses entretidos em mudar de
forma, desvelando o universo como uma ilusão saborosa, ao longo do tempo, até
que se percebesse o que queriam, de facto, dizer. Essa linguagem não se tinha
perdido neste pequeno canto do Ocidente. Parecia ter ficado latente, mas tinha
passado ao longo de gerações ligadas ao campo, à pesca, à pedra, ao barro.
Entrar nessa linguagem era entrar numa casa abandonada há muito tempo. Cacos
espalhados no chão, paredes descascadas, tectos com fendas, um poço no quintal
já sem balde ou corda, retratos espalhados, aqui e ali, de famílias que nunca
tínhamos visto antes, antigas, pedras perto de um muro inacabado, velharias
dispostas ao acaso, transbordando da casa para o jardim que se tinha deixado
desenhar pelo vento e pelas sementes que o vento trazia. E entramos, ainda
assim, com uma sensação de estranheza. Tudo nos aparece sem sentido nenhum,
peças atiradas pelo tempo, à sorte, dos elementos e do nosso olhar. Até que
começamos a falar. E, à medida que as palavras e os pensamentos brotam, tudo
fica em chamas porque as palavras são de fogo e ardem. E a roldana do poço
começa a girar. E o jardim desvenda-se pela palavra dita quase sem querer:
“Vocês estão à vista de toda a gente e ninguém os vê!”. E esse momento é quando
se está pronto para aceitar que o espaço abandonado começa a ganhar outras
formas. Os cacos reagrupam-se formando vasos. A cauda do pavão abre-se e ele
fala com as cores e os gritos imensamente loucos que vai dando pelo caminho das
pedras. As fendas dos tectos são afinal rugas, os objectos dispersos estão
dessa maneira porque marcam o tempo parado em que a criança riu e os deixou
assim. As flores amarelas, afinal, formam uma fileira ao longo do muro que não
está inacabado, mas que acaba num arbusto, com a mesma altura, indicando o tipo
de natureza que nos espera daí para afrente. E, daí para a frente tudo está
estranhamente arrumado, porque há uma razão para tudo, um sentido para a razão
de tudo, um percurso sinuoso em tudo. A ilusão é apenas a casca dos frutos
acima das nossas cabeças. Como os kiwis-ovos no tecto do caminho que, a
determinadas alturas do ano, caem maduros no chão se não os provarmos, caem
maduros nas nossas cabeças para nos acordar e nos lembrar de onde viemos. De um
ouro velho por fora, de um verde dourado por dentro, caem e abrem-se revelando
as sementes que provamos ser, em todos os tempos, ao longo da nossa própria
história. Não há razão para fugir das
palavras só porque elas queimam, porque são elas que devolvem ao espaço toda a
correspondência que este tem connosco. O jardim, assim, abre-se, como uma flor.
E nós estamos sempre no centro do jardim, mesmo que estejamos perto de onde ele
acaba e onde nos oferece uma visão para o vale selvagem onde andam as raposas,
as ginetas, e onde as aves de rapina voam e parecem esperar por nós. E esperam,
auspiciosas.
Sem comentários:
Enviar um comentário