A saudade como impressão perene na alma é a fonte de toda a inquietação. Mas algo nos assusta. Talvez seja a ausência de sussurros, tão próximos do silêncio. A urgência de se mostrar que se sabe, mesmo quando, ainda assim, se revela a ignorância. Tenho um aluno, bom aluno, com onze anos e que sabe tudo. Sabe todos os factos. Revela-os com uma voz viva... Surpreende-me o que sabe. Apanha tudo, fixa tudo e tem opinião sobre quase tudo. Fico muda a olhar para ele. Não tenho tanta memória como ele, nem grandes opiniões sobre muitas coisas, muitas mesmo, penso que cada vez menos algo me entusiasma assim para querer dar o contributo, sempre prescindível, sobre o que penso, porque não penso nada. Nem penso nada desse aluno, a não ser que me deixa muda, mais enrolada ainda no meu silêncio imenso que parece estar cheio de todas as coisas. É um frente a frente um pouco sui generis, ele fala e eu calo-me. Ele age como se fosse ele o professor e a única atitude que, como professora me dá para ter, é a de ficar calada, deixá-lo exprimir-se livremente e deixá-lo ficar contente com o que diz e por dizê-lo. É como um livro que se abre, uma lista imensa de factos onde todas as notas de rodapé são as opiniões dele. Quase parecem dois livros independentes, o dos factos e o das opiniões. Mas o meu coração continua cheio de saudade. Ainda não é este tipo de pessoas que me afastam desta sensação de ausência do passado e do futuro. Quedo no silêncio como se este fosse uma pedra no caminho que se tivesse tornado o próprio caminho. Daria a mão ao futuro desejado se este aparecesse, mesmo que não o imagine na totalidade. O futuro é uma sensação que trago envolto nas vestes da senhora saudade, bordadas com corações cheios, pendentes aqui e ali, como lágrimas reflectindo a distancia que vai de nós a nós, o futuro é tão grande e tão pleno que parece transbordar tudo o que se possa imaginar. Não é fixo, nem utópico como a cidade de Platão, não é preciso, nem se consegue descrever, porque tentar fazê-lo é transformá-lo numa ideologia qualquer. E ele não é nada disso. Sinto que não é nada disso. E a saudade dói. Olho para o aluno, neste silêncio que une a saudade ao futuro e as palavras dele só servem para que lhe dê uma boa nota, para que prossiga os estudos, para que tenha um bom emprego, para que seja um bom pai, se for caso disso, e para que continue pela vida fora a ser quem é. O meu silêncio ele não o ouve, nem o sonda. Encara-o como o pano de fundo das suas palavras. Mas o meu silêncio é tão cheio que não há espaço para o somatório de factos, de coisas, de ideias que são sempre feitas (ainda estou para conhecer uma ideia que não seja feita...) com o qual ele o tenta bombardear em vão. Aos onze anos já sabem tudo. São precoces. A única novidade para eles seria a saudade, o sentimento de ausência de algo, de perfeição indescritível e as lágrimas geradas por ela. Porque quem não chorou de saudade nunca a sentiu. E quando não se chora por ela e por causa dela, tem-se o coração inquieto para ela. A impassibilidade Oriental que se aguente. Aqui, apenas a Saudade é impassível, imperturbável, mesmo que se chorem rios de tentativas de apaziguamento ou que se formem montanhas de inquietação. Da mesma maneira que temos uma sociedade na qual o fosso entre ricos e pobres é cada vez maior, também, e não como consequência disso, mas sim como causa desse fosso, temos os que sabem tudo e os ignorantes. Estes dois tipos de pessoas já estão em acção há muito tempo e foram eles os causadores desta desgraça contemporânea. Os poetas, herdeiros dos profetas, como bem observou Dalila P. da Costa, foram expulsos a pontapé, apedrejados e deixados encurralados, a chorar, com o coração inquieto, num canto. Por mais que no parlamento se citem os poetas, ninguém quer saber deles e, muito menos, ser um deles... O poeta nem sabe tudo nem é ignorante, é dispensável na sociedade dos afectos e dos afectados. O poeta foi infectado com o vírus da saudade. O mais pavoroso vírus, capaz de acabar com este permanente gladiar entre sabichões e ignorantes. Ao poeta não interessa o que sabe. Só interessa a saudade. E quando morre um desses portugueses, cada vez mais raros, morre um pouco da saudade, porque embora não o diga abertamente, a saudade ama os seus poetas.
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