Dalila Pereira da
Costa viveu na cidade do Porto, em plena Av. 5 de Outubro. Viveu num palacete
rodeado por um jardim. Esse jardim possuía várias espécies botânicas, uma pedra
de um túmulo romano aí encontrada e ainda um pequeno tanque com peixes.
O jardim, construído
a partir de elementos vegetais, tecido e podado por um jardineiro, opõe-se, de
algum modo, à construção em pedra. O elemento é orgânico, crescendo,
multiplicando-se e renovando-se por ciclos e desdobramentos dinâmicos de
imaginação. A iniciação que lá ocorre obedece, naturalmente, não somente a um
movimento espontâneo do Ser, como a uma ordem estipulada e impressa pelo próprio
jardineiro. O jardineiro é o princípio e o fim de si mesmo, pois ao se erguer e
movimentar em gesto espontâneo como uma planta, ele ordena, selecciona, colhe e
recolhe a partir de um acontecimento selvagem porque imprevisível. Todo o êxtase,
tal como as coincidências, possui o seu elemento de imprevisibilidade inscrito
num fluir temporal mas, em simultâneo, aniquilando esse mesmo tempo.
O jardim só existe
e só pode existir na cidade. No campo não há jardins. Ele nasce da cidade, a
partir dela. É um espaço reservado no sentido em que tem limites. Um espaço
interior, longe das instituições, longe do rebuliço. É um espaço de arte na
medida em que ele é produto da mão e do gosto dos homens. É um espaço de
contemplação, de meditação, de repouso, de soledade. É no jardim que pode haver
a suspensão do tempo. Foi no jardim que Dalila Pereira da Costa teve a sua
primeira experiência extática:
“Conhecimento duma
realidade suprema e única, em si livre e acima de qualquer realidade outra
terrena; concedida em alguns poucos minutos (quinze, vinte?), mas perdurando
para toda a vida incólume. Vivida em Coimbra, num dia de Primavera de 1938, por
volta do meio-dia, à sombra duma grande pittosporum dum jardinzinho
fechado, silencioso e solitário da Casa dos Coutinhos junto à Sé Velha, então
Lar do Sagrado Coração de Maria, para raparigas universitárias. (…) Então de súbito,
uma intensa luz, tão doce, e que não era a luz deste nosso sol, me envolveria e
tomaria: estava dentro ou fora de mim? O fora e dentro eram indiscerníveis, idênticos,
num único inseparável todo; a luz também inseparável e indiscernível de paz,
silêncio, liberdade e amor; em total despojamento, esquecimento do mundo (…)”1
A experiência mística
não é vista como uma experiência gratuita inserida na contemporaneidade do
quotidiano. Ela é sentida e vivida como fractura do próprio tempo, um intervalo
qualitativo que permite a apreensão da “essência” platónica. O jardim em que
respira é também um jardim interior como se, neste caso, tivesse sido possível
interiorizar o jardim e o seu sentido. O espaço como fonte semântica à qual se
pode aceder num primeiro momento de interiorização e num segundo momento de
anulação desse mesmo espaço, como prossegue a autora o seu relato:
“Que nesse
instante, por ele anulou, como conhecimento-vivência, toda a realidade
rodeante. Seu fim, como lento abandonar, sendo sentido como queda nessa
realidade terrena. Instante concedendo um conhecimento em certeza absoluta,
irrefutável, da existência de outro mundo e vida possível, em separação total
deste; sem tempo, de antes e depois, sem
espaço de aqui e além: como centro do mundo e da vida: eixo imóvel, dum mundo e
vida que à volta rodam incessantes.”2
Esta primeira
experiência, tida pela autora aos vinte anos de idade, é, a experiência
fundadora de toda um vida e uma obra: “ A sua obra é, na verdade, o reflexo da
sua vida.”3
Aqui o centro do mundo surgindo como múltiplo: o jardim como espaço exterior,
como espaço de quietude interior, como condição intrínseca para o “acontecimento”,
acontecimento que é também ele fundador da consciência religiosa, anunciador de
um caminho ou via e ainda percursor de uma obra a realizar anos mais tarde. A
partir da fenomenologia da luz e de toda a vivência em conhecimento da sua
mensagem se estabeleceram as bases de um “olhar” sobre diversos vectores: a
poesia, a antropologia, a literatura, a mística e a história de Portugal.
Esta experiência extática descrita
traduz um estado do próprio ser, mais do que um estado transitivo do estado de
espírito ou alma da escritora. Ela aparece carregada de sentidos:
“Não mais
olvidando, como certeza primeira, de que existe neste mundo, em fé, esperança e
caridade, esse outro mundo e vida, livre de problemas, anseios, incertezas,,
livre de todo o mal. Como força central e criadora do mundo da vida e da
verdade.”4
Aqui se
estabeleceram as bases ou certezas da fronteira delimitadora entre sagrado e
profano: “O homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do
Mundo.”5,
bases só possíveis de acontecerem com uma pré-disposição para a “transfiguração
do mundo”, mas de um mundo natural, não artificial, uma vez que tais experiências
místicas se situam num mundo do sensível e do extra-sensível: “gosto desde os tempos de infância (…) de
contemplação da natureza, e fácil união com os animais e plantas; fácil e
sentida como necessária.”6
Inscreve-se assim,
a autora, numa linhagem mística
portuguesa cujas principais referências estão exactamente na contemplação da
natureza, esta presente desde as cantigas de amigo até a um Frei Agostinho da
Cruz, e cuja vertente panteísta é, segundo a perspectiva da autora, o
fundamento e simultaneamente a diferenciação do “viver” religioso português. “Talvez
em nenhum outro povo da Europa, se tenha criado uma tão alta mística da
natureza.”7
ou “Na mística portuguesa, a união com Deus será experimentada (…)
preferentemente não no conhecimento do Ser absoluto, na sua essência, tal na mística
renana, mas nesta mística da natureza, onde Deus é atingido através dos seres
criados, numa experiência do Todo-Uno”8.
No Ocidente, o arquétipo
do jardim está presente no jardim do Éden, jardim que pode ser entendido tanto
no sentido material como no sentido espiritual, podendo participar nas duas
naturezas uma vez que serve a sua contemplação como ponte ou passagem para um
outro jardim, entendido no sentido místico: “Uns não querem ver nele senão uma «realidade
corpórea», outros uma «realidade espiritual», outros ainda uma «realidade
simultaneamente corpórea e espiritual»”9. Esta ponte ou passagem é muitas vezes
elaborada a partir do diálogo poético. A contemplação, para além de uma
passividade despojada, pode surgir como fonte de criação poética, entrando-se
num diálogo íntimo com os seres animados contemplados: “E as flores
desconhecidas que me olhavam e eu olhava tantas. Serenamente orgulhosas no seu
mistério”10 ou “Jardins misteriosos cheios de silêncio, contendo em si
uma tal concentração de vida: como prolongado instante extático (…)”11.
Observação que se torna difusa e torna difusa a linguagem: da descrição para a
poesia, da poesia para o instante extático de revelação. Porque toda a iniciação
comporta em si um estado “desperto”, não no sentido de uma maior concentração
meramente erudita ou de exercício de memória mas sim um estado, nunca virtual,
de descoberta de outros sentidos passíveis de apreender a realidade arquétipal,
numa linguagem platónica, ou uma supra-realidade no sentido místico. Essa
realidade da natureza não entra meramente nos parâmetros descritivos mas vai
mais longe, numa atitude que entende essa mesma natureza como Revelação da obra
do Criador. Porque, nesse jardim, ver é conhecer. Mas esse conhecimento, essa
entrada directa na Revelação é, no caso desta autora, motivo para uma obra.
Toda a Revelação é susceptível de transmissão por via da palavra como se a
Imaginação Pura se tornasse carne pelo Verbo, sendo esta transmissão de uma
dificuldade extrema:
“Porque sendo o
conhecimento do êxtase um conhecimento de experiência, que só por esta se deixa
apreender, o que é difícil é apresentar a outro (não explicar ou demonstrar, ou
ainda menos definir), o que para o próprio se apresenta com esta marca da
verdade: a evidência.”12
Facilmente o místico
pode cair numa espécie de irrealismo terreno, isto se não possui instrumentos
para que possa meditar as suas experiências e/ou transmiti-las. Facilmente esse
plano-outro que pertence à esfera do Real e não à realidade aparente das coisas
se torna vitima de si próprio, caindo numa espécie de isolamento e mesmo de
obscuridade, afastando o místico para uma espécie de “loucura de Deus”, um
louco que não o é totalmente. Dalila Pereira da Costa refere nas suas páginas
auto-biográficas as suas origens celtas, irlandesas e escocesas, por parte do
pai e, durienses e provavelmente romanas por parte da mãe, da qual
“teria recebido um
princípio concreto de ordenação e racionalidade para a transmissão desses
momentos de contemplação e união com a natureza: com revelação de seu secreto
esplendor; e ainda, de breves e imperfeitas apercepções de outros mundos
ultra-sensíveis.”13
É, em primeiro
lugar, a comunhão com a natureza a chave que abre as portas da percepção, num
despertar emergindo a partir da infância, em diálogos inocentes e necessários
com os seres vivos num jardim interior que já se adivinhava. Iniciação e
despertar caminham juntos numa via em que o despojamento e o silêncio parecem
constituir, mais do que panos de fundo de um qualquer cenário ritualista, os
verdadeiros fundamentos para a experiência estática, não podendo esta ser
confundida com qualquer patologia psíquica quando nos encontramos dentro deste
universo: “Assinale-se já a total incompatibilidade entre processo iniciático e
terapia psicanalítica.”14
De portões bem
cerrados, o outro-mundo só se torna acessível mediante determinadas condições,
sendo o despojamento uma delas e o silêncio como outra face da moeda, não
aparecendo como mero substantivo no discurso místico, mas sim como a outra face
do despojamento material: o despojamento mental do ruído do pensamento. Um
despojamento de tal forma apurado que o substantivo é obrigado a adquirir caixa
alta, passando de silêncio a Silêncio. O Silêncio é um estado ele-mesmo: “Não é
um caminho para o Silêncio, nem um caminho silencioso, é o Silêncio que está em
caminho”15
O jardim é um espaço
vivo, de criação e sobretudo de encontro. Encontro com o outro mundo e ainda,
no caso desta autora, uma referencia metafórica para o movimento da metamorfose
que o êxtase provoca:
“E como a
verdadeira vida, ele tem o seu mais profundo dom, o seu mais inalienável carácter:
a metamorfose. Assim, ao longo da nossa existência, ele vai-se modificando, e
com ele o conhecimento que dele tínhamos: sem cessar revelando-se o mesmo e
sempre outro. (…) Como semente que, oclusa e secretamente, perdura, cheia de
possibilidades. (...) como se esta iniciação não tivesse inclusa
necessariamente nela uma imediata realização. Esta, vindo mais tarde, através do
tempo, mas sempre a partir desta iniciação, como ulterior germinação e ensino:
como uma múltipla revelação”16.
Recorrentemente, a
autora recorre a comparações com elementos vegetais para exprimir o valor ontológico
das experiências místicas. A semente que germina e explode pode servir como
sustentáculo para a interpretação da sua obra. A metamorfose da experiência extática
não se situa ao nível do momento em que esta acontece, situa-se a nível da relação que a autora tem ao longo
do tempo com essa mesma experiência e isto tendo em conta que o vivenciado fora
do espaço-tempo vulgares é uma potência de vida e em consequência uma potência
de semânticas várias, de colagens a vários períodos da vida, de pesquisas em
livros e pensamentos, de maturidades encontradas ou até de uma certa inocência
reencontrada. A relação que se estabelece com a esfera do “ser” é uma relação
dinâmica, criativa, num lugar que, embora fechado dentro da cidade o é aberto
para o céu. A relação criativa é uma relação de verticalidade ou, nas palavras
de Rémi Boyer: “A Iniciação no Jardim não rejeita de modo algum o
desejo. Axializa-o”17, isto se partirmos do princípio que toda
a criatividade tem como parte da sua fonte o desejo.
O Jardim é um espaço em que os seus elementos são usados tanto na
sua forma externa como na sua substância. Como se na obra de Dalila Pereira da
Costa eles fossem sucessivamente virados, revirados e ainda o seu avesso fosse
revelado como cópia exacta, em palavra e imagem, de sensações poderosas
anunciadas e reveladas pelas forças do “alto”:
“Ela [A Virgem]
vinha este e aquele dia, aparecendo-me em formas diversas, no sonho (que dizia:
o mundo é construído como uma rosa -- camadas e camadas que é preciso
atravessar para chegar ao seu centro, que será o centro de dentro e o de fora;
(…) Mas primeiro fui a sua flor, como sua face verdadeira e oculta. Face que a
revelava e anunciava, em imagem transposta. Para mais tarde ser decifrada”18
A identificação com a natureza chega a ser corporal,
carnal. Se bem que comummente sejam os místicos vistos como protótipos de
carmelitas descalças, de eremitas longe do mundo, de cartuxos imersos nas horas
canónicas, em Dalila Pereira da Costa não existe a negação do mundo. O corpo
existe e está presente. A contemplação é um veículo para a união e essa união é
feita em sensação, em corpo e alma, em espírito que se aproxima, rodeia e
invade até ao âmago, até á totalidade do Ser:
“Tive subitamente a
consciência duma presença, força oculta e oclusa no centro da terra, no seu âmago
e à volta da qual se tinha acumulado a terra e o mundo, sucessivamente. Mas não
idêntica à terra: separada. E separada de mim. A terra não era a sua emanação.
Mas como seu invólucro, face. Esta força envolveu-me, cercou-me, lentamente
primeiro, depois vertiginosamente. Como se eu estivesse no centro dum remoinho,
dum nó de energias poderoso. Era uma força violenta, mas doce, quão doce.
Senti-me não possuída, mas rodeada, abrigada. Uma força tão viva: senti-me como
caída no coração da vida, no seu centro ardente. Abandonei-me. Todo o meu ser
se exultou, se elevou às suas maiores possibilidades, como incandescente,
acesso por uma força ardente. Não me senti aniquilada, vencida. (…) Era uma força
dinâmica, ninho de energias, em curvas elípticas múltiplas. E duma tal
serenidade na sua violência. E o seu dom foi um estado, composto e simples, de
plenitude, paz e liberdade. Era amor o vértice desse cone? Um amor desconhecido
à face da terra.”19
A contemplação, na
sua forma mais aguda, gera a identificação total entre objecto e observador. De
alguma forma a experiência extática permite o conhecimento do funcionamento da “máquina
do mundo”, nas palavras de Camões. A experiência nada tem de especulativo,
cientifico, dedutivo, como uma membrana que se pega ao objecto. O conhecimento é
um mergulho no interior da matéria, um mergulho só possível de ser feito em
amor: “Fora do amor só existirá um falso conhecimento. Truncado. Porque tudo
será feito para a possessão da sabedoria, não do saber.”20
e o eixo desse conhecimento não se situa nem na acumulação de experiências, nem
na acumulação de saberes. O eixo situa-se na esfera da transmutação do próprio
ser. Porque a iniciação, ao contrário de uma qualquer disciplina, visa a
transmutação ou o desbastar da “pedra” em excesso até à camada final do Ser. Não
existe nesta forma de Estar e de Ser (mais do que forma de pensar), nem o número,
quantidades que enriquecem apenas visualmente, nem a capacidade de relacionar
autores ou sábios diversos; a erudição não é tida em conta senão como mero
instrumento para a “solidificação”, “materialização” de uma experiência pessoal
e muito dificilmente transmissível. Existe em Dalila Pereira da Costa uma
meta-literatura num sentido apuradíssimo, na medida em que é a própria vida a
matéria-prima para a escolha das palavras. Uma meta-vida que se transforma em
meta-literatura. Uma metafísica que se torna física no sentido em que a experiência
extática procura ser transmitida com um rigor objectivo na escolha das
palavras, ao ponto de experiência e linguagem se confundirem:
“Entre tantos
outros, fica ainda o problema da linguagem: da possibilidade da sua comunicação.
Como transmitir um saber que se faz na esfera do indizível, do incomunicável?
E, no entanto, esse saber vem agora indissoluvelmente ligado à linguagem. Um
saber que parece fazer-se, não através da linguagem como meio ou analogia, mas
que surge como sendo ele mesmo a linguagem. Apreensível, não onde ele se
confunde com o pensamento, mas onde ele se confunde com o Ser. Mais que uma encarnação? Uma transmutação. E
então a pergunta: onde mergulham as raízes da linguagem, no mental ou no Ser
ele mesmo?”21
O jardineiro, sendo
aquele que transporta o jardim consigo, é aquele também no qual não há distinção
entre dentro e fora. Toda a Revelação é interna e externa, uma entrada numa
quarta dimensão na qual é possível que um acontecimento externo soe e ressoe em
simultaneidade, facto também observado por Jung nas suas análises com vista à
tentativa de explicação de fenómenos de sincronicidade:
“Ao observar a via de desenvolvimento daqueles que
silenciosamente e como que inconscientemente se superavam a si mesmos,
constatei que os seus destinos tinham algo em comum: o novo vinha a eles do
campo obscuro das possibilidades de fora ou de dentro, e eles o acolhiam e com
isso cresciam. Parecia-me típico que uns o recebessem de fora e outros, de
dentro, ou melhor, que nalguns o novo cresce a partir de fora e em outros, a
partir de dentro. Mas de qualquer forma, nunca o novo era somente exterior ou
somente interior. Ao vir de fora, tornava-se a vivência mais íntima. Vindo de
dentro, tornava-se acontecimento externo. Jamais era intencionalmente provocado
ou conscientemente desejado, mas como que fluía na torrente do tempo.”22
É possível a identificação total com o objecto que se
contempla a partir de uma experiência extática. Os elementos do jardim são mais
do que objectos iniciáticos, objectos que servem para iniciar o “outro” e para
serem eles mesmo condutores de iniciação na medida em que existe essa
identificação. Vida e Ser, unem-se em plenitude e, por via da palavra que, como
já vimos, também ela se pode situar na esfera do Ser, esta torna-se uma experiência
transmissível, ao ponto de poder provocar uma alteração de estado no próprio
leitor. Isto partindo do princípio de que o leitor entende o poder transmutador
de tais mensagens e a forma quase musical com que as palavras aparecem
escritas, uma espécie de mantras implícitos no ritmo de escrita, aliás, sendo
necessário ajustar o tom da leitura do leitor ao tom do escritor, de maneira a
que se produza o “efeito mágico” do estado poético, sendo sempre este estado
uma pré-figuração, um primeiro movimento, um gesto no Silêncio primordial para
se conseguir adquirir um estado místico. Dai que a linguagem, aquela existente
no domínio do Ser, seja sobretudo uma linguagem poética, encantatória,
hipnotizante. Como se a obra se propusesse ela mesma a abrir esses mesmos
portais que revela e ecoa:
“A Criação
Primeiro é uma semente redonda e dura, nó de condensação
terrível de energias, o coração duma espiral que vai girando, girando sempre, e
alargando.
E como vai alargando, vai subindo. E vai-se formando,
alargando o seu campo de força, naquela vibração lenta e segura, naquele
preservar; sem um movimento de desistir, naquela acumulação contínua de força.
Naquela cor sombria e brilhante de vida, rubra e terra, naquele sono, sonho de
vida, do centro do centro. Quando está formado, pronto, há aquele rebentar
brusco de laços, aquele fim sem fim.”23
Sendo jardineiro e jardim em simultâneo, porque
objecto e observador se anulam ou se unem num todo e estando as margens do
texto sempre tocando esse outro-mundo essencial, no qual não existe mal ou bem,
princípio ou fim, dentro e fora, a linguagem situar-se-á o máximo possível numa
frequência ou vibração inicial e é aí que se torna inovadora. Poesia, poema e
poeta não são vistos como separados mas sim sempre integrados numa análise
comum. Nunca se encontra a expressão “sujeito poético” pois o poeta é um ser
total, sua vida e obra não são dissociáveis, sendo pelo contrário a sua obra
reflexo da sua verdadeira vida porque “vida interior”. O poeta faz parte da
poesia e vice-versa. O poema é o resultado da “abertura” do poeta e o poeta só
o é porque, de algum modo, se “elevou” à frequência de um poema. E a vida
torna-se ou é, também ela, carregada da poesia: “A vida aparece como uma
celebração (e também como magia, como reencantamento) dual no seio da consciência
não-dual.”24
A Literatura surge
apenas como mediadora, entre a Vida. A utilidade da Literatura será então como
que um “amortecedor” do encontro entre o poeta e essa fonte, encontro
esse, que é sempre “um contacto
tremendo, estreme”25, perigoso: toda a
aproximação ao sagrado é, de alguma forma, um risco porque se entra em contacto
com um mundo essencial, pleno de potências e daí as proibições de “roubar o fogo aos deuses” e mais ainda de “roubar o fogo dos
deuses”, sendo possível apreender
(como segundo sentido nas palavras de Dalila Pereira da Costa) a poesia como acto
transgressivo, no sentido em que as fronteiras do mundo visível são
ultrapassadas até ao limite do não conhecido ainda, do ainda não visível, lugar
de onde a poesia espera ser resgatada, nesse acto heróico do poeta que supera o
risco trazendo o troféu intacto das esferas celestes. Será um acto heróico
porque o perigo é vencido, pois o transcendente move-se num plano que, embora
sendo subtil, sem espaço ou tempo, concentra, no entanto, a força dos primórdios,
a força integral a partir da qual o mundo visível, concreto e natural se torna
imanente, como a força que teria um parto constante.
É possível,
portanto, encontrar o poeta para lá da literatura, sendo as suas raízes as de
uma árvore invertida: a profundidade à qual conseguimos descer no seu entendimento
é equivalente à ascensão a um outro mundo onde reside a verdadeira vida e da
qual recolhe o poeta uma “vibração”26 que é também um “fervor”27 e no qual se dá uma renovação
tanto do poeta como do leitor, porque a criação poética se funde com a própria
vida, tendo por isso a capacidade da experiência da ressurreição. Nesse
sentido, a poesia aparece como acto sagrado conduzindo a uma dinâmica característica
do mundo celeste: a transmutação.
O poema, uma vez
tendo recolhido parte de uma sobrenatureza, torna-se uma espécie de “acumulador”, “uma reserva”28 de Vida. O valor de um poema não está no seu
contexto dentro da literatura nem reside no facto de poder ser literatura, nem
tão pouco ao nível do pensamento, ele está na vivência que permite acontecer,
vivência essa que se estabelece num “Contacto que é acto
de viver e conhecer: onde os dois não se diferenciam”29. Essa origem do poema num
mundo sobrenatural torna-o “intransigente”, inquebrável, de um corpo só e “resplandecente”30.
Curioso é o acto de
criação do poema, vindo de uma espécie de silêncio, de nada, de vazio, de
trevas, de despojamento, ele surge tal e qual o êxtase místico “quando das profundas das trevas ele se ergue em face
do poeta: ser vivo e vivificante”31 e, por isso, transportando
dentro de si uma das categorias do plano sagrado: a imortalidade como
duplo acto de transgressão, “matando-se a morte” por via de um regresso ao
jardim do paraíso num plano superior, repetindo-se o acto transgressor mas
desta feita com vista à reunião, não com a terra mas sim com o céu:
“O mundo está
perante o poeta, oferecido à sua adoração, como dom de Deus e seu mistério
inviolado. Mas oferecido a ele, como apelo e provocação. Porque é perante este
mistério que Deus o situa. Mais: é este mistério que Ele coloca perante o
poeta, como dom oferecido: pedindo que o decifre. (…) Porque, assim como ele
lhe surge, é apresentado, dado, assim por sua vez o poeta o deverá representar:
inteiro e íntegro; em si fechado, redondo. Como o fruto.
Porque ele é o que
pende da árvore que está no meio do Éden. E todo o acto de conhecimento poético,
sua transmissão, é o acto paradisíaco repetido. E o poeta, é a nova Eva,
assumindo o seu gesto, apresentando e dando o mundo inteiro resumido e
concentrado na esfera do fruto -- na sua
mão erguido ao alto.”32
A expressão poética
em Dalila Pereira da Costa surge, frequentemente, com dois elementos-chave para
a sua compreensão, mais até do que
decifração: ela surge-nos como Revelação ela mesma. O Jardim é expressão dele
próprio. A palavra surge como evidência, como um momento de um tempo forte, um
tempo sagrado:
“E depois de
protestar que me amava
a mim, enlaçou-me,
como só a hera
enlaça uma árvore.
E assim enlaçada
deixou para sempre
este mundo.”33
E surge-nos ainda dentro da mais alta vanguarda na
medida em que existe uma originalidade dos “começos” dos “princípios” visando
uma aproximação da fonte sagrada donde tudo brota. É nesse sentido que Rémi
Boyer nos diz que
“O iniciado no Jardim é um poeta, um fazedor --
palavra que define o alquimista --, um profeta do não-tempo, um teósofo. (…)
Nesse sentido, o iniciado do Jardim opõe-se ao profeta. É um hipo-feta,
palavra forjada por Rabelais para designar aquele que se recorda do que já
passou, do antigo. Mas este “antigo” é mais antigo do que o antigo, é original;
é por isso que ele é totalmente novo e vanguardista, tanto na sua expressão
como na sua impressão.”34
Conclusão
Procurámos com este
trabalho elaborar uma aproximação à linguagem de Dalila Pereira da Costa e
pareceu-nos que um caminho possível seria a utilização da metáfora do Jardim,
uma vez que no Paraíso ele nos surge com uma árvore central a partir da qual
correm quatro rios indicando quatro direcções do espaço. Poesia, Ensaio, Texto
Literário e Relato Realista de experiências extáticas ou místicas serão esses
quatro rios que se cruzam na obra da autora. A aproximação à sua linguagem, ao
seu modo de expressão, torna-se assim um trabalho delicado no sentido em que
facilmente se muda de “campo” e até
mesmo se confundem as diversas áreas temáticas. A Poesia troca os passos numa
dança com o Ensaio, o Texto Literário pode conviver em simultaneidade com um
Relato de uma experiência mística. Seria um acto pouco fiel à obra da autora se
se tentasse separar as águas diversas numa tentativa de dissecação dos textos.
A única forma de melhor transmitir o “timbre” e o “sentido” das várias mensagens é ir respeitando as
diversas melodias cruzadas porque só assim não se perde o poder encantatório da
sua escrita e se pode, ao mesmo tempo, seduzir o leitor para a sua obra. O
Jardim surge para além de um mero espaço simbólico efervescente em correspondências.
Ele surge-nos como um espaço sagrado e interior, submisso a uma presença
celeste e, em simultâneo, fonte de liberdade
poética. Os elementos do Jardim serão como diamantes de várias faces,
ora espelhando um símbolo, ora espelhando uma experiência, ora sendo metáforas
internas e intrínsecas do próprio jardineiro, confundindo-se muitas vezes a
existência da palavra da autora com um parto, nascimento súbito de uma
supra-realidade. A Poesia não surge como um efeito lúdico ou de prazer estético,
ela é reveladora no sentido em que abre uma diferente perspectiva sobre a própria
Vida. Não é uma mera variação do pensamento ou da sensação, é uma variação do
próprio Ser e é nesse sentido que ela pode surgir ao leitor (segundo a sua
receptividade) como fonte de transmutação da forma como ele aborda a sua Vida.
Isto porque o texto místico procura a raiz para justificar a árvore, o caroço
ou substrato para ir explicando o sabor do fruto. O movimento no Jardim é dúplice:
da contemplação à intuição apurada e da intuição apurada e mística para uma
outra contemplação muito para além da superfície, da pele, meramente estética.
Procurou-se então uma viagem pelo
interior do espírito da escritora, respeitando o seu tom e a sua intenção.
Cynthia Guimarães Taveira
1 Costa, Dalila Pereira da, “Os Instantes”; Ed.
Universidade Católica Portuguesa e Lello & Irmão Editores, Porto, 1999, pág.
29.
2 Ob. cit. pág. 29.
3 Paulo Samuel, obra citada, pág. 83.
4 Costa, Dalila Pereira da, Ob. cit. pág. 32.
5 Eliade, Mircea, “O Sagrado e o Profano - a essência
das religiões”, Edições Livros do Brasil, Lisboa, s.d., pág. 56.
6 Costa, Dalila Pereira da, Ob. cit. pág. 26.
7 Costa, Dalila Pereira da, “Místicos Portugueses
do Séc. XVI”, Lello & Irmão
Editores, Porto, 1986, pág. 199.
8 Ob. cit. pág. 188.
9 Delumeau, Jean, “Uma História do Paraíso - O
jardim das delícias”, Edições Terramar, 1994, pág. 27.
10 Costa, Dalila
Pereira da, “Encontro na Noite” Edições Lello & Irmão, Porto, 1973, pág.
19.
11 Ob. cit. pág. 80.
12 Costa, Dalila
Pereira da, “A Força do Mundo”, Lello & Irmão Editores, 1972, pág. 26.
13 Costa, Dalila
Pereira da, “Os Instantes”; Ed. Universidade Católica Portuguesa e Lello
& Irmão Editores, Porto, 1999, pág. 27.
14 Boyer, Rémi, “A
Tradição Maçónica e o despertar da Consciência”, Edições Arcano Zero, 2009, pág.
94.
15 Boyer, Rémi, Ob.
cit. pág. 34.
16 Costa, Dalila
Pereira da, “A Força do Mundo”, lello & Irmão Editores, 1972, pág. 35.
17 Boyer, Rémi “O
Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, edições zéfiro e Arcano Zero,
2011, pág. 93.
18 Costa, Dalila
Pereira da, “A Força do Mundo” , Lello & Irmãos Editores, 1972, pág. 77.
19 Ob. cit. pág. 71.
20 Ob. cit. pág. 128-
21 Ob. cit, pág. 23.
22 Jung C. G.; R. Wilhelm, “O Segredo da Flor de
Ouro - Um livro de Vida Chinês", Ed. Vozes, pág. 32
23 Costa, Dalila
Pereira da, “Encontro na Noite”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1973, pág.
66.
24 Boyer, Rémi “O
Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, edições zéfiro e Arcano Zero,
2011, pág. 117.
25 Pereira da Costa,
Dalila, A Nova Atlântida, Ed. Lello & Irmão, Porto, 1977, pág. 334.
26 Ob. cit. pág. 334.
27 Ob. cit. pág. 334.
28 Ob. cit. pág. 334-
29 Ob. Cit. Pág. 334.
30 Ob. Cit. Pág. 334.
31 Ob. Cit. Pág. 334.
32 Costa, Dalila
Pereira da, “Os jardins da Alvorada”, Lello & Irmão Editores, Porto,
1981, pág. 79.
33 Ob. cit. pág. 51.
34 Boyer, Rémi “O
Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, Edições Zéfiro e Arcano Zero,
2011, pág. 97.
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