terça-feira, 4 de março de 2014

Variações no Jardim de Dalila Pereira da Costa

 

Dalila Pereira da Costa viveu na cidade do Porto, em plena Av. 5 de Outubro. Viveu num palacete rodeado por um jardim. Esse jardim possuía várias espécies botânicas, uma pedra de um túmulo romano aí encontrada e ainda um pequeno tanque com peixes.

O jardim, construído a partir de elementos vegetais, tecido e podado por um jardineiro, opõe-se, de algum modo, à construção em pedra. O elemento é orgânico, crescendo, multiplicando-se e renovando-se por ciclos e desdobramentos dinâmicos de imaginação. A iniciação que lá ocorre obedece, naturalmente, não somente a um movimento espontâneo do Ser, como a uma ordem estipulada e impressa pelo próprio jardineiro. O jardineiro é o princípio e o fim de si mesmo, pois ao se erguer e movimentar em gesto espontâneo como uma planta, ele ordena, selecciona, colhe e recolhe a partir de um acontecimento selvagem porque imprevisível. Todo o êxtase, tal como as coincidências, possui o seu elemento de imprevisibilidade inscrito num fluir temporal mas, em simultâneo, aniquilando esse mesmo tempo.

O jardim só existe e só pode existir na cidade. No campo não há jardins. Ele nasce da cidade, a partir dela. É um espaço reservado no sentido em que tem limites. Um espaço interior, longe das instituições, longe do rebuliço. É um espaço de arte na medida em que ele é produto da mão e do gosto dos homens. É um espaço de contemplação, de meditação, de repouso, de soledade. É no jardim que pode haver a suspensão do tempo. Foi no jardim que Dalila Pereira da Costa teve a sua primeira experiência extática:

“Conhecimento duma realidade suprema e única, em si livre e acima de qualquer realidade outra terrena; concedida em alguns poucos minutos (quinze, vinte?), mas perdurando para toda a vida incólume. Vivida em Coimbra, num dia de Primavera de 1938, por volta do meio-dia, à sombra duma grande pittosporum dum jardinzinho fechado, silencioso e solitário da Casa dos Coutinhos junto à Sé Velha, então Lar do Sagrado Coração de Maria, para raparigas universitárias. (…) Então de súbito, uma intensa luz, tão doce, e que não era a luz deste nosso sol, me envolveria e tomaria: estava dentro ou fora de mim? O fora e dentro eram indiscerníveis, idênticos, num único inseparável todo; a luz também inseparável e indiscernível de paz, silêncio, liberdade e amor; em total despojamento, esquecimento do mundo (…)”1

A experiência mística não é vista como uma experiência gratuita inserida na contemporaneidade do quotidiano. Ela é sentida e vivida como fractura do próprio tempo, um intervalo qualitativo que permite a apreensão da “essência” platónica. O jardim em que respira é também um jardim interior como se, neste caso, tivesse sido possível interiorizar o jardim e o seu sentido. O espaço como fonte semântica à qual se pode aceder num primeiro momento de interiorização e num segundo momento de anulação desse mesmo espaço, como prossegue a autora o seu relato:

“Que nesse instante, por ele anulou, como conhecimento-vivência, toda a realidade rodeante. Seu fim, como lento abandonar, sendo sentido como queda nessa realidade terrena. Instante concedendo um conhecimento em certeza absoluta, irrefutável, da existência de outro mundo e vida possível, em separação total deste;  sem tempo, de antes e depois, sem espaço de aqui e além: como centro do mundo e da vida: eixo imóvel, dum mundo e vida que à volta rodam incessantes.”2

Esta primeira experiência, tida pela autora aos vinte anos de idade, é, a experiência fundadora de toda um vida e uma obra: “ A sua obra é, na verdade, o reflexo da sua vida.”3 Aqui o centro do mundo surgindo como múltiplo: o jardim como espaço exterior, como espaço de quietude interior, como condição intrínseca para o “acontecimento”, acontecimento que é também ele fundador da consciência religiosa, anunciador de um caminho ou via e ainda percursor de uma obra a realizar anos mais tarde. A partir da fenomenologia da luz e de toda a vivência em conhecimento da sua mensagem se estabeleceram as bases de um “olhar” sobre diversos vectores: a poesia, a antropologia, a literatura, a mística e a história de Portugal. Esta  experiência extática descrita traduz um estado do próprio ser, mais do que um estado transitivo do estado de espírito ou alma da escritora. Ela aparece carregada de sentidos:

“Não mais olvidando, como certeza primeira, de que existe neste mundo, em fé, esperança e caridade, esse outro mundo e vida, livre de problemas, anseios, incertezas,, livre de todo o mal. Como força central e criadora do mundo da vida e da verdade.”4

Aqui se estabeleceram as bases ou certezas da fronteira delimitadora entre sagrado e profano: “O homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do Mundo.”5, bases só possíveis de acontecerem com uma pré-disposição para a “transfiguração do mundo”, mas de um mundo natural, não artificial, uma vez que tais experiências místicas se situam num mundo do sensível e do extra-sensível:  “gosto desde os tempos de infância (…) de contemplação da natureza, e fácil união com os animais e plantas; fácil e sentida como necessária.”6

Inscreve-se assim, a autora,  numa linhagem mística portuguesa cujas principais referências estão exactamente na contemplação da natureza, esta presente desde as cantigas de amigo até a um Frei Agostinho da Cruz, e cuja vertente panteísta é, segundo a perspectiva da autora, o fundamento e simultaneamente a diferenciação do “viver” religioso português. “Talvez em nenhum outro povo da Europa, se tenha criado uma tão alta mística da natureza.”7 ou “Na mística portuguesa, a união com Deus será experimentada (…) preferentemente não no conhecimento do Ser absoluto, na sua essência, tal na mística renana, mas nesta mística da natureza, onde Deus é atingido através dos seres criados, numa experiência do Todo-Uno”8.

No Ocidente, o arquétipo do jardim está presente no jardim do Éden, jardim que pode ser entendido tanto no sentido material como no sentido espiritual, podendo participar nas duas naturezas uma vez que serve a sua contemplação como ponte ou passagem para um outro jardim, entendido no sentido místico: “Uns não querem ver nele senão uma «realidade corpórea», outros uma «realidade espiritual», outros ainda uma «realidade simultaneamente corpórea e espiritual»”9.  Esta ponte ou passagem é muitas vezes elaborada a partir do diálogo poético. A contemplação, para além de uma passividade despojada, pode surgir como fonte de criação poética, entrando-se num diálogo íntimo com os seres animados contemplados: “E as flores desconhecidas que me olhavam e eu olhava tantas. Serenamente orgulhosas no seu mistério”10 ou “Jardins misteriosos cheios de silêncio, contendo em si uma tal concentração de vida: como prolongado instante extático (…)”11. Observação que se torna difusa e torna difusa a linguagem: da descrição para a poesia, da poesia para o instante extático de revelação. Porque toda a iniciação comporta em si um estado “desperto”, não no sentido de uma maior concentração meramente erudita ou de exercício de memória mas sim um estado, nunca virtual, de descoberta de outros sentidos passíveis de apreender a realidade arquétipal, numa linguagem platónica, ou uma supra-realidade no sentido místico. Essa realidade da natureza não entra meramente nos parâmetros descritivos mas vai mais longe, numa atitude que entende essa mesma natureza como Revelação da obra do Criador. Porque, nesse jardim, ver é conhecer. Mas esse conhecimento, essa entrada directa na Revelação é, no caso desta autora, motivo para uma obra. Toda a Revelação é susceptível de transmissão por via da palavra como se a Imaginação Pura se tornasse carne pelo Verbo, sendo esta transmissão de uma dificuldade extrema:

“Porque sendo o conhecimento do êxtase um conhecimento de experiência, que só por esta se deixa apreender, o que é difícil é apresentar a outro (não explicar ou demonstrar, ou ainda menos definir), o que para o próprio se apresenta com esta marca da verdade: a evidência.”12

Facilmente o místico pode cair numa espécie de irrealismo terreno, isto se não possui instrumentos para que possa meditar as suas experiências e/ou transmiti-las. Facilmente esse plano-outro que pertence à esfera do Real e não à realidade aparente das coisas se torna vitima de si próprio, caindo numa espécie de isolamento e mesmo de obscuridade, afastando o místico para uma espécie de “loucura de Deus”, um louco que não o é totalmente. Dalila Pereira da Costa refere nas suas páginas auto-biográficas as suas origens celtas, irlandesas e escocesas, por parte do pai e, durienses e provavelmente romanas por parte da mãe, da qual

“teria recebido um princípio concreto de ordenação e racionalidade para a transmissão desses momentos de contemplação e união com a natureza: com revelação de seu secreto esplendor; e ainda, de breves e imperfeitas apercepções de outros mundos ultra-sensíveis.”13

É, em primeiro lugar, a comunhão com a natureza a chave que abre as portas da percepção, num despertar emergindo a partir da infância, em diálogos inocentes e necessários com os seres vivos num jardim interior que já se adivinhava. Iniciação e despertar caminham juntos numa via em que o despojamento e o silêncio parecem constituir, mais do que panos de fundo de um qualquer cenário ritualista, os verdadeiros fundamentos para a experiência estática, não podendo esta ser confundida com qualquer patologia psíquica quando nos encontramos dentro deste universo: “Assinale-se já a total incompatibilidade entre processo iniciático e terapia psicanalítica.”14

De portões bem cerrados, o outro-mundo só se torna acessível mediante determinadas condições, sendo o despojamento uma delas e o silêncio como outra face da moeda, não aparecendo como mero substantivo no discurso místico, mas sim como a outra face do despojamento material: o despojamento mental do ruído do pensamento. Um despojamento de tal forma apurado que o substantivo é obrigado a adquirir caixa alta, passando de silêncio a Silêncio. O Silêncio é um estado ele-mesmo: “Não é um caminho para o Silêncio, nem um caminho silencioso, é o Silêncio que está em caminho”15

O jardim é um espaço vivo, de criação e sobretudo de encontro. Encontro com o outro mundo e ainda, no caso desta autora, uma referencia metafórica para o movimento da metamorfose que o êxtase provoca:

“E como a verdadeira vida, ele tem o seu mais profundo dom, o seu mais inalienável carácter: a metamorfose. Assim, ao longo da nossa existência, ele vai-se modificando, e com ele o conhecimento que dele tínhamos: sem cessar revelando-se o mesmo e sempre outro. (…) Como semente que, oclusa e secretamente, perdura, cheia de possibilidades. (...) como se esta iniciação não tivesse inclusa necessariamente nela uma imediata realização. Esta, vindo mais tarde, através do tempo, mas sempre a partir desta iniciação, como ulterior germinação e ensino: como uma múltipla revelação”16.

Recorrentemente, a autora recorre a comparações com elementos vegetais para exprimir o valor ontológico das experiências místicas. A semente que germina e explode pode servir como sustentáculo para a interpretação da sua obra. A metamorfose da experiência extática não se situa ao nível do momento em que esta acontece, situa-se  a nível da relação que a autora tem ao longo do tempo com essa mesma experiência e isto tendo em conta que o vivenciado fora do espaço-tempo vulgares é uma potência de vida e em consequência uma potência de semânticas várias, de colagens a vários períodos da vida, de pesquisas em livros e pensamentos, de maturidades encontradas ou até de uma certa inocência reencontrada. A relação que se estabelece com a esfera do “ser” é uma relação dinâmica, criativa, num lugar que, embora fechado dentro da cidade o é aberto para o céu. A relação criativa é uma relação de verticalidade ou, nas palavras de Rémi Boyer: “A Iniciação no Jardim não rejeita de modo algum o desejo. Axializa-o”17, isto se partirmos do princípio que toda a criatividade tem como parte da sua fonte o desejo.

O Jardim é um espaço  em que os seus elementos são usados tanto na sua forma externa como na sua substância. Como se na obra de Dalila Pereira da Costa eles fossem sucessivamente virados, revirados e ainda o seu avesso fosse revelado como cópia exacta, em palavra e imagem, de sensações poderosas anunciadas e reveladas pelas forças do “alto”:

“Ela [A Virgem] vinha este e aquele dia, aparecendo-me em formas diversas, no sonho (que dizia: o mundo é construído como uma rosa -- camadas e camadas que é preciso atravessar para chegar ao seu centro, que será o centro de dentro e o de fora; (…) Mas primeiro fui a sua flor, como sua face verdadeira e oculta. Face que a revelava e anunciava, em imagem transposta. Para mais tarde ser decifrada”18

 A identificação com a natureza chega a ser corporal, carnal. Se bem que comummente sejam os místicos vistos como protótipos de carmelitas descalças, de eremitas longe do mundo, de cartuxos imersos nas horas canónicas, em Dalila Pereira da Costa não existe a negação do mundo. O corpo existe e está presente. A contemplação é um veículo para a união e essa união é feita em sensação, em corpo e alma, em espírito que se aproxima, rodeia e invade até ao âmago, até á totalidade do Ser:

“Tive subitamente a consciência duma presença, força oculta e oclusa no centro da terra, no seu âmago e à volta da qual se tinha acumulado a terra e o mundo, sucessivamente. Mas não idêntica à terra: separada. E separada de mim. A terra não era a sua emanação. Mas como seu invólucro, face. Esta força envolveu-me, cercou-me, lentamente primeiro, depois vertiginosamente. Como se eu estivesse no centro dum remoinho, dum nó de energias poderoso. Era uma força violenta, mas doce, quão doce. Senti-me não possuída, mas rodeada, abrigada. Uma força tão viva: senti-me como caída no coração da vida, no seu centro ardente. Abandonei-me. Todo o meu ser se exultou, se elevou às suas maiores possibilidades, como incandescente, acesso por uma força ardente. Não me senti aniquilada, vencida. (…) Era uma força dinâmica, ninho de energias, em curvas elípticas múltiplas. E duma tal serenidade na sua violência. E o seu dom foi um estado, composto e simples, de plenitude, paz e liberdade. Era amor o vértice desse cone? Um amor desconhecido à face da terra.”19

A contemplação, na sua forma mais aguda, gera a identificação total entre objecto e observador. De alguma forma a experiência extática permite o conhecimento do funcionamento da “máquina do mundo”, nas palavras de Camões. A experiência nada tem de especulativo, cientifico, dedutivo, como uma membrana que se pega ao objecto. O conhecimento é um mergulho no interior da matéria, um mergulho só possível de ser feito em amor: “Fora do amor só existirá um falso conhecimento. Truncado. Porque tudo será feito para a possessão da sabedoria, não do saber.”20 e o eixo desse conhecimento não se situa nem na acumulação de experiências, nem na acumulação de saberes. O eixo situa-se na esfera da transmutação do próprio ser. Porque a iniciação, ao contrário de uma qualquer disciplina, visa a transmutação ou o desbastar da “pedra” em excesso até à camada final do Ser. Não existe nesta forma de Estar e de Ser (mais do que forma de pensar), nem o número, quantidades que enriquecem apenas visualmente, nem a capacidade de relacionar autores ou sábios diversos; a erudição não é tida em conta senão como mero instrumento para a “solidificação”, “materialização” de uma experiência pessoal e muito dificilmente transmissível. Existe em Dalila Pereira da Costa uma meta-literatura num sentido apuradíssimo, na medida em que é a própria vida a matéria-prima para a escolha das palavras. Uma meta-vida que se transforma em meta-literatura. Uma metafísica que se torna física no sentido em que a experiência extática procura ser transmitida com um rigor objectivo na escolha das palavras, ao ponto de experiência e linguagem se confundirem:

“Entre tantos outros, fica ainda o problema da linguagem: da possibilidade da sua comunicação. Como transmitir um saber que se faz na esfera do indizível, do incomunicável? E, no entanto, esse saber vem agora indissoluvelmente ligado à linguagem. Um saber que parece fazer-se, não através da linguagem como meio ou analogia, mas que surge como sendo ele mesmo a linguagem. Apreensível, não onde ele se confunde com o pensamento, mas onde ele se confunde com o Ser.  Mais que uma encarnação? Uma transmutação. E então a pergunta: onde mergulham as raízes da linguagem, no mental ou no Ser ele mesmo?”21

O jardineiro, sendo aquele que transporta o jardim consigo, é aquele também no qual não há distinção entre dentro e fora. Toda a Revelação é interna e externa, uma entrada numa quarta dimensão na qual é possível que um acontecimento externo soe e ressoe em simultaneidade, facto também observado por Jung nas suas análises com vista à tentativa de explicação de fenómenos de sincronicidade:

“Ao observar a via de desenvolvimento daqueles que silenciosamente e como que inconscientemente se superavam a si mesmos, constatei que os seus destinos tinham algo em comum: o novo vinha a eles do campo obscuro das possibilidades de fora ou de dentro, e eles o acolhiam e com isso cresciam. Parecia-me típico que uns o recebessem de fora e outros, de dentro, ou melhor, que nalguns o novo cresce a partir de fora e em outros, a partir de dentro. Mas de qualquer forma, nunca o novo era somente exterior ou somente interior. Ao vir de fora, tornava-se a vivência mais íntima. Vindo de dentro, tornava-se acontecimento externo. Jamais era intencionalmente provocado ou conscientemente desejado, mas como que fluía na torrente do tempo.”22

É possível a identificação total com o objecto que se contempla a partir de uma experiência extática. Os elementos do jardim são mais do que objectos iniciáticos, objectos que servem para iniciar o “outro” e para serem eles mesmo condutores de iniciação na medida em que existe essa identificação. Vida e Ser, unem-se em plenitude e, por via da palavra que, como já vimos, também ela se pode situar na esfera do Ser, esta torna-se uma experiência transmissível, ao ponto de poder provocar uma alteração de estado no próprio leitor. Isto partindo do princípio de que o leitor entende o poder transmutador de tais mensagens e a forma quase musical com que as palavras aparecem escritas, uma espécie de mantras implícitos no ritmo de escrita, aliás, sendo necessário ajustar o tom da leitura do leitor ao tom do escritor, de maneira a que se produza o “efeito mágico” do estado poético, sendo sempre este estado uma pré-figuração, um primeiro movimento, um gesto no Silêncio primordial para se conseguir adquirir um estado místico. Dai que a linguagem, aquela existente no domínio do Ser, seja sobretudo uma linguagem poética, encantatória, hipnotizante. Como se a obra se propusesse ela mesma a abrir esses mesmos portais que revela e ecoa:

“A Criação

Primeiro é uma semente redonda e dura, nó de condensação terrível de energias, o coração duma espiral que vai girando, girando sempre, e alargando.

E como vai alargando, vai subindo. E vai-se formando, alargando o seu campo de força, naquela vibração lenta e segura, naquele preservar; sem um movimento de desistir, naquela acumulação contínua de força. Naquela cor sombria e brilhante de vida, rubra e terra, naquele sono, sonho de vida, do centro do centro. Quando está formado, pronto, há aquele rebentar brusco de laços, aquele fim sem fim.”23

Sendo jardineiro e jardim em simultâneo, porque objecto e observador se anulam ou se unem num todo e estando as margens do texto sempre tocando esse outro-mundo essencial, no qual não existe mal ou bem, princípio ou fim, dentro e fora, a linguagem situar-se-á o máximo possível numa frequência ou vibração inicial e é aí que se torna inovadora. Poesia, poema e poeta não são vistos como separados mas sim sempre integrados numa análise comum. Nunca se encontra a expressão “sujeito poético” pois o poeta é um ser total, sua vida e obra não são dissociáveis, sendo pelo contrário a sua obra reflexo da sua verdadeira vida porque “vida interior”. O poeta faz parte da poesia e vice-versa. O poema é o resultado da “abertura” do poeta e o poeta só o é porque, de algum modo, se “elevou” à frequência de um poema. E a vida torna-se ou é, também ela, carregada da poesia: “A vida aparece como uma celebração (e também como magia, como reencantamento) dual no seio da consciência não-dual.”24

A Literatura surge apenas como mediadora, entre a Vida. A utilidade da Literatura será então como que um amortecedor do encontro entre o poeta e essa fonte, encontro esse, que é sempre um contacto tremendo, estreme25, perigoso: toda a aproximação ao sagrado é, de alguma forma, um risco porque se entra em contacto com um mundo essencial, pleno de potências e daí as proibições de roubar o fogo aos deuses e mais ainda de roubar o fogo dos deuses, sendo possível apreender (como segundo sentido nas palavras de Dalila Pereira da Costa) a poesia como acto transgressivo, no sentido em que as fronteiras do mundo visível são ultrapassadas até ao limite do não conhecido ainda, do ainda não visível, lugar de onde a poesia espera ser resgatada, nesse acto heróico do poeta que supera o risco trazendo o troféu intacto das esferas celestes. Será um acto heróico porque o perigo é vencido, pois o transcendente move-se num plano que, embora sendo subtil, sem espaço ou tempo, concentra, no entanto, a força dos primórdios, a força integral a partir da qual o mundo visível, concreto e natural se torna imanente, como a força que teria um parto constante.

É possível, portanto, encontrar o poeta para lá da literatura, sendo as suas raízes as de uma árvore invertida: a profundidade à qual conseguimos descer no seu entendimento é equivalente à ascensão a um outro mundo onde reside a verdadeira vida e da qual recolhe o poeta uma vibração26 que é também um fervor27 e no qual se dá uma renovação tanto do poeta como do leitor, porque a criação poética se funde com a própria vida, tendo por isso a capacidade da experiência da ressurreição. Nesse sentido, a poesia aparece como acto sagrado conduzindo a uma dinâmica característica do mundo celeste: a transmutação.

O poema, uma vez tendo recolhido parte de uma sobrenatureza, torna-se uma espécie de acumulador, uma reserva28 de Vida. O valor de um poema não está no seu contexto dentro da literatura nem reside no facto de poder ser literatura, nem tão pouco ao nível do pensamento, ele está na vivência que permite acontecer, vivência essa que se estabelece num Contacto que é acto de viver e conhecer: onde os dois não se diferenciam29. Essa origem do poema num mundo sobrenatural torna-o intransigente, inquebrável, de um corpo só e resplandecente30.

Curioso é o acto de criação do poema, vindo de uma espécie de silêncio, de nada, de vazio, de trevas, de despojamento, ele surge tal e qual o êxtase místico quando das profundas das trevas ele se ergue em face do poeta: ser vivo e vivificante31 e, por isso, transportando dentro de si uma das categorias do plano sagrado: a imortalidade como duplo acto de transgressão, “matando-se a morte” por via de um regresso ao jardim do paraíso num plano superior, repetindo-se o acto transgressor mas desta feita com vista à reunião, não com a terra mas sim com o céu:

“O mundo está perante o poeta, oferecido à sua adoração, como dom de Deus e seu mistério inviolado. Mas oferecido a ele, como apelo e provocação. Porque é perante este mistério que Deus o situa. Mais: é este mistério que Ele coloca perante o poeta, como dom oferecido: pedindo que o decifre. (…) Porque, assim como ele lhe surge, é apresentado, dado, assim por sua vez o poeta o deverá representar: inteiro e íntegro; em si fechado, redondo. Como o fruto.

Porque ele é o que pende da árvore que está no meio do Éden. E todo o acto de conhecimento poético, sua transmissão, é o acto paradisíaco repetido. E o poeta, é a nova Eva, assumindo o seu gesto, apresentando e dando o mundo inteiro resumido e concentrado na esfera do fruto  -- na sua mão erguido ao alto.”32

A expressão poética em Dalila Pereira da Costa surge, frequentemente, com dois elementos-chave para a sua compreensão,  mais até do que decifração: ela surge-nos como Revelação ela mesma. O Jardim é expressão dele próprio. A palavra surge como evidência, como um momento de um tempo forte, um tempo sagrado:

“E depois de protestar que me amava

a mim, enlaçou-me, como só a hera

enlaça uma árvore. E assim enlaçada

deixou para sempre este mundo.”33

E surge-nos ainda dentro da mais alta vanguarda na medida em que existe uma originalidade dos “começos” dos “princípios” visando uma aproximação da fonte sagrada donde tudo brota. É nesse sentido que Rémi Boyer nos diz que

“O iniciado no Jardim é um poeta, um fazedor -- palavra que define o alquimista --, um profeta do não-tempo, um teósofo. (…) Nesse sentido, o iniciado do Jardim opõe-se ao profeta. É um hipo-feta, palavra forjada por Rabelais para designar aquele que se recorda do que já passou, do antigo. Mas este “antigo” é mais antigo do que o antigo, é original; é por isso que ele é totalmente novo e vanguardista, tanto na sua expressão como na sua impressão.”34


Conclusão

Procurámos com este trabalho elaborar uma aproximação à linguagem de Dalila Pereira da Costa e pareceu-nos que um caminho possível seria a utilização da metáfora do Jardim, uma vez que no Paraíso ele nos surge com uma árvore central a partir da qual correm quatro rios indicando quatro direcções do espaço. Poesia, Ensaio, Texto Literário e Relato Realista de experiências extáticas ou místicas serão esses quatro rios que se cruzam na obra da autora. A aproximação à sua linguagem, ao seu modo de expressão, torna-se assim um trabalho delicado no sentido em que facilmente  se muda de “campo” e até mesmo se confundem as diversas áreas temáticas. A Poesia troca os passos numa dança com o Ensaio, o Texto Literário pode conviver em simultaneidade com um Relato de uma experiência mística. Seria um acto pouco fiel à obra da autora se se tentasse separar as águas diversas numa tentativa de dissecação dos textos. A única forma de melhor transmitir o “timbre” e o “sentido”  das várias mensagens é ir respeitando as diversas melodias cruzadas porque só assim não se perde o poder encantatório da sua escrita e se pode, ao mesmo tempo, seduzir o leitor para a sua obra. O Jardim surge para além de um mero espaço simbólico efervescente em correspondências. Ele surge-nos como um espaço sagrado e interior, submisso a uma presença celeste e, em simultâneo, fonte de liberdade  poética. Os elementos do Jardim serão como diamantes de várias faces, ora espelhando um símbolo, ora espelhando uma experiência, ora sendo metáforas internas e intrínsecas do próprio jardineiro, confundindo-se muitas vezes a existência da palavra da autora com um parto, nascimento súbito de uma supra-realidade. A Poesia não surge como um efeito lúdico ou de prazer estético, ela é reveladora no sentido em que abre uma diferente perspectiva sobre a própria Vida. Não é uma mera variação do pensamento ou da sensação, é uma variação do próprio Ser e é nesse sentido que ela pode surgir ao leitor (segundo a sua receptividade) como fonte de transmutação da forma como ele aborda a sua Vida. Isto porque o texto místico procura a raiz para justificar a árvore, o caroço ou substrato para ir explicando o sabor do fruto. O movimento no Jardim é dúplice: da contemplação à intuição apurada e da intuição apurada e mística para uma outra contemplação muito para além da superfície, da pele, meramente estética. Procurou-se então  uma viagem pelo interior do espírito da escritora, respeitando o seu tom e a sua intenção.
 
 
Cynthia Guimarães Taveira




1 Costa, Dalila Pereira da, “Os Instantes”; Ed. Universidade Católica Portuguesa e Lello & Irmão Editores, Porto, 1999, pág. 29.
2 Ob. cit. pág. 29.
3 Paulo Samuel, obra citada, pág. 83.
4 Costa, Dalila Pereira da, Ob. cit. pág. 32.
5 Eliade, Mircea, “O Sagrado e o Profano - a essência das religiões”, Edições Livros do Brasil, Lisboa, s.d., pág. 56.
6 Costa, Dalila Pereira da, Ob. cit. pág. 26.
7 Costa, Dalila Pereira da, “Místicos Portugueses do  Séc. XVI”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1986, pág. 199.
8 Ob. cit. pág. 188.
9 Delumeau, Jean, “Uma História do Paraíso - O jardim das delícias”, Edições Terramar, 1994, pág. 27.
10 Costa, Dalila Pereira da, “Encontro na Noite” Edições Lello & Irmão, Porto, 1973, pág. 19.
11 Ob. cit. pág. 80.
12 Costa, Dalila Pereira da, “A Força do Mundo”, Lello & Irmão Editores, 1972, pág. 26.
13 Costa, Dalila Pereira da, “Os Instantes”; Ed. Universidade Católica Portuguesa e Lello & Irmão Editores, Porto, 1999, pág. 27.
14 Boyer, Rémi, “A Tradição Maçónica e o despertar da Consciência”, Edições Arcano Zero, 2009, pág. 94.
15 Boyer, Rémi, Ob. cit. pág. 34.
16 Costa, Dalila Pereira da, “A Força do Mundo”, lello & Irmão Editores, 1972, pág. 35.
17 Boyer, Rémi “O Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, edições zéfiro e Arcano Zero, 2011, pág. 93.
18 Costa, Dalila Pereira da, “A Força do Mundo” , Lello & Irmãos Editores, 1972, pág. 77.
19 Ob. cit. pág. 71.
20 Ob. cit. pág. 128-
21 Ob. cit, pág. 23.
22 Jung C. G.; R. Wilhelm, “O Segredo da Flor de Ouro - Um livro de Vida Chinês", Ed. Vozes, pág. 32
23 Costa, Dalila Pereira da, “Encontro na Noite”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1973, pág. 66.
24 Boyer, Rémi “O Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, edições zéfiro e Arcano Zero, 2011, pág. 117.
25 Pereira da Costa, Dalila, A Nova Atlântida, Ed. Lello & Irmão, Porto, 1977, pág. 334.
26 Ob. cit. pág. 334.
27 Ob. cit. pág. 334.
28 Ob. cit. pág. 334-
29 Ob. Cit. Pág. 334.
30 Ob. Cit. Pág. 334.
31 Ob. Cit. Pág. 334.
32 Costa, Dalila Pereira da, “Os jardins da Alvorada”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1981,  pág. 79.
33 Ob. cit. pág. 51.
34 Boyer, Rémi “O Discurso de Sintra - metafísica e Iniciação”, Edições Zéfiro e Arcano Zero, 2011, pág. 97.

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