domingo, 19 de abril de 2015

A Saudade e o Ser



Tudo é sempre uma tradução para a nossa própria linguagem. Pontos centrais de mil e um pontos de referencia que cada qual possui e cada qual, traduz todos os gestos, palavras, acontecimentos, para os seus modos, que são múltiplos de intervir em si próprio porque toda a tradução é também uma intervenção dentro de si próprio, ou para si próprio conforme o grau de sensibilidade e capacidade de aprendizagem. Nesse sentido somos o centro do mundo e num outro sentido estamos sempre como que desfasados de nós próprios. É no intervalo consciente entre essas duas realidades que se manifesta a saudade que, não tendo corpo é, no entanto,  uma forma de expressão que nos tende a elevar. A saudade está no centro de um mito português, mas um mito activo. O que se passou com os mitos foi que eles caíram numa espécie de teatralidade superficial. A saudade como cerne de um movimento mitológico (que só pode ir sendo descoberto lentamente, ao longo da vida) manteve-se em Portugal e gera, com maior ou menor grau de apreensão, de manifestação e de materialidade concreta, um mito activo. Só foi possível essa sobrevivência por via da filosofia, da poesia e da intervenção sobrenatural. É nesse sentido que ele pode ou não tomar a forma do verdadeiro teatro que, como se sabe, tem a sua raiz no mito. É quando esse teatro arcaico intervém na vida ou se manifesta, de alguma forma, que esse mito se revela profundamente activo. Como um fogo. A saudade é um fogo transmutante e, curiosamente, é uma palavra feminina. Sexuada. Basta ir à Antropologia para se rever o que é dito sobre o papel da sexualidade e do fogo...  logo se perceberá porque é que a saudade é o cerne de uma mitologia activa e não passiva. Todos os que, mesmo que inconscientemente alimentaram essa actividade, puderam, ao longo da História deste país, socorrer-se dos pontos de contacto de certas manifestações ou correntes espirituais ou culturais que nos eram alheias... mas são apenas instrumentos para que a saudade se possa evidenciar com maior clareza ao longo das épocas.
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

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