quarta-feira, 29 de abril de 2015

Tédio


Morro de tédio aqui. Todas as aldeias são cortinas na janela com olhos do lado de dentro. Todas escutam e exigem em surdina. Todas as aldeias são o perpétuo descontentamento de serem apenas olhos com cortinas rendadas, de bonitos rendados, de tão bonitos rendados, rendados lindos, vendando os olhos...
Morro de tédio na aldeia do mundo... morro devagar, obedecendo às cortinas, aos olhos por detrás das cortinas. Todas as aldeias estão desertas. Todas são apenas uma emergência. Todas são silêncios à espera que os sinos dobrem: pelo fogo, pela morte.
Todas são iguais, todas são o mundo.
Todo o mundo é um vasto tédio, infame quase, dessacralizado, ossificado, coisificado.
Só um corvo espreitou hoje. Voo directo em direcção a mim. Sei bem que não era um corvo. Era um símbolo apenas. Até os símbolos ficam apenas no tédio das aldeias vindos direitos a nós. Todos os símbolos são meros espelhos de nós. Todas as aldeias nem símbolos chegam a ser: são um desenrolar cansativo das virtudes e dos defeitos humanos.
Toda a paisagem é uma tela em branco. Serve só para isso no seu silêncio. Todos os mestres, Albertos Caeiro morrem, por isso Fernando Pessoa o matou tão cedo. Todas as paisagens não são novidade no branco que são. Todas elas são um novo início, um perpétuo e entediante novo início.  Todas as telas em branco somos nós, no nosso tédio criativo. Todo o tédio criativo é feito para calar as paredes demasiado brancas, toda a escrita é escrita para calar as não palavras. A eternidade do mundo consiste nisto. O amor, é impossível. Porque preenche demais, porque frustra a criação. O amor quere-se sempre pela metade... metade dele chega, porque quando vem inteiro mata. Ninguém quer amar porque ninguém quer morrer. Todas as aldeias são o tédio do amor pela metade. Todo o mundo fica pela metade, é sempre um gomo da laranja única, do fruto que não se prova. Nada se prova, no fundo, nas aldeias.  Tudo é provado como provação, nada é provado como amor. Todas as aldeias do mundo e todo o mundo que é aldeia, é a tela branca do início... na eternidade que imita, paralelamente a ela. 
Todos os gritos são iguais às aldeias no tédio que são.  Todas as palavras escritas são apenas um grito disfarçado de generosidade. A opção certa de não gritar e ir escrever é tão entediante como as aldeias. Toda a arte é um cocktail. Um tchim-tchim feito no tédio para não se morrer de tédio. O que interessa é não morrer: nem de tédio, nem de amor. E o mestre morre para que isso seja possível, morrendo em nós é porque é nascido em nós, numa profunda e entediante incorporação que é a morte dele para que todos os inícios sejam possíveis no desenrolar cósmico, e tendo tédio não possamos morrer, e tendo amor não possamos morrer. Todas as aldeias são a morte aparente da aldeia que já está morta, da paisagem pré-fabricada que nos eleva à nova criação.  A criação existe para calar o mundo que fala demais e cria de menos numa espécie de equilíbrio entediante.

(Mas extra a tudo isto tu vieste e disseste-me que o amor mata e revigora. É só de ti que tenho saudades. Tão transbordantes como do amor que me deste. É só de ti que sei dizer alguma coisa que não seja um tédio. É só no que me deixaste que posso conviver comigo. É só nessa prova de amor irrefutável, que guardei como um laço, que ousei um dia, dizer, que existes. És só tu que és a eternidade. É só a ti que guardo, que calo e não entrego, para não matar ninguém. )
(Cynthia Guimarães Taveira)

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