(fotografia de Maria do Céu da Costa)
Très Pinturas de Cynthia Guimarães Taveira
A propósito do encontro promovido
pela Ordem de Ourique (subordinado a temáticas debruçadas sobre o Futuro, a
Tecnologia e a Ciência) que aconteceu no dia 12 de Maio de 2018, no Mosteiro de
Santa Maria na Ajuda em Lisboa, foi-me sugerido que levasse três obras
pictóricas, à minha escolha e de minha autoria e que, de alguma forma, as
apresentasse ou discorresse sobre elas. Em simultâneo, nesse mês, de entre as
disponíveis, outras treze obras tiveram de ser escolhidas para uma exposição
patente num restaurante em Arruda dos Vinhos. Dei por mim a selecionar com
cuidado aquelas que iriam para um local e as que iriam para outro. Posto isto,
direcionei “As Tulipas”, “O Anjo” e “O Cisne” para a Ordem de Ourique pois
entendi serem elas amostras de um percurso pessoal indissociável do pensamento
e da filosofia, a par com uma “mística”, o que em rigor anda, igualmente, a par
e passo com a mesma Ordem e com os propósitos pelos quais foi criada de origem:
pensar e agir «portugalidade».
Embora não constem nas obras
símbolos tipicamente portugueses, como a Cruz de Cristo ou a Esfera Armilar, ou
bandeiras, ou Cordas Manuelinas, ou Caravelas, ou Barcas ou Corvos, ou ondas do
mar, o que é certo é que o percurso artístico, místico e espiritual da autora
não teria sido o mesmo se, desde muito cedo, por volta dos 13 anos, não tivesse
havido um encontro com a Temática da Portugalidade através do poeta Fernando
Pessoa, e poucos anos depois, dois ou três,
o encontro com a obra de Dalila Pereira da Costa. O que é certo é que
mesmo não estando visível pelos seus símbolos comuns, essa Portugalidade está
por detrás de cada obra elaborada. E quando dizemos de cada obra pictórica,
dizemos todas, sem excepção. A razão disto prende-se com a paralela e, ao mesmo
tempo, una, relação que existe entre a descoberta do País e a auto-descoberta
pessoal. Nestes tempos “modernos” e de globalização”, Portugal torna-se caso
raro nessa possibilidade dupla e harmoniosa, mantendo sempre em aberto (e contra
todas as probabilidades e expectativas) a possibilidade de ser este um país
verdadeiramente iniciático, com mortes e renascimentos, para quem se predisponha,
com a mesma abertura que o país releva e revela a todos aqueles que escolhe
(sendo o país iniciático, ele é que escolhe quem o procura…).
Assim, e começando pela obra “O
Anjo”, duas figuras esguias, procurando por essa forma fazer a ponte entre o
céu e a terra (base da identidade da espécie humana, muito mais do que um
simples acrescento genético ao chimpanzé), uma humana, outra angelical (com
asas visíveis), tocam-se em baixo, gerando, deste modo, o fogo. A razão pela
qual esse toque aparece em baixo, e não em cima, prende-se com a Descoberta da
Presença Celeste na Terra. Só assim, e não de uma forma meramente utópica ou
idealista, se pode dizer que essa Descoberta existiu ou, dito de outro modo, é
no coração carnal, aquele mesmo que bombeando o sangue consegue em simultâneo
pensar e sentir que essa Descoberta do Transcendente se faz. Sem ele, em profunda
abertura para o mundo e para o supra-mundo, nenhuma Revelação é acessível ou
possível, sequer. É, aliás, a presença do corpo que nos distingue dos anjos…
quando se dá essa Descoberta que, segundo as “linhagens espirituais”, pode ser
tanto um encontro com o “totalmente outro”, usando os termos de Otto Rahn, como
um “desdobramento do próprio ser” que assim entra em contacto com o seu lado
angelical (ou centelha divina, que todos trazem consigo) ou ainda, ambos os
casos ocorrendo no mesmo ser.
Essa descoberta ou Revelação ou
ambas, geram energia ou fogo que visa sempre a transmutação. Os adjectivos
desse fogo são inúmeros e dependem também de linhagem para linhagem. Falamos em
linhagem pois não consideramos que a espiritualidade se prenda única e exclusivamente
com “escolas”, indo muito além do pensamento teórico e filosófico devido a
inúmeros factores (genético, memórias genéticas, memórias de vidas passadas – o
caso de Dalila Pereira de Costa, por exemplo, história pessoal, escolhas
divinas, nascimentos com missões bem estipuladas, etc…) poderem estar presentes
no seu desenvolvimento e também não falamos de evolução por ser este um termo
Darwinista, não permitindo a deslocação qualitativa no espaço-tempo, sendo o
termo desenvolvimento mais integrador, tanto de movimentos cíclicos como
escatológicos.
O fogo que surge é, em altura e
em figura (esguia) semelhante aos dois seres que estendem a mão para o tocar e
para se tocarem, quase como se fosse um terceiro ser ou coluna/sustentáculo
desse mesmo desenvolvimento. Todo o diálogo se inicia deste modo, toda a
transformação é possível a partir desta evidência. Cada um dos seres tem uma
espécie de pregador em forma de flor, embora com cores diferentes. Cada um
possui uma forma de Sabedoria específica, pétalas falantes, revelações próprias
em abertura e diálogo. Vemos então que todo este misticismo se baseia em
movimento e em dinâmica, qualidade da palavra Vida, sendo a Morte, como paragem
ou inércia, apenas uma face da Vida.
De seguida temos a obra
“Tulipas”. Nela uma espécie de deusa consegue o prodígio do equilibro na mais
profunda assimetrias das tulipas que dela surgem. A tulipa, mesmo depois de
colhida, cresce, em água, cerca de um centímetro por dia, o que, para quem faz
arranjos de flores que duram vários dias, se torna candidato à pré-visão (imaginar qual o tamanho que a tulipa terá
daí a dois dias, por exemplo, e fazer um arranjo que conte com essa
característica da tulipa, não estragando a harmonia do total do arranjo),
torna-se, muito facilmente, para quem com flores trabalha, num símbolo ligado à
capacidade visionária. É também uma flor extremamente sensível à temperatura.
Abre-se muito rapidamente se retirada do frigorífico e volta a fechar-se se
voltar para ele. É, portanto, uma flor com grande sensibilidade para o
calor/fogo, mudando rapidamente o que também, para quem trabalha com flores,
remete para o futuro local onde a flor será instalada, se ao ar livre, se não,
se num local com baixa temperatura, se não o que invariavelmente compromete o
efeito que a flor virá a ter quando se faz um arranjo com ela. Assim, entre o
extremamente volátil no tamanho e na forma, torna-se uma flor que requer
precisão e sabedoria, uma segurança adquirida com os anos. Tal como o
equilíbrio dentro da assimetria, sem comprometer a harmonia, para além de ser
este um espírito Barroco, requer o conhecimento endógeno de uma certa geometria
sagrada e uma segurança total. Essa segurança remete naturalmente para a existência,
no ser humano, de um eixo fixo, permanente, exacto que está presente na
pintura, a azul: um vidro sólido que atravessa todo o ser. Só assim, é possível
o que, à primeira vista, parece ser impossível, a harmonia dentro da aparente
desarmonia com que as tulipas surgem. E surgem em movimento (embora estáticas
em pintura – a pintura não é cinema), ou seja, a ideia com que se fica é que
estas sete túlipas se movem, se transformam em torno de um eixo, o motor Imóvel
da Tradição, sendo em número de sete, “o ciclo completo, a perfeição dinâmica”
(em movimento), tal como está na entrada para a palavra “Sete” no Dicionário de
Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. O ouro que rodeia a figura, é,
por si mesmo, um símbolo de realeza… a rosa central prende-se com a Sabedoria,
naturalmente. Ou seja, no centro do centro, está a Sabedoria.
Por fim, temos a obra “O Cisne”,
que nos aparece por entre flores, quase como uma parede, obrigando-nos a fazer
com o olhar a separação entre dois planos: aquele que está mais perto de nós, e
esse outro, o do cisne dominado, digamos assim, por uma figura humana. Mas se
olharmos melhor, e podemos começar a análise por aí, o sol e a lua estão
presentes. Aliás, dois sois e uma lua estão presentes como verdadeiro pano de
fundo. Um dos sóis é claro, outro escuro e a lua é azulada… o mundo
crepuscular, onde céu e terra se fundem, visão difusa por entre as ramagens com
flores (rosas). O cisne como o que consegue não sentir nem frio nem calor, uma
certa pureza inocente nas suas alvas penas, cuja curvatura do pescoço é suave e
o seu deslizar pelas águas turbulentas do mundo mais suave e sereno ainda… o
local, por excelência, onde se descobre que o sol é negro e que o verdadeiro
sol é interior ou anterior à criação deste mundo turbulento a partir da
volatilidade das águas, turbulentas e instáveis, às quais se sobrepõe o cisne
deslizante, quase imperturbável na sua forma externa… um paraíso acessível.
Talvez até demasiado acessível… Se assim o é, porque é que a figura o “domina”
de alguma forma? Por vontade dupla de se fundir com ele e de o transcender, de
estar para além dele (mundo crepuscular, lembro, onde os opostos convivem em
fusão – o Regime Nocturno ou Místico lembrado por Gilbert Durand na sua obra
“Estruturas Antropológicas do Imaginário”, dando este “Regime” o nome a um
capítulo inteiro subdividido em vários. Um Regime, ou um estado apelativo, com
intenções de permanência eterna, mas, ainda assim, demasiado acessível. Lembro
a Confraria a que pertenceu Hieronymus Bosch, esse grande pintor e também visionário,
cujo animal escolhido para a assinalar era um cisne que, estranhamente, acabava
num prato, uma vez por ano, e comido pelos confrades numa celebração… estranho
rito este, associado a este sereno animal, capaz de deslizar em ritmo
permanente nas águas, símbolo de impermanência. A ambiguidade ritual é extrema,
integrando o animal no corpo ao ser comido e, em simultâneo, uma espécie de
“corte” com o símbolo, muito semelhante, aliás, ao “partir da cruz” de que
foram acusados os Templários… talvez porque, até o próprio símbolo seja algo a
transcender, tal como aquilo que o símbolo simboliza. Uma procura de liberdade total,
indo para além da noite e do dia ou do crepúsculo, como símbolo apenas da
verdadeira união entre sol e lua e não a união em si. Ou, dito doutro modo, a
procura do Sinal (algo com apenas um sentido) mas actuante no mundo, por já ter
percorrido a esfera da diversidade simbólica. Actividade só possível depois
dessa viagem pelos e nos símbolos. É, então, uma obra que enuncia a
complexidade iniciática e, ao mesmo tempo, anuncia uma saída do labirinto tão
presente nas ramagens cobertas de múltiplas rosas ou sabedorias (e não só uma).
Uma procura, portanto, da Unidade.
Certo é que a autora vê o que faz
de um modo e que os observadores a verão de outros modos. Isso é certo e rico. No
entanto, o acrescento de um texto é sempre bom numa época de “Imagens”
praticamente mudas e sem grande significado: estamos rodeados de imagens, de
manhã à noite, sem a sua dimensão da palavra (verdadeiro motor da imagem),
porque provinda da Consciência. A Palavra tende para a Consciência e pode
contrariar inconsciência ou subconsciência da Imagem.
Num encontro cuja proposta era a
de se conversar sobre o Futuro e sobre a Tecnologia Moderna, o contraponto será
sempre a Mão Humana, capaz de criar directamente a partir de uma matéria-prima
e de falar sobre o Futuro, mas de uma outra maneira. De uma maneira mais
artística, digamos assim.
Cynthia Guimarães Taveira