terça-feira, 30 de novembro de 2021

Olá, Fernando



Olá Fernando. 

Nunca vejo este dia como o dia da tua morte porque, por andares sempre vivo para a poesia, aconteceu-te a eternidade, como te aconteceram os poemas. Nas patuscas capelas da vida do possível conhecimento, actual, falta a tua chama. Como bem disseste, "nunca levaram porrada" e convivem bem uns com os outros, mordendo-se no pescoço sempre que podem, mas, tirando esse ambiente tétrico e enfadonho, a alegria foi desviada por um vírus e a tristeza do nevoeiro adensou-se e espalhou-se pelas almas que, mesmo que não o digam, levaram a "porrada" do destino que o vírus trouxe. 

Isto provoca uma espécie de ausência antes de tempo, como se já nos víssemos como moribundos, agindo por impulsos elétricos. 

Os mais afoitos, trabalham muito, como se não quisessem desligar-se da memória daquilo que foi a vida. Os mais tranquilos, fumam, como tu fumaste, e acompanham com o olhar, o percurso do fumo, que se ergue em espiral, adivinhando nela um qualquer caminho oculto e indizível.

Os sabichões do mercado possuem o traço em comum da total ausência de talento, coisa que te é absolutamente estranha e desconhecida. Noutros tempos, dos quais ainda te foi ofertada uma dádiva, a sabedoria vinha acompanhada pelos dons artísticos. Neste tempo, ela chega seca e espalmada como um enlatado, sem voos nítidos, nem triplos saltos o que nos leva a duvidar se será mesmo sabedoria ou apenas a encenação dela.

Fernando, o nevoeiro é de um cinzento esbranquiçado, algo que nos faz lembrar a luz, ainda que seja uma memória ténue e saturada de água, mas hoje, já não há nevoeiro sequer, excepto aqui onde vivo e tu também, como meu vizinho neste limiar entre a vida e a morte. Hoje há mesmo trevas. Mal se sai deste canto elas iniciam a sua aparição que coincide com o desaparecimento de tudo o que é ou iluminado ou luminoso. 

Fernando, andaste para aí a dizer que eras Templário e olha, agora todos são tu e todos dizem sê-lo, ainda que não façam a mínima ideia do que quiseste dizer com aquela história da iniciação directa de mestre a discípulo e pensem que basta um sonho para que estejam "prontos" para qualquer coisa que também não sabem muito bem o que é. 

Contemplar o panorama nacional provoca arrepios como um filme de terror (salva-nos alguma paisagem e as flores que teimam em nascer no momentos e lugares mais surpreendentes) às almas mais sensíveis. 

Lembras-te de ter escrito que ninguém sabia que alma tinha? Hoje todos dizem saber que alma têm. Afirmam a "personalidade" sistemática, mesmo que seja inventada por um momento. Lembras-te da tua misoginia? Às vezes, mesmo sendo mulher, chego a sentir o mesmo, com estas mulheres que aparecem com as costas muito direitas e o queixo muito levantado como se estivessem a enfrentar um touro sempre que falam. A atitude é a personalidade, sem margem para dúvidas e a personalidade é a alma, sem a sombra da ausência de certezas. Eles não estão melhores e os que não são eles nem elas têm o panache de uma dona de casa instalada na continuidade geracional. 

Fernando, adivinho-te pasmado com estas novidades que te trago e quase magoado também. Não foi deste Portugal que falaste. Foi d'outro. Um que até punha apóstrofos sempre que queria e estava livre de diplomacias ortográficas. Nós não somos nada livres. Só talvez uns resquícios do povo, ainda capazes de se rir dos padres e dos ricos na sua brejeirice solta e sem vigilantes suficientemente interessados por se tratarem apenas de resquícios dessa classe, considerada "inferior". 

Não tenho dúvidas de que caminhamos todos para o abismo deslumbrados com a alma que julgamos ter, ofuscados pela ciência e pela medida, e terrivelmente deficitários no que toca à verdadeira emoção. Somos como aqueles animais que mudam o comportamento quando se sentem observados. Quando é por Deus, ainda vá que não vá, porque Ele nos dá liberdade, agora quando é por analfabetos de tudo, o caso torna-se parecido com aquilo que aconteceu com as televisões: o nivelamento é feito por baixo. 

A baixa poesia é a constante e o sentimentalismo barato, aquilo que é mais vendido nos hipermercados da exposição pública, sobretudo em época pré-natalicía e não só. 

O patriotismo tornou-se bélico, militar. Os poetas deixaram de fazer sentido. É a velha teima da casta guerreira a querer afastar os sacerdotes, donos da palavra e dos dons dela. Confundem hoje o sacerdócio com um qualquer cargo eclesiástico e tomam-se de ares de monges guerreiros, quando não são nem uma coisa nem outra, excepto na sua imaginação povoada por guerras santas, mas sempre deserta de obras como a tua, com alicerces bem fixos no céu. Chega a ser patético, Fernando. 

Da política nem se fala. É inexistente. Tudo é negócio e negociável e quando algo não é, é morto a tiro, ou com bombas, ou com porrada (que ninguém leva) ou com a fome e os maus tratos. 

Fernando, isto está muito mau. Se não fosse o nosso segredo não sei o que seria. 

Adoro-te meu querido.

Volta a vista para o céu porque desta terra a única coisa que nos sobra é a paciência da lenta decadência. Volta os olhos para o céu, lá, onde tudo é belo e cheio de Graça.


Beijos enormes, da sempre tua

Cynthia



 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Fauna e flora

 


Prefiro esta parcimónia campestre a esta nova fauna da cidade acoplada ao carrocel das lojas que abrem e fecham à velocidade da luz. Insisto em manter uma integridade invisível aos homens, apenas captada pela lente celeste. O mundo, imundo, incorpora o corpos de gentes que só pedem e só se contentam com o mínimo e, pelo menos neste estado campestre, qualquer flor evoca a grande roda cósmica, invisível aos homens, mas visível para os grandes olhos dos deuses. Tudo, na capital, que já não é capital de coisa nenhuma a não ser dos dinheiros (e muito menos cabeça de qualquer Império), evoca o cansaço da ditadura da medida. O mensurável é o grande polvo com tentáculos gelatinosos pejado de ventosas que se agarram a tudo e que desconhecem o perfume das flores. Já nada me diz o brilho da noite das cidades que faz murchar as estrelas e evoca procissões de fantasmas cuja alma partiu há muito. Reservo para mim mesma a beleza como um presente, sinceramente merecido e não a desperdiço nas vielas da moda e nos sinceramente ignorantes de tudo. Permito que a beleza, força suprema da sabedoria, impere em cada tremeluzir do mar e retenho esses fragmentos luminosos nos meus pensamentos. A vanguarda mais ousada e arriscada é a de já não se ser daqui e passar por entre a gentes que nada são como se o nada fosse eu, enganando-as com a imagem de si próprias, não porque as queira enganar, mas porque está na sua natureza viver no engano. Suponho que herdei as histórias mais sublimes, impossíveis de contar a alglomerados de ossos que apenas esperam o Juízo Final com os braços sem carne cruzados sobre o peito onde não mora qualquer coração batendo. A fauna citadina está incrivelmente fraca enquanto se distrai com achados científicos que, de tão incontornáveis serem, se tornam muros onde esbarram e lhes tiram a liberdade. Prefiro construir, eu mesma, os meus muros de cristal, sensíveis ao toque de uma asa e ecoando pelo universo a musicalidade da carícia de um pássaro. Tudo definha excepto os meus sonhos que acompanham os estados do ser. E não há mão, tentáculo ou vontade que os consiga agarrar e aprisionar num qualquer conceito pronto a vestir. É trágico? É. Excepto a minha alma que é sublime e se eleva sempre que as asas se abrem. Já não tenho pena desta tragédia humana, apenas me espanto com a falta de capacidade que há para ver, para escutar e para reconhecer a beleza como a soberana e mais alta virtude que aos humanos é dada conhecer, se soubessem fazer e estar no silêncio, invisível aos homens, mas mansão absoluta e absolutamente dos deuses. 


domingo, 14 de novembro de 2021

A dádiva


 Sempre me deram livros. Desde pequena. Não é que fosse ou seja uma leitora compulsiva e todos soubessem disso. Não. Cheguei à conclusão de que é qualquer coisa de misterioso, como se o universo soubesse que os livros são objectos virtuosos e me concedesse a honra de os ter, vindos assim, sempre pelas mãos de alguém numa espécie de urgência ou de impulso constituído pelo destino. Pego sempre neles como dádivas importantes. Olho-os e digo: dantes não estavam cá, agora estão, porque sim. E há nesse sim, um infinito, um absoluto, uma verdade incontornável e palavras que avisam para nunca esquecer as palavras. As palavras das quais tantas vezes fujo por as pensar inúteis num mundo cheio delas. Presto atenção a esses padrões que surgem na vida. Não são repetições, são mais ricos do que isso. Neste caso, o padrão dos livros dados formando um luxuoso vestido para um luxuoso banquete de ideias, sentimentos, visões. Espanto-me com esta insistência do universo e penso-a seriamente como sendo uma oração, uma forma de resistência. Os livros dados são sempre dados na clandestinidade, são passados por entre os dedos da ignorância e da insensibilidade. Passam por esses dedos como uma carta mágica e como a carta de um mago e não de um ilusionista. Costumam vir em mão, mas também aparecem como uma carta na caixa do correio. Parecem dizer: "Escuta estas palavras". Um dia foi-me enviado um livro através de uma amiga. Alguém que ela conhecia soube que eu existia e insistiu com ela para me entregar o livro. São os próprios livros a insistirem em vir, por caminhos tortuosos e difíceis até ao seu palácio onde, por fim, repousam. Eles caminham porque são seres vivos compostos de palavras sempre-vivas tocados por mensageiros cujo rigor é semelhante ao firmamento girando em torno da terra. Sempre me deram livros. Não é que eu seja uma leitora compulsiva e todos saibam disso. Mas, os leitores compulsivos talvez sejam só isso e os livros saibam. Talvez eles queiram ser lidos e olhados, não como uma rotina, mas como um momento especial, uma festa, um banquete único no ano, com a atenção devida ao detalhe, com o silêncio devido aos seus próprios silêncios. Quando nos dão um livro há um rito implícito. Invisível. Importantíssimo. Esse rito, carrega o mundo às costas e, quando é entregue, o mundo voa como um pássaro livre que pousa no ramo mais alto da árvore de oiro onde a observação da paisagem devolve o sentido da vida e do mundo. É um rito de uma alegria imensa e o mais verdadeiro de todos. Porque é espontâneo. 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A imagem vívida


 

Há tempos que são de contratempos e, deste modo, os contratempos, estão a favor do tempo e não são contratempos porque fazem parte da natureza do próprio tempo em que se vive.  O verdadeiro contratempo é aquele que contraria o contratempo, aquele que se contraria a si próprio. Assim, um contratempo contém em potência a sua própria negação. No filme “Rapsódia de Agosto”, de Akira kurosawa, um casal de idosos é filmado vivendo as quatro estações, aceitando o fluir do tempo. As estações do ano sucedem-se naturalmente, são aceites universalmente. O contratempo desta época actual facilita o re-posicionamento das coisas porque se auto-anula. As memórias vívidas das quatro estações, são memórias-eixos com as quais se mantém a integridade numa época que é de pré-nascimento de uma nova Era e que se parece mais com o líquido caótico amniótico do que propriamente com a criança dobrada sobre si que dorme. O líquido é a actualidade, no que tem de indefinido, a criança é o futuro, no que tem de fresco e novo. No entanto, ela dorme, ausente, num sono reparador no líquido que a sustém. Talvez esta situação seja muito difícil de aceitar para quem se agita e faz parte do líquido indefinido. Contrariamente ao que se pensa, também do ponto de vista da criança que dorme, o espectáculo não é grande coisa. Ela apercebe-se dos movimentos do caldo que a envolve e semicerra os olhos olhando à sua volta num aparente sono profundo. Mas o seu olhar é tremendamente detalhista. Quase como se fosse composto por fotogramas únicos, pedaços apanhados em fragmentos sempre que os seus olhos se entreabrem. E essa colecção fragmentária é o suficiente para que possa ter um retrato geral do caos que a cerca. E regressa ao sono, esperando que as águas repressoras se libertem, sejam escoadas e se dissolvam na atmosfera. Uma vez questionada dentro do útero essa criança só revelará essas imagens fragmentárias que a impressionam porque não têm nada a ver com a sua natureza. Ou antes, com a sua sobre-natureza. Nesse estado, enrolada sobre si, ela encontra-se, como um ponto, à imagem e semelhança do centro da circunferência, entre a existência e a não existência. Os olhos permitem-lhe absorver a realidade que é, no imediato, confrontada com a unidade que a própria criança é. Trata-se de um confronto porque a indefinição múltipla é algo que a rodeia e que não faz parte dela. Kubric percebeu e foi mais além em “2001: Odisseia no Espaço”. A contemplação de um ser por nascer diz-nos mais do que a contemplação de uma caveira, até porque a contemplação de uma caveira não é, nem a contemplação dos ossos, na sua totalidade como técnica ascética ancestral oriental nem a contemplação de uma cabeça viva e faladora, como era a templária. Trata-se de uma queda num fragmento de osso e daí que ela tenha sido cistalizada por alguém que a esculpiu no passado nesse material. O cristal inerte e frio. O olhar, os olhos, dessa criança por nascer serão sempre um espelho do caos que a rodeia. Sempre que os olhos se abrem tememos a nossa própria situação num cosmos composto e nascido no devir. É desta forma que os sábios projectavam a própria imagem dos discípulos sem que fosse intencional. O discípulo via-se a si mesmo e fugia aterrorizado com a experiência de saída do seu próprio corpo de uma forma tão vívida.