quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Com título


 

Mas há coisas eternas
Como suaves recordações sem época
E delas guardo todos os sons e todas as cores
 
Nada permite saber o quão violentos foram
O quão desagradáveis se mostraram
O quanto implacáveis e cruéis se revelaram
 
Nada, não, minto
O coração tem um centro inexplicável
E pulsa como uma dança
E é o vulto que se esconde
O que Viu
 
Mas nas actas desta História
Constam testemunhas cegas
Outras surdas
E outras de coração morto
E nelas que aparecem nos arquivos
Escritos com palavras trocadas
As histórias erradas de uma história desconhecida...
 
 
O meu coração é a demonstração de um salto mortal em chaga
Uma reviravolta no ar quando tudo parecia ir em direcção ao abismo
Um voo súbito, inesperado, atento e fiel
 
 
A noite da alma que me impingiram não cobre as estrelas
Não apaga o caminho
Não torna coxo o caminhante
Não altera uma vírgula na página que foi escrita
 
E somente são vistos agora
Os profundamente desagradáveis e nauseabundos
Como escórias ininterruptas que não mudam a sua condição
Por falta de coragem, lucidez e de amor
 
A História paralela foi-me contada pelos anjos
Que não falaram
Mas que me forçaram aos passos 
Em direcção às palavras que calaram
 
E forçaram-me a voltar a face
E forçaram-me a ir em frente
 
Não queiram saber o que é esta vontade que não é a nossa
Que nos escolhe os passos
Que nos diz o inacreditável
A verdade mais improvável
 
É um susto
É viver constantemente em susto
Pela responsabilidade do sangue que circula nas veias
Pela autenticidade desses anjos que
Chegam a passar pelo meu corpo
A dar-me a mão porque a sinto
 
Há qualquer coisa nas palavras esotéricas actuais que não bate certo
É o facto de serem fórmulas matemáticas sem actualidade
Porque a actualidade verdadeira e não pré-formulada
É inesperada, absolutamente inesperada
Não é esquemática
Não diz coisas como “Não podemos olhar o sol de frente”
E outras barbaridades do género
 
A audácia do céu não se compromete com fórmulas
No diz que disse dos livros
Na vantagem da última palavra que é sempre a última cartada
Não, nada disso
A liberdade que se respira é total
O ar é feito de outro modo
Não há perdição
 
A bandalheira das fórmulas e dos sistemas
Permite a infestação do Corpo e o Espírito não desce
 
Desta História original ninguém sabe
Feita de retorcidos encontros
Feita de passos presos aos anjos
 
Se chorasse seria Ísis, choraria um rio
Se me risse seria a brilho de todas as estrelas juntas que há no universo
Mas não posso
Nem consigo
Nem me deixam
Nem eu quero
 
Nem tenho espaço para o sonho tal o tamanho da realidade que me impõem
O sonho aparece como uma fuga, uma alienação
A realidade imposta tem o peso de um sonho maior do que o meu corpo
 
Tudo é diametralmente oposto ao que se pensa que é
E há quem me acompanhe neste destino
Neste rigoroso destino
Neste fim do mundo
E me situe logo que duvido
E me esclareça logo que não veja
E me lembre o propósito
E inaugure em mim, sempre, uma Nova Era
 


(Cynthia Guimarães Taveira)

NIcho

 

Para além das capelinhas, este país tornou-se também no país dos nichos. “Nicho” é uma palavra engraçada porque nele, pode caber apenas uma pessoa, como cem ou mil, dependendo do número da população ou da temática a que se refere. Há livrarias só dedicadas à poesia e são normalmente apelidadas de nicho embora a poesia em si seja um imenso portão sobre o universo. As capelinhas estão normalmente dedicadas aos favores, os nichos são dedicados à exclusividade. O exclusivo é sempre um artigo de luxo. É algo que contraria o número. Dentro das capelas podem existir nichos, lugares onde os crentes se dirigem especialmente esquecendo, por instantes, a capela inteira. Um nicho é um lugar de fé e de concentração de forças. Um lugar íntimo, reservado, longe dos olhares dos frequentadores do culto apenas ao Domingo. Um nicho é um local onde se está bem, tanto a sós como acompanhado. Já a capela requer imensos jogos de cintura, frequentemente agradar a gregos e a troianos e também requer a separação dos crentes apenas no nicho, dos restantes que acreditam e estão apegados a tudo. Há situações na vida em que descobrimos que somos um nicho em nós mesmos. Estou certa que a maior parte das pessoas já se sentiu “anichado” em si, colocado de parte, auto-colocado de parte. Essas alturas são fundamentais para o nosso reencontro connosco e com os outros que podem ou não estar no mesmo nicho. O nicho tem qualquer coisa de ninho, estar anichado ou aninhado anda ela por ela. Não é bem o sótão que, como observou Gilbert Durant, é o lugar os amuos. No nicho pode-se estar muito bem, porque o nicho é o espaço interior, absolutamente protegido dos malvados, dos agitadores e dos capelistas. No nicho somos como somos sem responder a ninguém se não quisermos. Nem responder por ninguém se não quisermos também. É um espaço cheio de qualidade e com chaves de ouro difíceis de encontrar. Quem tem uma capela tem quase tudo, quem tem um nicho tem tudo e, no entanto, o nicho está dentro da capela como uma pinta do tau, só para indicar que o pequeno é latente e que, mais tarde ou mais cedo, deixará de o ser. As pintas pretas e brancas do Tau são exclusivos. Altos Cargos. Mestres em si próprios e de si próprios. O nicho é fundamental na civilização actual desde que nunca seja confundido com uma capela. Quando o é, deixa de ser nicho e passa a participar na roda louca da existência decadente desta época. E, ao fazê-lo dá por si a separar naturalmente as águas separando os crentes apenas num nicho, dos restantes que acreditam e estão apegados a tudo mas não são tudo como é a poesia-nicho avarandada sobre o universo. Os capelistas chateiam-se frequentemente com os anichados porque não suportam a liberdade e não fazem ideia do que é um centro ou onde ele se situa na circunferência. Possuem uma falha geométrica, uma espécie de cegueira que pode ser hereditária e/ou contagiosa se deixarmos... mas não deixamos. 

O doce mel da escrita

 


A escrita para agradar tem sempre as palavras bem medidas, os sentimentos regulados a tal ponto que parecem ser institucionalizados, senão mesmo, instituições eles mesmos e o comedimento do pudor entrincheirado entre uma ou outra observação ligeiramente provocatória em forma de gracejo infantil. Este tipo de escrita encharca tudo com a água do lacrimejo próprio das carpideiras de encomenda e amiúde aparece  emparelhada com a aprovação da modernidade, conseguindo vislumbrar nela os focos de luz necessários à esperança ainda que esta última seja coisa vaga e indefinida. Chamar o fogo, a carne e a vida pelos nomes não consta neste tipo de escrita soft-filosófica à procura de votantes e abençoada pelas multidões de analfabetos da alma. Tanto dó provoca a quem a alma luta para não se afogar neste mar de musas "afreiradas", tanto torpor fazem sentir a quem a insofismável verdade de se ser é incontrolável por entre escritas tornadas florestas negras de sofismas de uma ortodoxia da contemporaneidade. Este tipo de escrita revela o estado caótico da cultura, o mesmo demonstrado pela dança moderna, caos da alma tornado corpo com trejeitos de epilepsia vendidos como se de arte se tratassem. E há qualquer coisa de sujo nisto tudo, como hippies que não o foram na devida altura e que o são agora não lavando o cabelo por ser coisa natural que a poeira do cosmos, tão aplaudido, penetre os filamentos, outrora tentáculos extra sensoriais do corpo. Há uma toxicidade na novi-arte impregnada de visões obscuras e justificadas com aglomerados de palavras que, assim dispostas, parecem reclamar um sentido que não possuem. É uma novi-arte descalça no asfalto e não na terra batida de Woodstock, deixando os pés cinzentos, de betão, imóveis e mortos como as pseudo ideias que dizem transmitir. Há grupos de gente que seguem  este tipo de escrita que vai buscar aqui e ali laivos de cultura obtida numa biblioteca rapidamente, descontextualizando-a e tornando-a visível em teatros com gemidos demasiados audíveis, gritos e expressões aflitas ou dolorosas sem sequer lhes passar pela cabeça o que é a Melancolia de Dürer que não necessita de uivos, mas tão só de um livro que não se entende e de um céu que não se alcança. Parecem lesmas estas personagens da cultura instalada, verdadeiras lesmas que absorvem o fumo dos carros, as vidraças por lavar, as “avant-gardes” psíquicas que proclamam ter descoberto a pólvora. Os melodramas de literatura de cordel são hoje preenchidos com lobbys gay, lobbys doenças raras, lobbys climáticos, lobbys de cannabis misturados com a cocaína do artifício, o teatro do absurdo elevado à intelectualidade demasiado visível para o ser. Constrange-me esta criação feita em cima das mesas das esplanadas da cidade ou em traseiras de semi-teatros que é, sempre e sempre, chamada de “trabalho”, como se a criação fosse trabalho... são fornalhas de gente que há décadas se movem neste bailado contemporâneo sem eira nem beira e que vão espalhando coisa nenhuma ao longo do tempo porque, para eles, o mundo nasceu com eles e o passado é só um manancial donde podem retirar algumas ideias contrastantes, sempre contrastantes, com a mensagem, essa sim, verdadeiramente moderna e oca que dizem estar a transmitir. A minha alma enoja-se só de os ver a agitarem-se nos espectáculos nocturnos em qualquer jardim da cidade, ou escrevendo docemente o mel enjoativo que se entorna de forma pegajosa nos candidatos à cultura e os impregna de dessacralidade até à medula e os torna todos fraternos, iguais e, por isso, absolutamente nada livres, mas presos à “originalidade” que para eles está sempre à frente do tempo e não atrás dele.  Já não há ateliês, há mesas de trabalho, funcionários culturais, administradores de sentimentos imediatistas como é qualquer uivo de qualquer lobo à lua. A beleza perde-se e exclui-se porque não traduz, nem de perto nem de longe, a psicadélica desventura do desnorte e a arte, em vez de luz, a escrita, em vez de guia, torna-se o cinzento que é cor nenhuma, o branco sujo de uma aurora que nunca foi consumada, o diâmetro de trapézio irregular, a forma mais absurda de todas porque nem sequer a proscrita inversão dos candelabros permite. E pedem o nosso perdão sistematicamente como se só fossem crentes nele e nunca em algo que verdadeiramente os transcenda? Como se o nosso perdão nos salvasse, a nós que já estamos salvos por não acreditarmos nessa escrita que ensopa até as raízes, nessa novi-arte cujo valor é nulo. Não é a nós que devem pedir perdão, é a vós mesmos que se encontram nessa papa distribuída por várias tribos, mas ligadas à árvore-mãe do “avatar” das naves espaciais ou a um comunitarismo desnaturado como quem se instala no Alentejo a construir a sociedade perfeita cheia de compreensão, quando no que fazem, não há nada para compreender. O meu digestivo é a memória e o cheiro de outras artes. A escuta interna onde só encontro quem lá está e sabe absolutamente o que aqui estou a escrever e sabe que o que escrevo não é para agradar a ninguém, nem satisfazer, nem encher a barriga de doces, nem proclamar vencedores. Antes pelo contrário. É para desagradar aos não exilados. Para os expôr no pelourinho da Verdade, para os sentar num burro que anda para a frente enquanto os castigados andam para trás para ver se alguma coisa é reposta. É tudo mau aqui. Concreta e absolutamente mau. Como um exílio. 

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Os discípulos de Darwin

 


‌O conceito de evolução do ser humano assente na performance tanto do corpo humano como da moral nada tem a ver com a espiritualidade. Como já escrevi, convém, nas utopias, visualizar os resultados e os resultados desta utopia moderna são os das máquinas perfeitas e extraordinariamente próximas do ser humano. Em termos humanos, esse conceito é o do prolongamento da vida saudável o maior tempo possível e, no que respeita à moral, advogam-se seres humanos deslumbrantes no amor ao próximo, incapazes de um acto malévolo, respeitadores, até à exaustão, de tudo: da natureza, dos outros, de si próprios etc e tal. A utopia da evolução é esta. A espiritualidade, coisa arcaica, vai noutro sentido e visa a espiritualização da matéria ou a materialização do espírito, movimento duplo. O espírito, numa perspectiva evolutiva, nem existe. É uma espécie de mito arcaico fora de prazo e sem Autenticidade. A Alma, essa doida, ainda está por ser autenticada e resta-nos a matéria (em sânscrito a palavra matéria nem sequer existia...). De maneira que, a soberba da nossa utopia é pensar que a tecnologia acompanha e faz evoluir os seres humanos. Provavelmente, os vegetarianos, hiper-evoluídos no Amor ao Bicho (mas não às Plantas), acabarão por nascer sem dentes por estes já não fazerem falta. É uma evolução como qualquer outra...e uma consequência dos seres avançados moralmente. Aquilo que a Tradição aponta não é a ideia de "evolução", mas sim, a ideia de "desenvolvimento" e esta serve para tudo. Quando falam em "evolução" a ideia subjacente é sempre a ideia de conforto. Viver confortavelmente e feliz por o maior período de tempo possível. A pergunta que se faz é a seguinte: O que é que isto tem a ver com a imortalidade da alma? De que maneira é que uma vida extremamente equilibrada e confortável estimula essa imortalidade, mais ainda, a Libertação, na perspectiva Hindú? E não há resposta para isto porque se tratam de campos absolutamente diversos e perspectivas sobre o que é que andamos cá a fazer também absolutamente diferentes. Segundo a Alquimia, tão apregoada a torto e a direito, a fase Negra é Essencial. Numa sociedade perfeita, em total acordo com os variadíssimos itens de conforto, essa fase Negra nunca existiria, nem pouco mais ou menos e os homens viveriam numa perfeita utopia, julgando-se perfeitos sem nunca passarem pela morte nem pela putrefacção. É o que muitos já fazem actualmente quando apregoam as maravilhas tecnológicas como provas irrefutáveis de uma evolução que não é mais do que o desenvolvimento de uma ou de outra condição. A condição humana, por seu lado é muito mais complexa do que isso. O homem "mais evoluído" é aquele que a moral em vigência publicita e/ou aquele que possui ou faz o último grito tecnológico sobretudo quando esse aumenta o conforto dos seres humanos. O Extraordinário disso tudo é que tanto uma coisa como a outra estimulam a palavra chave dos homens soberbos: a competição, ou seja, Darwin no seu melhor, pai e mentor de taís visões "evolucionistas". Uma outra coisa que, a utopia moderna não suporta é a ideia de ciclo porque este, de alguma maneira, "atrasa" a evolução tão cobiçada. E não só atrasa como, em grande medida, a contraria. Porque, mais tarde ou mais cedo, essa "evolução" que não passa de um desenvolvimento, disto ou daquilo, acaba. De maneira que uns falam de alhos, outros de bugalhos. Os "evolucionistas" acabam por morder a própria cauda num eterno ciclo que negam e, quanto mais o negam, mais andam nele sem nunca conhecerem sequer a Ideia de Libertação, essa sim, outro patamar desta história toda que é ser-se humano. 






segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Não é cinismo



Uma das coisas que mais me assusta é a consciência política das pessoas que me rodeiam. Todos têm uma consciência política, desde os mais esquerdistas aos mais de direita, todos têm uma veemência na declaração dessa consciência que quase me intimida. Para quem nasceu com uma inconsciência política como eu (um rei bastava-me) chego a sentir-me o retrato vivo do não enquadramento. Para quem é assim, ao ouvir essas declarações vivazes e sempre pertinentemente demonstradas com lógica e abençoada com sentimentos altruístas, a sensação com que se fica é a de que são todos iguais e que, colocando os argumentos numa balança, têm todos o mesmo peso. É um dos problemas da Democracia, embora quem seja democrata convicto não pense ser esse um problema, mas sim, a mais alta virtude desse Regime. Um adepto do capitalismo em defesa do povo é igual a um adepto do socialismo ou do poder do Estado em defesa do povo. De tanto os ouvir já conheço todos os argumentos de trás para a frente e sei que isso acaba por dar um sono tremendo, mais cedo ou mais tarde, só possível de ser compensado com uma alienação bafienta patente nos filmes de acção onde, por instantes, participamos no e do heroísmo da personagem principal para compensar a carência de heróis que uma Democracia que se preze sempre contém. Da mesma forma que Humberto Eco falou da compensação que as séries e filmes sobre crimes e justiça trazem às pessoas que, naturalmente, se sentem injustiçadas, o mesmo se poderá dizer desta carência de heróis ditada pela democracia que, se se der o acaso de os ver nascer, imediatamente os reduz a todos a um denominador comum e igualitário, afinal a Mãe Coragem vale tanto como Hércules ou Ulisses. Os heróis somos todos nós porque a cristandade colocou uma cruz às costas de todos e todos somos iguais. Até no heroísmo. E daí que haja carência de heróis. A vantagem de D. Sebastião é de não ser herói coisa nenhuma porque perdeu a batalha, nem de ser mártir porque não salvou a pátria dos Espanhóis. A vantagem dele é de ser um Rei-mMessias, quem sabe Cristo Ele Mesmo (e para alguns, Cristo Ele Mesmo, era uma encarnação de Elias Ele Mesmo) que nos retira a cruz e a leva ele consigo com a vantagem de não necessitar de morrer porque isso já o fez. A forma como me sinto intimidada pelas pessoas com opiniões vincadas sobre política talvez advenha de sentir que, há medida que falam, esperam o meu apoio, o meu aplauso porque isso, de alguma forma, os tranquiliza: o número de apoiantes é muito importante em democracia. A qualidade deles, nem por isso. Não é de uma forma cínica que lá vou abanando a cabeça para cima e para baixo, qual cão de peluche de viagem de carro dos anos setenta, à medida que eles se exprimem numa musicalidade que já conheço bem, devagar, mais depressa, mais alto, descendo devagar, abrandar e, por fim, elevar. Não, não é com cinismo, é mesmo um tique de cão de Pavloff, a democracia a isso obriga e, quando o faço tenho a sensação de estar a bebericar um cocktail, entre o ligeiramente divertida, o ligeiramente distraída e o ligeiramente tonta devido ao Gin ou Rum ou o que quer de alcoólico que o componha. Depois, saio do bar, ainda a rir a a acenar e aproximo-me do cais. Aí contemplo o brilho da lua nas águas e assemelho-me a ela, tão bela "por se tornar na coisa amada", que é o seu sol. E aí, lhes respondo, porque nesse cais de embarque para todas as viagens possíveis já ninguém me pode ouvir e dizer que estou "tocada": "O que gostava mesmo era de um rei que nos tornasse a todos reis... Centros de nós próprios". A minha opinião política é inexistente. Em anarquias divinas não há opiniões políticas. Se dissesse isto aos meus interlocutores estes responder-me-iam que isso não era para este mundo. Pois não. Não é para este mundo tal como está. Todos têm uma opinião, mas falta-lhes o centro de si próprios que é o centro de todas as coisas, inclusivamente dos outros. Não, não é cinismo aquilo que sinto quando os ouço, é mesmo fazer meia para passar o tempo porque tenho a certeza de que o tempo passa como vento aos meus pés e que a minha cabeça não está nas nuvens, está acima delas, onde se pode contemplar o Sol, o astro-rei. Fazer meia é algo de muito sério. Por aqui, dizem-me que é um acto de resistência, coisa que me incomoda sobremaneira e ao que respondo: "Resistir para que o mundo me diga que devo resistir? Qual o sentido disso?"  Não, fazer meia não é resistir, é não existir. É muito mais forte e violento do que uma simples resistência. Não é desistir. É pura e simplesmente não existir. É negar a minha existência com todas as forças. É não pertencer a este mundo. É ser uma imagem sem profundidade. Uma mensagem sem mensagem. Um acto de total e absoluta loucura. É estar na mais profunda escuridão. Tal e qual D. Sebastião. Os resistentes estão em guerra, os que desistem, fazem parte dela também. Os não existentes, não existem. Não são nomeados, não discutem, não erguem a espada. Fazem meia, numa cadeira de baloiço, para cá e para lá, como o cão de peluche do carro dos anos setenta. Não existem. É por isso que sou Sebastianista. Profundamente Sebastianista. Porque estou com ele e como ele. A fazer meia. A alta costura é para os costureiros da vida. Fazer meia é estar ao sol na mais profunda sombra. 

Civilização


Nem na estátua da Liberdade acertaram. Se for descoberta, como ruína, no futuro, não direi por macacos como no filme "O Planeta dos Macacos", para por alguém que pertença a uma civilização como de ser, aquilo que vai encontrar é a associação entre a mulher e a luz da tocha. Nunca dirá, a não ser que leia uma coisas, que aquilo representa a liberdade. Os símbolos são contextualizáveis, é certo, mas, ainda assim, há certos limites que, uma vez ultrapassados, parece destitui-los de virtude. Aquilo que esta civilização deixa, e esta civilização é cada vez mais presente em todo o mundo, é o sinal, não o símbolo. O sinal da ruína pela ruína, da ruína em si mesma. As pirâmides ainda nos intrigam. Um aranha-céus não vai além da engenharia. Falta-lhe a conotação com a confusão das línguas. Os governantes não fazem ideia do que é um símbolo. Pensam apenas na bandeira, no hino ou na moeda (até isso se perde) como algo que invoca uma nação. Mas não vão além disso. A geometria não é mais símbolo e Pitágoras adormece com o tédio. Dizia uma amiga que as lojas antigas estavam todas a fechar. Isso é verdade, mas é mais do que isso, está tudo nitidamente a ser fechado. Há meia dúzia de gatos pingados que ainda estudaram umas coisas, os restantes são ignorantes. Absolutamente ignorantes. E mesmo esses gatos pingados não são suficientes para construir uma civilização com a classe que as antigas tinham. Um simples castro, com a sua abertura central é menos elementar do que qualquer Watson que não percebe nada do que se está a passar. Os homens deixaram de se guiar pelas estrelas para quererem conquistar as estrelas, o que é deveras anedótico. Incorporaram as geo-localizações e as localização no espaço e pensam que, assim, conquistam as estrelas. Ora, a natureza das estrelas é guiar, não é serem guiadas. O máximo que os homens conseguem é um passeio turístico pelo espaço, como já fazem, ou a mudança de uma civilização muito fraca para outro lugar, um transplante de doenças e de defeitos. Dizem que agora querem colocar aulas de poesia e de filosofia, disciplinas muito humanistas, nos cursos de ciências com vista a fomentar a criatividade dos nossos engenheiros porque assim terão ideias mais competitivas no mercado económico. Tudo ao contrário. Se algum engenheiro se apaixonar, de facto, pela poesia e pela filosofia, verá que o dinheiro não é o mais importante. A criatividade não tem nada a ver com a tecnologia, porque a imaginação, que é a sua base, não tem nada a ver com a tecnologia, esta última uma simples aplicação na matéria de uma ideia qualquer e nada mais do que isso, mas quando a burrice é muita, muito se faz por ela e em seu nome. Também não é por ler uma poesia que se fica mais criativo. A imaginação é um dom, coisa que uma cabeça engenhocas não consegue perceber por ver tudo como uma sucessão de causas e efeitos. O imediatismo, a simultaneidade é-lhes um universo desconhecido quando não está nas máquinas.  E um dom, que significa dádiva, veio de algum lado. De um lado que transcende os visados. Não admira que ande tudo doente e que a chamada cultura se pareça, também ela, cada vez mais com uma forma de engenharia e seja encarada como uma indústria e uma fonte de riqueza económica. Esta civilização está estragadíssima e não há nenhum engenheiro que a possa arranjar. Só os poetas a quem foi dada a poesia e os artistas a quem foi dada a Arte. Na árvore da vida, os engenheiros estão num galho muito inferior ao dos artistas.  Leonardo pintou a Mona Lisa e distraía-se com a engenharia. A Mona Lisa é sublime, as suas máquinas de guerra são atrozes. A Mona Lisa não tem preço, tem valor, as máquinas de guerra servem a guerra, como as máquinas hidráulicas servem para aproveitar a água. São coisas muito diferentes. E é por não se perceber essa diferença que a civilização está como está e é o que é: uma ruína que se julga inteira. 


sábado, 25 de setembro de 2021

Saudou


 Deste três passos. Paraste. Olhaste.

Deste mais dois passos. Paraste. Olhaste. Deste um e não te mexeste mais com o olhar fixo. Tão fixo. 

Quando se nasce com pouco, o mundo tem um sentido. Quando se nasce com muito, o mundo ganha todos os sentidos que lhe quiseres dar e que ele tem. Nascer no centro da rosa dos ventos. Ouvir, sentir todos os ventos como um diamante que os consegue traduzir em luz. Há lugares que são centros e que, quando se encontram com pessoas que também são centros, imediatamente todos os vendavais se levantam. O motor, primeiro devagar, depois mais acelerado, começa a girar, e nunca sabemos onde é que a sua força centrifuga vai parar.

Esta era a quinta do Anjo. Onde o Anjo pousou. Fechou as asas e contemplou o mar, nem demasiado perto nem demasiado longe dele. O suficiente para que pudesse existir um jardim que florisse para além do sal. O suficiente para que a tal rosa se erguesse por entre as pedras. A rosa é Portugal. O seu lado feminino e oculto, como uma discreta lua, atenta, luminosa e misteriosa. A rosa tem aquele vermelho profundo, quase negro, mas cuja densidade é a da própria essência do sangue.

Conhecemos todas as épocas deste território. E se erguemos uma pétala são memórias vivas que se levantam do sono. Até o sonho do futuro anda por entre as pessoas que não sabem nada do que se passa por entre elas. E por dentro delas.

Este país parece um soluço. Este país parece-se tanto com o nosso coração. Este país está no centro da rosa dos ventos. Conhece a distancia entre si e todos os infernos e todos os paraísos. Este país ouve os risos da ignorância e pressente os silêncios da sabedoria.

As palavras são penas leves e diz o povo analfabeto que o vento as leva. Mas são lidas pelas rochas que as fixam para sempre.

Oscila o Portugal entre a terra e o mar, as grutas que guardam o início e o céu luminoso com a estrela-mãe e com todas elas.

Portugal é para escavar com as mãos, e deixar o suor cobrir as rochas e as lágrimas soltas ao mar. Só assim se descobre, por entre as pedras, a rosa vertical, de longo caule, tão longo que toca o céu. A crença imensa dela é a certeza de uma autêntica origem.

O Anjo pousou aqui. No cimo da colina. Quieto e tão verdadeiro como a rosa imaginada pela rocha. O anjo Saudou a Saudade. 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Mais um diário do Mundo Moderno

 


Dou por mim na infatigável manutenção da liberdade interior por ser a única que nos resta. As sementes dos anos 2011/12 cresceram apropriadamente. Vi-as todas a passar diante dos meus olhos e em várias secções fabris. A primeira da qual me dei conta foi a do ódio à sabedoria. Lembro-me de deixar os atentos com laivos de raiva sempre que era indicado um livro, uma ideia. A partir daí foi tudo. A pouco e pouco, o mundo que conhecera e no qual falar sobre o que nos ia pela alma, tornou-se cada vez mais apagado. Todos estes sintomas de medo, retaliações, impotência, insegurança, experimentei-os antes que se tornassem monstros gigantes perpetuados por ideologias super-novas com raízes em guerras arcaicas, tirânicas e titânicas anteriores à nossa Era pós Cro-Magnon.

Talvez ainda não se tenham apercebido das novas gerações que aí andam. Criadas a telemóvel, num mundo virtual onde podem ser tudo o que querem, habituaram-se como mestres ao dom da dissimulação. Estão preparadas para um mundo infernal. Descem facilmente ao submundo e regressam impecáveis e bem penteados. Nunca fui muito apocalíptica. Sempre afastei essa ideia do espírito, no sentido de uma Revelação que desoculta a imensa guerra mundial. Hoje, perante os factos, já não sei. Tenho pena de cá quem fica por desconhecerem outras facetas benignas da dimensão humana que não estas, todas elas atrozes. O mundo foi invadido, literalmente, por demónios que andam, umas vezes, ombro a ombro com os seres humanos, incorporam-nos outras, e vão vencendo sempre. 

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Somos

 


A nossa sintonia é a dança

De uma serpente de fogo

De uma labareda sinuosa

Somos animalescamente

E humanamente

Deuses. 



Oportunidade




OPORTUNIDADE:
Vendo a tela que se encontra em baixo, de autoria de Cynthia Guimarães Taveira, intitulada, "O Ovo" pela módica quantia de cinco mil euros. Os interessados podem contactar-me pela caixa de comentários. E assim vai o mundo...
  
 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Real

 


Na noite passada sonhei que alguém, que mal conheço, tinha dito que tinha almoçado uma comida da qual nunca tinha ouvido falar, “ruelfa”. Acordei, estremunhada e escrevi num bloco a palavra. Procurei no Google e nada. Há coisas que parecem não ter sentido nem nos sonhos nem naquilo a que se chama vida concreta. Comprei o Expresso e lá dentro vinha uma entrevista a Hervé Le Tellier, um jornalista e matemático com sintomas de ateísmo que pergunta se temos provas de que este mundo é real. Apeteceu-me responder-lhe que não é tão real como pensamos, mas que tem a sua parcela de realidade, se assim não fosse estava fora da realidade o que é impossível. Tal como o almoço do vagamente conhecido há-de ter a sua parcela de realidade nem que sejam as letras juntas que dão a palavra “ruelfa” e onde pode caber tudo, desde cebolas caramelizadas a pargo cozido. Muito provavelmente aquilo que me chamou a atenção no sonho não foi o mais importante. O nome do prato não interessava, mas sim o facto de ele ter almoçado. Ironicamente a pessoa que conheço vagamente tem vagas ligações à filosofia e o almoço, neste caso, trata-se se uma comida substancial, para alguns, a refeição mais importante do dia levando mesmo à dispensa de jantar. Lembrei-me da Bíblia, e do livro com sabor a mel, ardente, porém, no estômago, dado a Ezequiel e a João, o Apóstolo. Este fogo estomacal tem a ver com o estado alterado de consciência, induzido por drogas ou não, “ao natural”, como costumo dizer, mas aparece como alimento na Bíblia: um livro doce ao paladar e amargo no estômago fazendo oscilar os humores do fígado, alimentado por ácidos, revelando os efeitos das Palavras de Deus.  No mesmo jornal, o Expresso, li hoje de manhã um artigo de um psiquiatra, José Gameiro, que conta a história de um paciente perdido em terras de África e que acaba por perder a mulher que o deixa, porque ele se tinha esquecido de que ela era Antropóloga e que, por causa disso, conhecia os costumes da tribo com quem ele iria contactar e que passavam pela partilha do leito com uma das mulheres da tribo em jeito de oferta.  Os planos cruzam-se e nem sempre são uniformes. Em ambos os casos o conhecimento provoca alguma amargura e, no entanto, a Luz que ele traz parece rematar as histórias. O alimento, ou conhecimento predominam sobre a amargura, ao contrário de Hervé Le Tellier quando diz frases como “estamos programados para morrer”, como se fôssemos computadores ou esta, “Temos esperança porque necessitamos de serotonina e de dopamina”. Esta visão puramente materialista das coisas obriga o matemático a encalhar num beco sem saída e, a única saída questionável diz respeito à realidade desta existência. Questiona o autor se, quando bebe café, estará mesmo a beber uma café e se o café e ele são algo de real. A leitura de Fernando Pessoa talvez o elucidasse: tudo é mental, no entanto, tudo é, faz parte da realidade não a preenchendo na totalidade. A Antropóloga previu (e não antecipou como hoje se diz) o comportamento do marido porque conhecia os costumes da tribo e, provavelmente, conhecia o marido que tinha e reagiu em conformidade com aquilo que lhe ocorreu na mente antes mesmo de acontecer, deixando o marido incrédulo. Mentalmente o facto estava consumado na cabeça dela. Tinha a sua parcela de realidade e foi o suficiente para agir, pegar nas malas e ir-se embora. Falta-me revelar o essencial:

Há uma semana atrás tive um sonho que ontem se tornou realidade e a noite passada voltei a sonhar com a mesma personagem, desta vez, alimentado por “ruelfa” e acabei por escrever esta história. Os acontecimentos de ontem foram tal e qual aquilo que tinha sonhado a primeira vez. O segundo sonho provou que a personagem tinha “recebido” o meu alimento mental e se tinha comportado exactamente como tinha previsto. Ruelfa, é portanto e, neste caso, o alimento dos sonhos e que há nos sonhos. Onde fica a realidade no meio de tudo isto? Em toda a parte. Até porque ambos, sonhador e sonhado, recebemos exactamente o mesmo alimento mental. 

domingo, 19 de setembro de 2021

Paisagem

 


Colecciono paisagens,

mas se fossem só paisagens,

seriam postais perfeitos

das perfeitas viagens que não fiz.

São antes patamares a que assomo,

deixando as folhas douradas

caídas na imensidão do cosmos

e em cada um deles, outra asa

mais um sonho e um desejo.

Não estranho estas avenidas

que flutuam entre níveis,

e o imperturbável rio

curva sem engano,

perfeito na sua alma e

espelha a minha quando diz

desaguar na fonte mais acima.


(Cynthia Guimarães Taveira)







sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A sopa


 

A monitorização veio em substituição do olho que tudo vê. É uma opção como qualquer outra, mas não deixa de ser uma opção dentro daquilo que ao ser humano é dado a optar. O descontrolo total é sempre a moeda de troca do controlo total. Ao segundo segue-se sempre o primeiro. Isto no campo humano e a marcha do mundo é descendente neste momento. Ainda há pouco cá em casa, alguém me disse: "Se não comes a sopa vais para o Afeganistão". E comi-a toda. Mesmo sabendo que vivo no descontrolo total é preferível este último ao controlo total. A vizinha deu-me uma couve pela manhã e à tarde fiz-lhe um bolo de limão com cobertura de chocolate de ananás. Neste caso não houve nem controlo nem descontrolo. Quando nos apetece damos coisas uns aos outros. Os apetites são aparentemente descontrolados, mas existe a ordem inaparente, esta última muito mais de acordo com o olho que tudo vê do que com a monitorização moderna. Vive e revive na justiça e não obriga à separação das águas porque são as águas primordiais donde surgiu toda a ordem e toda a divisão. 

Faz parte


 A interiorização do exterior faz parte. Talvez aquilo que mais custe é a violência do exterior. Custam os embates. Dizem que é com a realidade, mas é apenas com uma parcela dela. Uma das piores violências é quanto nos mostram o quanto não nos mostram. Como camadas de creme em cima de um bolo menos bom. Essa parte da realidade diz-nos sempre que não são como nós, esses outros. Nunca apanharam nem frio nem chuva por nós. O Amor é só isso. Sermos capazes de subir uma montanha com chuva gelada por alguém. No momento certo. O Amor sabe sempre qual é o momento certo. Tudo o que não for isso, é violento quando revelado. E quando não é estéril, é doloroso. As gazelas sobem as montanhas com vista a ter uma melhor vista. O enamorado espera tudo e não espera nada. Atira-se à viagem num movimento cego. É nessa cegueira que tudo vê.  O Amor tudo clarifica. 

A casa carregada

 



Um dia vieram cá a casa, por convite, e observaram as coisas. Deram com um cantinho com velhas cartas de tarot já com os cantos gastos. Observaram que estavam "carregadas" o que deve ter sido por terem, exactamente, os cantos gastos... Daí passaram para toda a casa que estava muito "carregada" com objectos, livros e quadros originais feitos por mim. Evidentemente que a casa estava "carregada" e continua. As pinturas, os livros, os objectos não são transparentes e etéreos, carregam as paredes e as estantes e as memórias. Se eu quisesse uma casa nada "carregada" pintava tudo de branco, dispensava os livros e as pinturas e nunca me teria distraído a lançar cartas de tarot para passar o tempo. A panóplia de observações sobre o nosso "estado" com aquela expressão crítica é que se torna deveras assustadora. Uma casa carregada de vida, com animais, gatos e cães e vivências é motivo de observações desprovidas de sensibilidade provindas de "especialistas" da alma. A carga espírito+psicológica analítica é-me estranha embora seja alvo dela frequentemente. Os texugos aparecem e começam a escavar à procura de "defeitos", de elementos que comprovem o seu pré-conceito e encontram sempre uma base de sustentação, nem que sejam as cartas de tarot com cantos dobrados. Por aqui, têm muito por onde pegar, desde a imaginação incessante revertida para as telas, até ao aglomerado de flores que existem pela casa, passando por milhares de livros que nascem como cogumelos numa floresta olímpica e objectos idiotas como sejam caixinhas, frasquinhos, copinhos, taças etc, mas cuja idiotice é indispensável a quem "transfere" um pouco da sua alma para os objectos, tudo isto é um maná para a crítica especializada. Um dia, vieram cá a casa dizer que eram muito cristãos. Essa também aconteceu e fizeram ver que achavam perfeitamente natural que alguém queimasse uma estátua de um buda em nome de Cristo. A idolatria que constitui este gesto é a chamada idolatria máxima quando atinge o seu maior expoente. Ainda tentei explicar que o buda de madeira era apenas um objecto e apontei para a estatueta de Xiva numa das prateleiras, para as de buda noutras, para "chaves da vida" egípcias trazidas dessa terra, para os ícones, para os dois cristos, um em pedra outro em barro que frequentam a sala e fiz a revelação chocante de que eram apenas objectos dos quais gostava e que me remetiam para as filosofias e as religiões, uma espécie de companhia intelectual e sentimental. Em vão. Em vão porque para essa pessoa, a idolatria só podia ir num sentido e, nesta casa, só deveriam existir "marcas físicas" do cristianismo. Nada mais. Na verdade, essa pessoa, acabou por ser o autor de um dos actos menos cristãos a que já assisti na vida... Já dizia o professor Feijó que a "especialidade conduz inevitavelmente ao crime". E a idolatria, a verdadeira, não é outra coisa senão isso. O especialista da alma que observou o baralho, os objectos, as pinturas e por aí fora, vinha "carregado" de preconceitos que atirou para cima das pessoas que aqui vivem e saiu "leve" com a sua consciência tranquila, sem a mínima consciência do que tinha dito. Saiu leve como uma pluma. Afinal, tudo é mental. Mas houve qualquer coisa de ridículo nessa saída. Parecia um rei que ia nù carregado de preconceitos no dorso. Uma espécie de burro de carga emproado e empoleirado na sua sabedoria. Parecia, porque não afirmo nada. Talvez fosse um gênio e eu não o soubesse e talvez a sua casa fosse branca, sem estantes, sem flores, sem animais, sem vida. Talvez fosse o fantasma de uma casa. A casa mais "carregada" do mundo.  



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Eu dou-te o arroz doce

 

   A doce crítica à crítica pura e a crítica pura à doce crítica

Imbuídos de espírito dos novos ares de uma época aquariana e dissolvidos em New Age, mesmo sem o saberem, disparam, com incrível doçura, uma delicada crítica à crítica pura quando esta última se afasta de tal espírito nas suas formulações. A crítica doce à pura crítica, surge como uma carícia no rosto, um sorriso oscilante entre o paternalista e o condenatório, rematado com reticências quando escrito ou com um silêncio duro quando dito. A doce crítica à crítica pura nunca é  abrasada, inflamada, ardente. Parece-se mais com um copo de água fria despejado lentamente na inflamada língua porque nunca chama os bois pelos nomes. A doce crítica é anti-tourada e, como tal, prefere a extinção dos touros à tourada engalanada com plumas e rendados vistosos por ser demasiado cruel para os bichos e, apoiada na ignorância, ela surge com a simplicidade dos que alegam ser simples da maneira mais vistosa possível. Os bois não devem ser chamados pelos nomes, isso cria demasiado estrondo nos seus ouvidos simples preparados apenas para os passarinhos e para as borboletas. Essa doce crítica fica encantada quando pode manipular. Mas docemente. Nunca choca embora, subliminarmente, haja uma crueldade que não se encontra na crítica pura de coração grande e que se importa, de facto, com a extinção dos touros. A doce crítica aparece sempre com muita luz e muita paz e um sorriso tranquilizador. Uma aura de santidade desejada é desenhada acima das palavras agregadoras de pessoas à sua volta. A única crítica a que se sujeita é à do elogio. Ninguém tem coragem para descrever a doce crítica tal como ela é. Os que a ela se agregam, como gotas de mercúrio, também querem essa doçura, esse consolo que os eleva acima da realidade e da humanidade, que os transporta para esse sonho demasiado pensado e construído. O pão de molho para a açorda que promete sesta, as papas de sarrabulho que fazem dormir pela manhã, o leite maternal digestivo para a noite, o açúcar na chucha a qualquer hora do dia e o paraíso aqui tão perto da realidade e da mediocridade. A doce crítica esgana-me, faz com que me nasçam caretas, e atiro-lhe as palavras num berro: "Então não vê que isso está tudo mal?", muito ao contrário de algo como: "Aí! Quanto barulho! A melodia, a melodia... Onde está?", palavras estas coadjuvantes do tal sorriso doce, paternalista com um ligeiro, suave e subtil sotaque a crueldade. A doce crítica é tão criticável como qualquer outra, afinal.



segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Trigo e jogos

 




O panorama da indecência e o pedigree são as brasas que animam a intelectualidade portuguesa. Na indecência cabe tudo, mas aquilo que melhor lhe veste são as redes sociais. Chega a ser pornográfica a exposição das aberrações actuais. Os "génios" proliferam, os aplausos em pé não deixam sequer que "as traseiras" do público conheçam as cadeiras, os mestres engalfinhados na glória do primeiro livro onde explicaram o que leram enchendo os chouriços em que se tornaram as páginas de curta duração, preenchem as medidas temporárias dos anedóticos pseudo-humildes que desesperam por um lugar ao sol. Quem tem pedigree, então pode fazer tudo, até ser o tontinho da família, desde que o apelido apareça, estamos na paz dos demónios. Esta democracia intelectual inspira atenções superficiais e expira o fogo do prestígio com que queima qualquer rival que lhes apareça no caminho. Estes seres, se analisados com cuidado, não dizem nada que já não se saiba ou então, não dizem mesmo nada. Deixam escorrer posts como quem faz a meia e a manutenção do prestígio tornou-se numa rotina insolúvel em qualquer novidade. Envelhecem agarrados ao computador e lá arrastam os pés para uma qualquer palestra com aquela expressão tradicional que se situa para além do cansaço e que traduz a divisa que todos fazem questão de assinalar: "já são muitos anos a virar frangos", não dito com este tom demasiado popularucho para alguém como algum prestígio entre ignorantes, mas com  palavras mais elegantes que repõem o peso e a veracidade naquilo que vão debitando para o écran, algo do tipo "já aqui ando há muitos anos", ou "estive lá, quando isso aconteceu" o que sempre lhes acrescenta um perfume mais camoniano de saber de "presença" feito. Normalmente, quando falam da sua experiência por meio destas frases que abalam qualquer neófito, referem-se às jogadas palacianas onde aparecem sempre com um tricórnio, elaborado ao longo dos anos e que lhes dá um aspecto distinto em qualquer festa (muitas vezes referem-se a estas como "O Banquete") e que foi composto por sucessivos experimentalismos das velhas três velhas (que de graças e de juventude nada possuem) e cujos nomes não vão além da velha Acção, da velha Reacção e por último, no topo da pirâmide, a Velha Impassibilidade com a qual pretendem casar toda a gente: as núpcias alquímicas nunca estiveram tão podres e o objectivo é o de formar gente capaz de lidar com esta velhice pegada de maneira a que haja Transmissão ou tradição que eles sabem significar mesmo. O problema é que aquilo não é nada, são carcaças despojadas de alma que passam de umas para as outras o testemunho de coisa nenhuma numa replicação incessante de um vazio no qual o demo se vai encaixando cada vez melhor ocupando cada vez mais espaço, crescendo a olhos vistos numa engorda assumidamente destruidora de almas. Estas figuras são observáveis, não propriamente a olho nú, porque as vertiginosas camadas de tecido adiposo, feito de imagens e de palavras que as encobrem, não permitem uma identificação no imediato mas quem, pela graça dos deuses, se escapou a tais criaturas, foi-lhe dada, com a divina ajuda, a capacidade de os encontrar onde quer que estejam e, a bem dizer, sabem que são um universo à parte sendo que algum do seu tempo é dedicado a consolar vítimas duma batalha por coisa nenhuma, a não ser pela manutenção do seu lugar ao sol que se basta a si próprio. E ainda houve quem dissesse mal da Arte pela Arte como foi o caso de António Quadros. Na sua mais do que muita ingenuidade, mal sabia o que estava para vir e que a Arte pela Arte ainda era o menor dos nossos problemas (pelo menos, essa arte do século XIX, imita a natureza o que já não é mau) e que agora lidamos com a pouca elevação elevada à filosofia o que nos obriga às sucessivas rupturas e aos frequentes virar de costas por não existir diálogo possível. Na barbárie nunca há e os neo-bárbaros já aqui chegaram há muito. A sua actividade actual é a de resgatarem as almas para o inferno do aparvalhamento, algumas ainda se ouvem a ganir no início, mas depressa passam a rosnar, antes das bodas. Depois delas ficam mais calmos a dar instruções a outros pela calada. Nem Maquiavel teria pensado melhor. Provavelmente até o poderíamos ouvir a ganir com a falta de príncipes e de princípios. Na barbárie são todos híbridos, meio homens, meio animais. Grunhem e vivem por debaixo da pele. Parecem um filme de terror, mas deixam nas plataformas a mensagem de que são anjos e que cantam hinos em redor do trono do Senhor. Dizem Amén à mãe e são filhos dela. 

Natália Correia


Natália Correia que hoje farias anos:

Os teus sonhos, são só sonhos neste Portugal esculpido a talhe de Inquisição. Se quiserem destituir uma mulher da sua Honra, lancem o boato de que é uma galdéria. Se quiserem destituir uma mulher da divulgação da sua Arte, façam o mesmo, e vão ver como os homens, bem sentados em qualquer cadeira esculpida a talhe de ambição, divulgam, promovem e amplificam o boato com a fome de poder que trazem no corpo. Os olhos deles não têm brilho, não têm alma e, para eles, as mulheres são para cuspir.

 

sábado, 11 de setembro de 2021

A colonialista

Nascida na Guiné Bissau, país que já praticava a escravatura quando os portugueses lá chegaram, a deputada não consegue fugir aos tiques colonialistas e pretende reformular a paisagem do país que a acolheu e que já praticava o colonialismo antes desta senhora colonialista aqui chegar. O colonialismo de Joacine é peculiar pois é uma importação de uma cultura académica de esquerda com raízes na guerra fria e na guerra do Vietname. A guerra fria aconteceu entre duas potências, os EUA e a União Soviética esta última composta por um conjunto de países sob o jugo colonialista da mãe Rússia. A coerência é incolor. 

 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Hypnos e Thanatos

 


Se Fernando Pessoa se cansou na época dele, então, se vivesse agora, não sei. O esforço desumano que há para manter alguma paz de espírito só é comparável aos 12 trabalhos de Hércules concentrados num só. O final dos tempos vai eliminado as pessoas, uma a uma, sem que haja uma razão aparente. A Justiça, só existe quando a razão dela se expõe e o coração compreende. Dou por mim a pensar que os magos são loucos se pensam (e se se têm em tal consideração) capazes de domesticar estes tempos conturbados sem que eles próprios façam parte da desorientação contemporânea, contribuindo, com as suas manipulações, para a rica confusão disfarçada de ordem paupérrima. O pior que pode acontecer a um mago é cair no ridículo e, nos tempos que correm, graças à psicologia desvendada e esventrada, facilmente o Mago cai no ilusionismo, manipulando apenas objectos e não forças que diz conhecer, mas desconhece. É o que acontece às pessoas quando são consideradas e levadas a sério como se fossem simples objectos. Os magos caem com elas. Não é o Rei que vai nu (antes fosse, ao menos havia um rei), é o mago que vai nu, espezinhado pela tecnologia ilusionista que o coloca no plateau dos mimos dessa mesma tecnologia. O mimo copia aquilo que lhe está acima hierarquicamente e a tecnologia está acima de qualquer mago. Também não vamos lá (onde? Para fora deste buraco em que se encontra a humanidade) com orações. Se a evocação é imperativa, lado forte de qualquer mago, a oração é um namoro com o alto. Não estamos numa época de namoro porque este faz despender muito tempo (que não temos), muita entrega da alma (as almas andam tão esquecidas de si que não se podem entregar a nada sem fazer contas primeiro), e muita admiração pelo transcendente que é coisa que não se vê há muito tempo. Admirar é cada vez mais difícil porque requer o espanto e saber olhar. Tal acção, numa humanidade que se parece cada vez mais com uma mulher vivida, ou com um homem vivido, que “já viu tudo” e “já viu de tudo”, torna-se impossível. Os papos nos olhos, sintoma de quem já “passou por tudo”, não deixam que o olhar se alargue e que e o sorriso nasça. E não convém fingir o sentimento de admiração, nem numa qualquer selfie, nem na vida real. O olho que tudo vê, continua a tudo ver (é diferente de se ter já visto tudo) sem que alguma vez tivesse deixado de ser assim pelo simples facto de a sua essência ser isso mesmo: ver. Dou por mim a reler as palavras de Guénon, esse excessivo tradicionalista, segundo alguns “génios” lusitanos cuja qualidade da obra nunca chegou aos calcanhares da desse autor. A aceleração do tempo, afirma Guénon (como simples transmissor de alguns dados tradicionais e não como autor desses dados), conduz à contracção do espaço e à contracção do próprio tempo e, no limite, deixará de haver tempo pois deixa de existir sucessão temporal transformando-se tudo numa existência simultânea na qual o tempo se transmuta em espaço o que leva a que fiquemos, naturalmente, fora deste mundo (este mundo rege-se pela condição temporal) e afirma, igualmente, que a aproximação da Jerusalém celeste só é possível sem que haja a condicionante temporal (causa do seu afastamento). Então estamos no bom caminho. O tempo anda, de facto, a contrair-se e a sensação é a de queda no espaço. Perante estes dados não há muito para reivindicar a não ser, evidentemente, a consciência deles. A perda de consciência, admitamos, é igual ao sono profundo, sem sonhos sequer e não convém andar assim pelo planeta, por muito que nos custe a consciência destes dados. Não é agradável a degradação. E não é agradável observar tantas pessoas a dormir em pé. Pode ser até traumático, se deixarmos. É também neste sentido que os magos são tolos se pensam que podem travar a marcha descendente deste mundo até porque a sua existência faz parte dessa mesma marcha descendente. Mesmo que sejam magos muito branquinhos e imaculados. Tenho visto alguns a derraparem, nesta época gelada, como neófitos num ringue de patinagem. O seu castigo é sempre algo de acordo com a própria época em que se inserem. O castigo com maior saída tem sido o sono profundo e, acima dele, aparece sempre a inscrição: “Hypnos é irmão da morte”. Não é a antecâmara dela como disse Victor Hugo na anedota. É irmão dela e vive lado a lado. Em simultaneidade. 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

A criatividade


 
Mais vale o assunto ser abordado directamente. Passo a vida criar. As semanas passam, os dias passam e digo sempre o mesmo. Não fiz nada de jeito. O meu ouvinte tem muita paciência para esta insatisfação e diz sempre o mesmo. Diz para parar e para observar os dias anteriores e, os dias anteriores são afinal cheios de tudo. Pequenos desenhos a preto e branco quase como quem não quer a coisa, pequenos textos, pequenos cozinhados inventados ao sabor da hora, pequenos estudos que me levam a dúvidas e a conversas, pequenos temas que me intrigam o cérebro e me obrigam a soluções criativas, uma máquina de costura abandonada levada a um vizinho para arranjar torna-se imadiatamente no pretexto para fazer um saco para colocar as toalhas de praia. Os amigos telefonam, um a seguir ao outro e as conversas não duram menos de uma hora. Quando chega a noite penso sempre que não fiz nada e a resposta é um sorriso. Aberto. É que, na verdade, sentir-me-ia mais completa se montasse um espectáculo todos os dias e erguesse as tábuas do palco com pregos e martelos, e pintasse os cenários e fizesse o guarda-roupa depois de o pensar e escrevesse o texto da peça e dirigisse os actores e fosse para cima do palco e representasse e me sentasse na plateia e aplaudisse. Só assim pensaria que teria feito qualquer coisa porque teria feito tudo. É este um problema com o qual se lida. Esta fome de actividade criativa. No repouso imagino as exposições de pintura que faria, se pudesse. Como organizaria o espaço. Como tornaria tudo numa memória de um tempo que não voltará. Mas os lugares da visibilidade estão ocupados e muitas vezes mal ocupados por gente que afasta outros com os pés e a minha actividade criativa fica fechada entre os muros que pintei com ondas do mar, como um segredo do qual ninguém quer saber, nem pergunta, nem se interessa e, quando lamento em voz alta o facto, a resposta vem contemplada com um sorriso: "Os outros não veêm o que fazes, mas Deus vê". E é desta forma que tudo fica resolvido, o coração sossega por segundos até à próxima insatisfação, ao próximo desassossego que me dizem que nunca faço o suficiente, que devia ter nascido num qualquer século, quando não havia especializações e podíamos ser os nossos próprios criadores do teatro da vida sem que ninguém nos afastasse, nos condicionasse perpetuamente como agora.  A exuberância e visibilidade internas são dádivas para Deus, sobretudo quando os homens andam cegos, egoístas e incapazes. 

domingo, 5 de setembro de 2021

As companhias

 



Não procuro bêbados nem drogados por companhia. Prefiro os ligeiramente inebriados, capazes ainda de um pé na terra e outro no céu. Tanto os bêbados como os drogados têm, e bem vincados, os pés pregados à terra. Já os que não escaparam ao perfume das rosas, mesmo que não o saibam, passeiam no vasto jardim celeste onde os recolho como flores na imensidão da minha alma. 

sábado, 4 de setembro de 2021

O Demonstrável Mundo Novo


 

Há quem admire a utopia sem a imaginar primeiro. É assim que se vai construindo o mundo das causas. E as causas de hoje têm todas a ver com o conforto. Bem, não é bem assim. Têm a ver com o conforto elevado à potência de luxo. Mas não se pense que é um luxo qualquer. É o luxo do regresso ao útero sem que este tenha alguma coisa a ver com práticas respiratórias arcaicas provindas do yoga. A América, construída ao tiro, dá uma grande importância à sociedade civil. Nada contra. Lembro-me de ouvir a história do gordo que queria uma porta especial pela qual pudesse passar. Fez uma petição, as pessoas sensibilizaram-se e conseguiu uma porta suficientemente larga num qualquer edifício. A utopia por ele imaginada não passava pela dieta, passava por uma porta. Era o dever da sociedade dar-lhe atenção e colocar portas para que pudesse passar sem se sentir discriminado. O mesmo para todos. Para cegos, acessos fáceis, para deficientes rampas de acesso, para paranóicos com medo de portas, buracos por onde se possam enfiar, para construtores de portas, portas suficientes para alimentar a família, para os que não gostam de  portas, janelas, para os canhotos portas que abram ao contrário, para cada um o nível de conforto suficiente para que não se senta atirado para um qualquer canto da sociedade, porque somos todos iguais, com os mesmos direitos e temos o direito fundamental de não nos sentirmos desconfortáveis no mundo e, para isso, temos de ser aceites na nossa diferença (afinal não somos todos iguais). O mundo é encarado como um fato de alta costura feito à medida de cada um onde todos sejam irremediavelmente felizes e onde a tecnologia, muito limpa e respeitadora do planeta, exista para que possamos ter uma existência o mais comprida possível, ficando nela extremamente bem instalados, aceites na nossa diferença,  para que possamos morrer com duas centenas de anos, com um sorriso na cara e dizendo que fomos extremamente felizes, sem problemas nem atritos como se nunca tivéssemos nascido, nem feito anos e tivéssemos permanecido no nosso torpor uterino, quisá a chuchar no dedo, envoltos na placenta protectora das causas que se tornaram efeitos. Já Guénon observava que, segundo o pensamento tradicional, as causas já continham o efeito. Neste caso não encontro outro senão o regresso ao útero como único paraíso possível uma vez que "outro reino" é impensável. A ideia de ir diminuindo cada vez mais as desigualdades tomou o freio nos dentes e cresceu, amadureceu e passou à ideia de ir progressivamente integrando a diferença para que todos sejamos iguais. Na natureza isso não existe e o que marca o devir é exactamente o facto de existirem sucessões de diferenças que vão desenhado o rio e não há um rio igual ao outro. Não há, mas pode haver, a utopia afirma que no dia em que a diferença for elegível e, desta forma, se igualizar relativamente às outras diferenças e à igualdade mãe, os rios, e toda a natureza não terão direito à descriminação e os seus leitos serão desenhados de acordo com regras específicas que os hão de tornar iguais uns aos outros: não haverá um rio maior do que o outro e os desvios dos mesmos serão todos iguais. A sociedade e a natureza serão feitas a régua e esquadro e a árvore não terá galhos, mas apenas um galho onde os macacos se sentam todos juntinhos. Não haverá superior nem inferior e a linha do horizonte é a única possibilidade (já começo a perceber os terraplanistas - são uns visionários). Em termos geométricos até não está mal pensado. Segundo a tradição, a velhinha cruz tem um plano horizontal e um ponto central a partir do qual é possível a ascensão pela linha vertical que a cruza. Tudo certo até aqui. No entanto, sobra-nos o problema do galho e dos macacos. Se eles são todos iguais no plano horizontal há-de haver um a quem lhe calhou o ponto médio do galho e é nesse ponto médio que é possível a ascensão. E lá vai o macaco trepador, ascendendo e estragando por completo a tal igualdade confortável uterina onde estávamos todos tão bem, sem que ninguém se destacasse para que ninguém fosse considerado um não-integrado nesta sociedade utópica onde boiávamos tão descansados no líquido amniótico. O macaco ascende e (veja-se o escândalo) nasce. Nasce e de cabeça para baixo porque a cabeça é a raiz da árvore invertida. Isto dos símbolos é uma chatice e o nascimento estraga tudo. Quando servimos causas convém ver a que utopia pertencem. Por instantes, tudo nos parece um paraíso no caldo das causas e, um dia, alguém nasce e desarruma tudo outra vez. É a vida. E o devir. Sim, o mesmo que é simbolizado pelo rio que passa e não há um igual ao outro, para lamento de todos os que agora abraçam as causas sem lhes conhecer os efeitos que estas já contêm. Enfim, convém sempre haver alguém diferente, nem que seja para ir avisando que não, não somos todos iguais. Na natureza nada é e a mesma espelha o céu. Ups! Não devia ter dito céu. Ele está acima. E o Inferno está lá em baixo. Tanto um como o outro estragam tudo, logo agora que estava tão bem no Paraíso. O problema é de quem está no meio dele. Raio do macaco, é que não pára sossegado!